Como se continua a viagem pela Rua do Ouvidor; e depois de se considerarem de passagem os ursos de Mr. Cassemajou e o fronteiro Profeta, deixa-se de falar de uma casa onde reinaram quatro damas, nenhuma das quais era mulher, visita-se o Hotel da Europa, e aí se encontram saudosas lembranças do Clube dos Radicais, e o berço do Clube da Reforma com janelas para a Rua do Ouvidor. Como depois prossegue-se viajando além do encruzamento da Rua da Quitanda, sobre cuja denominação absurda se dizem coisas sepientíssimas, trata-se da casa do Dr. Berquó, o ouvidor, da qual poderia ter saído influência diabólica, se fosse bem fundada certa proposição do Dr. Patroni, que se transcreve: olha-se para a casa do Jornal do Commercio; não se entra porém nela por duas razões, que não são de cabo-de-esquadra; e finalmente contempla-se respeitosamente o Grão-Turco, último herdeiro da casa onde floresceram, com sucessiva glória, as lojas famosas dos - Saissel - Wallerstein - e Masset - o antigo, não faltando a esta algumas recordações romanescas.
Viajando agora pelo quarteirão que termina onde a Rua do Ouvidor é cortada pela da Quitanda, confesso-me em penúria de tradições e de notícias curiosas antigas.
Não tenho conhecimento de casas célebres nem de fatos memoráveis do outro tempo. Tudo que há notável é de ontem. Os dois ursos, o antigo e o moderno de Mr. Cassemajou, são nossos contemporâneos, e posto que o primeiro já tenha a idade exigida para ser senador, e o segundo esteja desde alguns anos emancipado, têm sido ambos até hoje da mais perfeita inocência, e o Profeta erguido quase defronte apenas profetiza que os paletós novos que vende hão de em breve tornar-se velhos.
Também não quero ser maldizente, aproveitando a passada, mas moderna celebridade de uma casa que foi riquíssima de episódios febricitantes e de comoções fortíssimas, e onde quatro damas, nenhuma das quais era mulher, inspiraram paixões, que fizeram sair depenados alguns infelizes.
Mas que provaria a história que deixo de referir? Apenas o que todos sabem, isto é, que não são somente as de barato as casas onde muito honradamente se depenam homens como se eles fossem galináceos.
Nada tenho com isso: não entra nas Memórias da Rua do Ouvidor o estudo das moléstias reinantes na cidade do Rio de Janeiro, uma das quais é essa, cujo nome não quero dizer, moléstia feia, corruptora da sociedade, e cujos sintomas mais perigosos para o doente são - os palpites.
Mas devo lembrar ao menos uma casa notável neste quarteirão: seja a primeira do lado esquerdo.
Tem ela três pavimentos, e abre portas e janelas para as ruas do Carmo e do Ouvidor.
Os dois pavimentos superiores são ocupados pelo Hotel da Europa, cuja entrada é pela Rua do Carmo, tendo outra que é de casa imediata e anexa na Rua do Ouvidor.
O Hotel da Europa foi durante anos considerado com razão, e ainda hoje tem presunções, de ser o primeiro ou o melhor hotel da cidade do Rio de Janeiro: atualmente continua a mostrar-se bom; conta porém alguns êmulos, que não merecem menos que ele.
Não creio que por isso deva ostentar-se orgulhoso; porque em hotéis a nossa capital está tão abaixo do que se encontra nas grandes cidades da Europa (já não falo dos Estados Unidos norte-americanos) e até em Buenos Aires, que o orgulho não seria admissível.
O que admira é que no fervor de mil empresas industriais ainda não aparecesse uma, e nem algum rico especulador que em seu proveito e do público dotasse a cidade do Rio de Janeiro com um hotel digno dela.
O Hotel da Europa tem outro louvável desvanecimento, ufanando-se de severo, e muito zeloso nas suas hospedagens. Sob esse ponto de vista é de fato preferível a muitos e a alguns famosos. É possível e mesmo provável que alguma vez tenha tomado a nuvem por Juno; ao menos, porém, esmera-se em livrar-se das nuvens, e basta isso para o seu crédito.
Em política, o Hotel da Europa é sempre do partido do freguês ou do hóspede que lhe chega; é sempre e ao mesmo tempo de todos os partidos, e em suas salas os liberais e os conservadores têm dado banquetes políticos, fazendo ecoar nelas os brindes e os vivas mais opostos.
Entretanto, é aos liberais que o Hotel da Europa tem mais servido, aliás sem preferência política.
Em uma das salas desse hotel, fundou o Sr. Senador Silveira da Mota em 1868 o seu Clube dos Radicais, e aí S. Ex.ª, eloqüente e enérgico orador, e alguns outros radicais pronunciaram belos discursos, conversaram muito no sentido de suas idéias políticas em repetidas reuniões; esse clube, porém, acabou sem grande resultado de propaganda, mas com saudades profundas do hotel privado da excelente freguesia radical.
Meses depois de 16 de julho de 1868, isto é, da subida do partido conservador ao governo, e da dissolução da Câmara, os chefes liberais e muitos dos seus correligionários políticos criaram o Clube da Reforma com regulamento e caráter permanente, e o estabeleceram interinamente em uma das salas do Hotel da Europa, e ali, durante três meses, se reuniram todos os dias, entendendo-se sobre a direção da imprensa e da ação legal do partido em oposição.
No fim dos três meses o Clube da Reforma despediu-se do Hotel da Europa, que ainda mais dolorosas saudades sentiu; porque o freguês tão bom pagador, como o chefe dos radicais, pagava muito mais, tendo tomado sala não a preço de noite, mas por elevado aluguel mensal.
E o Hotel da Europa abandonado, ou deixado pelos liberais, e tendo tomado gosto aos clubes de propaganda política, esperou, mas esperou em vão por freguesia de clube do partido conservador; sem calcular que, estando este a dar as cartas no governo, não desceria a fazer jogo no Hotel da Europa.
Mas não é justo que deixemos na rua o Clube da Reforma.
Despedindo-se do Hotel da Europa foi esse clube florescer nos pavimentos superiores da casa n.º... da Rua dos Ourives, onde muito deveu à solicitude e à dedicação do benemérito liberal e ilustre cidadão Dr. Manoel de Melo Franco, um dos membros da sua comissão administrativa.
Da Rua dos Ourives passou-se o Clube da Reforma para a casa n.º... da Rua Sete de Setembro, e aí se acha e se mantêm com o caráter de quartel-general do partido liberal do império.
Não me digam que o Clube da Reforma vem mal encaixado nas Memórias da Rua do Ouvidor: menos essa! ele teve o seu berço na Rua do Ouvidor; pois que a sala do hotel que lhe foi alugada abre suas janelas para essa rua, na qual também se fundou a Reforma, órgão principal do partido na imprensa, e importante gazeta diária, que não pode jamais esquecer o nome de Francisco Sabino de Freitas Reis, que mais que qualquer dos outros fundadores concorreu com a sua bolsa e com a sua direção administrativa para essa instituição do partido liberal.
Freitas Reis era homem de grande força de vontade e inteligente empreendedor: foi o primeiro brasileiro que se abalançou a propor-se a considerável empresa industrial na Europa, conseguindo tomá-la sobre si, formar companhia e dotar uma parte da famosa e esplêndida Paris com o notável melhoramento já conhecido e apreciado então no Rio de Janeiro) do ferro-carril para carros urbanos de ração animada, a que chamamos bondes.
Freitas Reis ganhou boa fortuna com a sua empresa, e deixou seu nome de brasileiro lembrado honrosamente entre os empreendedores a quem a grandiosa Paris deve considerável benefício. Infelizmente esse nosso compatriota, amigo e entusiasta do seu e nosso Brasil, acabou seus dias, ainda no vigor da idade, lá na capital da França, acometido de invencível moléstia pulmonar.
Se estas lembranças também são amoladoras, declaro que não sei o que sejam recordações que se devam guardar.
Em continuação de viagem o autor e os leitores destas Memórias entram pela Rua do Ouvidor acima no vasto mar imenso que se estende das quinas da Rua da Quitanda até à dos Ourives.
Mas de olhos voltados para trás ou com os olhos ainda fitos no ponto donde partimos a seguir viagem tomamos a liberdade de perguntar à ilustríssima Câmara, desde algum tempo maníaca crismadora de ruas, por que conserva essa denominação de Rua da Quitanda?...
Que espécie ou que diabo de quitanda há nessa rua tão destampatória, e desgraçadamente nomeada, que ainda no último século teve o seu primeiro quarteirão conhecido e, geralmente, chamado por nome obsceno, e só perdoável em heróicas desenvolturas da furiosa língua de Cambrone?...
Hoje, ao menos no nosso tempo, quitanda traz a idéia de comércio de verduras, comércio explorado principalmente pelas negras minas, que não se encontram na rua assim denominada.
Requeiro à ilustríssima que mude aquele nome para outro que a gente saiba o que significa.
Se quiser nome republicano eu lhe ofereço ou lembro um de dois:
Rua de João Mendes Viana, que foi Grão-Mestre da Maçonaria, republicano ostentoso e deputado, que aí teve casa de sua propriedade perto da quina da Rua Sete de Setembro.
Ou Rua de Cipriano Barata, deputado brasileiro na constituinte portuguesa, republicano, preso em 1824, e que saindo em 1829 da Presiganga, foi morar por meses nessa casa do João Mendes, seu amigo.
Se proferir nome de monarquista constitucional, dou-lhe o mais simbólico.
Rua de Evaristo, ou por já haver uma com essa denominação - Rua da Aurora Fluminense; porque Evaristo redigiu durante anos a sua Aurora, criou o partido monarquista constitucional puro, floresceu, glorificou-se enfim, morando e tendo a sua loja de livros nessa rua, quina da antiga dos Pescadores.
Eu iria ainda muito além, se não me lembrasse que não é pela Rua da Quitanda que devo viajar.
Eia: pois, a caminho!
Mas... uma dúzia de passos, e já é de obrigação parar.
Ao lado direito mostra-se a aliás já marcada casa tradicional, que o Dr. Berquó, o ouvidor; ocupou. Não convém repetir informações que deixei escritas no capítulo competente; quero porém expor uma observação que me ocorre.
Acredito que a mudança do nome de Padre Homem da Costa para Ouvidor não influiu nos destinos da rua, mas é lícito imaginar que ela tomou em 1780 com orgulho profano o nome e a toga do magistrado.
Ora, em uma das sessões preparatórias da Câmara temporária, que em 1842 foi dissolvida previamente ou antes de constituir-se, Felipe Alberto Patroni Maciel Parente (um dos deputados eleitos pela província do Grão-Pará) em originalíssimo discurso declarou que não se prestara a seguir a magistratura porque em sua significação radical - magistrado quer dizer diabo.
Se o Dr. Patroni (que seja dito aqui entre nós era meio doido) tinha razão, deve-se concluir que a rua por onde viajamos, trocando a batina pela toga, o nome do sacerdote da igreja pelo do magistrado, desviou-se do caminho do céu, e abraçou-se com o diabo.
Não penso que desde 1780 a rua que então se chamou do Ouvidor (magistrado) se tornasse diabólica; mas com certeza dezenas de anos depois começou a ostentar, e cada dia vai ostentando mais, artes e laços que parecem mesmo tentações do não sei que diga.
Basta de casa do Ouvidor Berquó.
Olhem: ali defronte estamos vendo com os seus anexos a casa do Jornal do Commercio; nesta, porém, eu não toco, nem para lembrar ao menos Seignot Plancher; o primitivo e rude fundador do Jornal na Rua dos Ourives, publicado em meia folha de papel e em dias irregulares. Há nessa casa tradições, histórias políticas, casos curiosíssimos, que em mínima parte conheço bem, e que eu poderia contar sem inconveniente; mas em primeiro lugar aquilo lá dentro é maçonaria, na qual ninguém entra sem juramento de segredo, e, em segundo, não quero que se diga, nem se pense que artificio ornamentações e teço elogios de encomenda ao Jornal que publica estas Memórias.
O que asseguro é que o Jornal do Commercio é mais rico de segredos políticos do que o conselho de Estado, e do que todas as sete secretarias ministeriais, e que se quisesse falar e escrever dizendo o que sabe, falaria mais do que o finado Montezuma (Visconde de Jequitinhonha) falava, quando era vivo, e escreveria mais do que o Sr. Dr. Melo Moraes escreve enquanto não morre.
Como o Jornal do Commercio tem para mim por duas razões inscrita em sua porta o - on ne passe pas - da sentinela de Napoleão, passo adiante.
Um pouco além, quase em frente à Rua Nova do Ouvidor; e, portanto, outra vez do lado direito da do Ouvidor; vemos a atual casa do Grão-Turco, que não perde por falta da menção do número.
Hoje, depois da guerra de 1877 e 1878, em que a Rússia levou a Turquia ao extremo de exportar o fumo do sultão, e os cachimbos dos ulemás, e dos pachás, o Grão-Turco perdeu todo o seu prestígio na Europa e Ásia, e a meia-lua otomana ficou em perpétua fase minguante.
Antes, porém, dessa guerra deveras que só o Grão-Turco pudera ser herdeiro condigno das glórias da casa que conquistou, e que já era triplicemente famosa.
Eu disse triplicemente, e para mostrar os fundamentos da aplicação do advérbio basta-me declinar os nomes dos florescentes lojistas franceses que celebrizaram essa casa.
A começar de 1824 ali temos:
Loja de modas de Mr. Saisset
Idem de Mr. Wallerstein:
Idem de Mr. Masset (o antigo).
O Saisset estreou-se auspicioso em 1824 (ou no fim de 1823), e foi arranjando fortuna; mas passados cerca de quatro anos, em que bateu moeda, veio-lhe inesperada adversidade da formosura, e do vinho.
Mme Saisset era lindíssima, conforme o testemunho dos seus jovens contemporâneos e hoje velhos choradores do passado; tinha, porém, a fraqueza de saber de mais que o era, e de gostar que a admirassem.
O Saisset, homem extremamente delicado no trato, de gênio brando e pacífico, e que muito se desvanecia da beleza da esposa, tinha também sua fraqueza; amava além de Mme Saisset o vinho de Borgonha, e às vezes depois do jantar mudava de caráter e tornava-se bulhento e arrebatado: isso não era sempre, era às vezes, conforme a quantidade do traiçoeiro Borgonha bebido.
O pior era que o Saisset quando se exagerava no culto de vinho nem sempre dormia e quando não dormia, ficava irascível, desatinado, e inconseqüente.
Foi um dia à noitinha, isto é, depois do jantar, o Sais set embirrou com a esposa, que estava diante de grande espelho a enfeitar-se com um lindo toucado que usava de predileção, e ele em demasias de Borgonha excedeu-se tanto, que encolerizado quebrou o espelho, e fez em casa tão escandaloso ruído que todos os vizinhos o julgaram perdido por ataque de loucura.
Poucos dias depois, muito vexado e constrangido, o Saisset teve de deixar a cidade do Rio de Janeiro, levando consigo a bela esposa, e saíram ambos barra afora para a Europa; ele a maldizer do seu vinho. brigão, e Mme Saisset a chorar o seu espelho quebrado.
Ao Saisset sucedeu na casa e nos fulgores das modas Mr. Wallerstein.
Que nome! Que prestígio!
O Saisset fora o Clóvis!
O Wallerstein foi o Carlos Magno da Rua do Ouvidor.
Ó loja do Wallerstein!... A lembrança dos seus primores faz ainda palpitar corações, não de velhas, porque não há senhoras que o sejam, mas de senhoras que foram meninas e jovens durante o florescimento daquele gênio do bom-gosto, florescimento que perdurou desde o fim do Primeiro Reinado até além da coroação do Imperador o Sr. D. Pedro II.
Havia na Rua do Ouvidor, e em outras como a da Quitanda, lojas que vendiam sedas, leques, xales, etc., a preço de vinte, trinta, cinqüenta por cento menos do que se compravam iguais e algumas vezes inferiores na loja do Wallerstein; mas que importava isso?... não eram do Wallerstein!...
Se algum pai ou marido levava à menina ou à esposa com ar de. triunfo o rico e lindo corte de vestido com ânsia esperado da pasmosa loja, a menina ou esposa exultava, achando-o admirável e eclipsador.
Sim!... mas custou duzentos mil réis!...
(Era naquele tempo...)
Pois não está caro... e disto só tem o Wallerstein.
Ainda bem!... mas esse corte de seda eclipsador saiu da loja do João Fernandes & C. por 110$000.
Ah, boca que tal disseste!...
A menina ou a esposa dissimulava durante alguns minutos, depois examinava de novo a seda, e empurrando-a para o lado, fazia um momo desprezador, e murmurava desconsolada:
Reparando melhor... nem por isso... parece antiga... é algum alcaide... vê-se logo que não é do Wallerstein!
Os pais e maridos mais ladinos não faziam confissão do estratagema, e as filhas e esposas às vezes ostentavam seus ricos vestidos de Wallerstein comprados na Rua da Quitanda, ou em lojas modestas.
Para brilhar a alegria na família bastavam duas inocentes mentiras: primeira, dizer que o corte de seda era procedente da casa de Wallerstein; segunda, ralhar exagerando a despesa feita: asseverando que custara duzentos mil réis, o que se comprara por oitenta ou cem.
Mas não havia pai nem marido capazes de iludir as filhas e as esposas da alta sociedade ou do proclamado bom-tom; essas eram intransigentes e escrupulosas freguesas do Wallerstein.
Era tal o furor de preferência dada à casa do Wallerstein, que em mais de um caso chegou a tocar à extravagância e ao ridículo.
Dou exemplo.
No ano de... (não quero expor-me à indiscrição marcando o ano), um deputado novo de alguma das províncias do Norte foi com a sua jovem e digna esposa à loja do Wallerstein, e à escolha deste, e sem questão de preço, comprou-lhe o mais distinto corte de seda para vestido, com que a senhora deveria aparecer em próximo baile diplomático, e encarregou ao Wallerstein da escolha da melhor modista, e de todos os ajustes com esta, e foi nisso prontamente servido.
Tudo correu por conta e responsabilidade do famoso lojista, ditador da moda.
Não sei qual foi a modista preferida, mas ou por tardo reconhecimento de deficiência do corte de seda, e falta de fazenda igual, ou por imprudentes estragos de tesoura, a tal modista para completar um dos panos da saia do vestido dissimulou na barra, deste, e do lado esquerdo, uma emenda em forma de triângulo finíssima e quase imperceptivelmente cosida, e ainda mais oculta por baixo de rendas e flores.
Nem Cristóvão Colombo que descobriu a América nos desertos do oceano seria capaz de descobrir aquela emenda coberta por flores e rendas na barra de um vestido.
A jovem provinciana não deu com o escondido defeito, e aplaudiu o seu vestido que lhe pareceu e era realmente distinto, e tão distinto que produziu no baile o mais lisonjeiro efeito.
Mas por isso mesmo no fim de pouco tempo algumas senhoras com seus olhos perscrutadores fizeram a descoberta da quase invisível emenda triangular!!! e umas por inveja e outras inocentemente pediram à esposa do deputado explicações de semelhante novidade.
Não sei, respondeu a senhora meio confusa, e corando vexada, não sei, o vestido veio-me do Wallerstein que escolheu a seda, a modista, e tudo dirigiu.
As curiosas ficaram como atônitas, ouvindo o nome do Wallerstein, e antes de terminar o baile, cada uma delas já achava graciosa a emenda triangular dissimulada entre rendas e flores; nenhuma, porém, confiou às outras a nova impressão que aquela novidade lhe causava.
Dez dias depois em outro baile, todas as curiosas apresentaram-se com riquíssimas toilettes trazendo bem visível ao lado esquerdo e junto à barra dos vestidos a emenda triangular: já porém exagerando a moda não só com a manifestação e com proporções maiores da emenda, mas também porque esta como negligentemente feita repuxava com pequenos arregaços a barra do vestido, de modo a deixar ver a ponta do sapatinho de cetim do pé esquerdo.
Que extravagante e feia moda é aquela? perguntavam algumas senhoras.
É fantasia... é emenda triangular à Wallerstein: respondiam outras já informadas.
No dia seguinte, o Wallerstein foi obrigado a responder a numerosas interpelações, e a emenda triangular caiu no ridículo.
Em 1841, por ocasião das festas da coroação do Imperador, o Wallerstein regalou-se; todos os seus alcaides saíram da loja e fizeram farofa, como últimas modas de Paris da loja do Wallerstein.
Algum tempo depois, Mr. Wallerstein, o Napoleão da moda e da elegância sem Waterloo imaginável, farto de áurea colheita, e no apogeu da glória dos altos preços, bateu as asas, e foi-se do Rio de Janeiro.
Le roi est mort: vive le roi!...
A casa mudou de nome e chamou-se Masset.
A loja Masset estreiou-se com a herança do brilho e da fama do Wallerstein, mas aos poucos teve competidores de importância, e não pôde manter por muito tempo a primazia inabalável que gozara a do antecessor.
Ainda assim a loja Masset (a antiga), aliás sempre considerável, me daria assuntos curiosos para encher algumas páginas destas Memórias; mas houve Masset - o antigo, e há Masset moderno; a antigüidade do primeiro é jovem, como o dia de ontem, e a modernice do segundo é como menina, que hoje ainda faz travessuras, e portanto contemporâneas, ambas não devo nem quero ofender a modéstia da jovem, nem entender com a menina traquina.
Nas Memórias da Rua do Ouvidor sou e hei de ser cabeleireiro que só penteia cabelos brancos, quando não faz toucados para defuntos.
E apenas em frente da atual casa do Grão-Turco reparo agora que este capítulo já se alongou demais, e que é indispensável interromper a viagem que estou fazendo com os meus pacientes leitores.
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