Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, — minha irmã sentada num sofá, — pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruzados e a morder o bigode, — eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto pesado. Profundo silêncio.
— Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que valha trinta e cinco...
— Vale cinquenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinquenta e oito...
— Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?
— Não fale nisso! Uma casa velha.
— Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.
— Parece-lhe nova, aposto?
— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...
— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
— O Prudêncio está livre.
— Livre?
— Há dois anos.
— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata?
Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.
— Quanto à prata, continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma, se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não...
— Mas posso casar.
— Para quê? interrompeu Sabina.
Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.
— Que é lá? redargui; não cedi coisa nenhuma, nem cedo.
— Nem cede?
Abanei a cabeça.
— Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa roupa do corpo; é só o que falta.
— Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio de conciliação; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo. Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara, — e depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha, mas Cotrim adiantou-se e disse a mesma coisa.
— Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.
Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação.
— Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por todos.
Mas Cotrim:
— Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.