CAPITULO LI

 
É minha!
 

— É minha! disse eu commigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéa entranhando no espirito, não á força de martello, mas de verruma, que é mais insinuativa.

— É minha! dizia eu ao chegar á porta de casa.

Mas ahi, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessorios, luziu-me no chão uma cousa redonda e amarella. Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia-dobra.

— É minha! repeti eu a rir-me; e metti-a no bolso.

Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repellões da consciencia, e uma voz que me perguntava porque diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas sómente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquelle que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operario que não teria com que dar de comer á mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o unico meio, era fazel-o por intermedio de um annuncio ou da policia. Enviei uma carta ao chefe de policia, remettendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvel-o ás mãos do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranquillo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciencia valsára tanto na vespera, que chegou a ficar suffocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janella que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou á larga. Ventilae as consciencias! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaesquer outras circumstancias, o meu acto era bonito, porque exprimia um justo escrupulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ella me dizia, reclinada ao peitoril da janella aberta.

— Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsamico, e uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas?

E a boa dama sacou um espelho e abriu-m’o deante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da vespera, redonda, brilhante, nitida, multiplicando-se por si mesma, — ser dez — depois trinta — depois quinhentas, — exprimindo assim o beneficio que me daria na vida e na morte o simples acto da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contemplação daquelle acto, revia-me nelle, achava-me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um poucochinho mais.

Assim, eu, Braz Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalencia das janellas, e estabeleci que o modo de compensar uma janella fechada é abrir outra, afim de que a moral possa arejar continuamente a consciencia. Talvez não entendas o que ahi fica; talvez queiras uma cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho mysterioso. Pois toma lá o embrulho mysterioso.