Como por fim chegamos em nossa viagem ao último quarteirão da Rua do Ouvidor, e logo encontramos em pequeno sobrado à mão direita a Chiquinha, tormosa e muito leviana ou imodesta rapariga, de quem foi ditoso apaixonado, em 1822, o ilustre e benemérito patriota Joaquim Gonçalves Ledo, mais feliz do que o poeta Bernardo Avelino, vizinho da Ziquinha, e que por pobre desmerecia os seus agrados; recordam-se notáveis acontecimentos, e a fuga de Ledo para Buenos Aires, entrando por capricho dele a Chiquinha na história. Como, enfim, se fazem notar a casa de sobrado do Visconde da Cachoeira, e deste se trata, e defronte a pequena casa térrea, onde em maio de 1869 se fundou a Reforma.
Adivinho que os meus companheiros de viagem sentem-se possuídos da mais doce consolação ao entrar no último quarteirão da Rua do Ouvidor, onde têm de receber as minhas despedidas e de respirar livres de mim.
A consolação realmente é pouco lisonjeira para o meu amor-próprio de memorista; é, porém, muito natural que desejem viajantes, e ainda mais viajantes obrigados, chegar ao termo de suas fadigas.
Podem crer que eu também estou cansado de tão longa viagem, e tanto mais que chega já a me parecer meu destino o ter de repetir o que disse o Lopez do Paraguai, quando fugia, subindo a serra: Il faut finir pour commencer.
Sigamos pois, mas preparem-se, armem-se de paciência os meus companheiros e leitores, porque, neste pequeno quarteirão, temos muito que ver e que lembrar.
Logo na quina da rua, então chamada da Vala e agora da Uruguaiana, a Rua do Ouvidor apresentava ao lado esquerdo a casa de três pavimentos, que ainda hoje se vê, e que abre porta e corredor de entrada para aquela tendo defronte na quina do lado direito casa de dois pavimentos ou sobrado de um só andar, como atualmente se conserva.
Ambos esses tetos devem guardar, senão importantes, ao menos curiosas recordações.
Foi no segundo desses sobrados, no de um só andar e ainda então mal-acabado, que em 181..., desembarcando na cidade do Rio de Janeiro, se abrigaram José Clemente Pereira, que tão elevada posição social tinha de ocupar no Império do Brasil, e o Macamboa, que ai começou a exercer modestamente a advocacia, e que em 1821 celebrizou seu nome na bernarda de fevereiro.
O outro, o sobrado de dois andares, gozou, em 1822, fama ocasional e efêmera, mas um pouco romanesca.
Habitava, não sei desde quando, em um dos pavimentos superiores dessa casa, ou ocupava ambos, moça de beleza tão notável, como de costumes fáceis e sem escrúpulos. Era, dizem, lindíssima de rosto, e seu corpo ostentava formas, contornos admiráveis, que um estatuário tomaria por modelo, mas infelizmente, pobre mulher sem recato, era anjo decaído, infeliz transviada.
Natural da província de Minas Gerais, tinha vindo para a cidade do Rio de Janeiro talvez muito recentemente, porque era ainda bem jovem, pouco mais de vinte anos contando; havia, porém, no seu passado de ontem, de menina, lá na província natal algum segredo de sinistro amor, como o da Perpétua Mineira, mas ao contrário desta nos primeiros tempos da saleta de pasto à mineira era tão alegre e parecia tão feliz no seu transviamento que se afigurava não ter consciência da sua degradação na sociedade.
Vivia só com uma escrava africana ou alugada ou própria.
Essa linda moça era geralmente conhecida e tratada pelo diminutivo do seu nome batismal; como porém tenho algumas dúvidas sobre ele, dou-lhe o nome de Francisca, e fica entendido que a tratavam por Chiquinha.
E convêm ainda dizer que a Chiquinha pecava por seus costumes fáceis e sem escrúpulos, como já escrevi, mas estava longe da prática escandalosa do vício que hoje tão numerosamente corrompe e envergonha a cidade do Rio de Janeiro.
Ela era transviada, mas do gênero em que se mostrou a Perpétua Mineira, no último período de sua vida: sofismava quanto podia a indignidade de sua vida.
Ao lado esquerdo da rua seguiam-se casas quase todas térreas, e muito mais afastado para o Largo de S. Francisco de Paula o espaçoso sobrado de Luís José de Carvalho e Melo, depois Visconde da Cachoeira.(que será oportunamente lembrado).
Ao lado direito depois do sobrado da esquina alinhavam-se casas também térreas, em uma das quais, talvez na que foi mais tarde Farmácia Souller, ou em outra abaixo, morava o pouco afortunado Bernardo Avelino, que provavelmente devia sua ingrata fortuna ao fato de o terem em conta de poeta, porque rimava com facilidade, e muitas vezes com felicidade, compondo sonetos, glosando quadras e escrevendo cantos poéticos que tiveram sua voga, mas não rendiam dinheiro.
Tais eram os dois principais, conhecidos e nomeados ou distintos vizinhos da bela Chiquinha, que com o seu rosto todo branco lírio sem auxílio de pó-de-arroz nem de velutine, com suas faces de rosas sem socorro de carmim, com seus cabelos pretos e longos, que excluíam a idéia de crescentes de hoje, com seu corpo tão bem-feito e de formas tão graciosas que repudiava como insulto a ousadia de um postiço, reclamava e impunha adorações, mas só as recebia ou de caprichosa escolha, ou de inconfessável interesse.
Luís José de Carvalho e Melo, o vizinho do lado esquerdo da rua, homem ilustrado e estudioso, grave, respeitável, honradíssimo magistrado, de posição oficial distinta e honesto chefe de família, não dava a menor importância aos merecimentos físicos da Chiquinha, e esta de todo menosprezava o poeta, vizinho do lado direito, que se sentia sempre do lado sinistro, quando se metia a fazer a corte quer em prosa quer em verso à linda moça.
Mas evidentemente a Chiquinha não era assim cruel por inimiga da poesia, e dos homens de espírito brilhante, pois que se deixara cativar em 1822 pelo mais elegante e mimoso dos escritores da época, cultor inspirado das musas, literato ameníssimo, o qual também andava perdido de amores por ela.
Este namorado e amante da Chiquinha era sem mais nem menos o ilustre benemérito da Independência, depois deputado nas duas primeiras legislaturas (de 1826 a 1833), e nelas esplêndido e mavioso orador parlamentar, o notabilíssimo fluminense Joaquim Gonçalves Ledo.
A memória desse varão assinalado não pode ser amesquinhada pela lembrança de sua paixão (aliás de todos sabida em 1822) pela formosa Chiquinha, e tanto mais que Ledo foi sempre em sua vida famoso como grande e entusiasta apreciador do belo na arte, e transportado adorador do belo na mulher.
Joaquim Gonçalves Ledo foi grande e fulgurosa inteligência e grande coração patriota, e se quiserem nodoar-lhe a memória ilustre pelas suas fraquezas ou pecados de amoroso culto rendido à Chiquinha, e a outras belas damas, adeus memória de Francisco I, de Henrique IV, de Luís XIV de França, de D. Pedro I do Brasil, dos Richelieu, do regente Duque de Orleans, de José Bonifácio, etc., etc., etc., etc. e no fim de tantos et coetra raro seria o rei, o ministro, o herói, e até o João Fernandes capaz de atirar a pedra sobre aquele benemérito e glorioso fluminense.
Mas Ledo, que andava doido pela Chiquinha, tinha, certamente, ótimas razões para duvidar da fidelidade dessa encantadora rapariga, que aliás também o amava com dedicada preferência; injustíssimo, porém, se mostrava às vezes ciumento de Bernardo Avelino, que, coitado, realmente gostava muito da Chiquinha, mas gastava debalde com ela sua prosa e seus versos, sem dúvida porque, pobre como era, o poeta não tinha senão prosa e versos para recomendar o seu amor.
Um dia (foi depois de 15 de setembro de 1822), Ledo, jubiloso e feliz pelo triunfo da causa da independência da pátria, à que tão dedicada e gloriosamente servira, foi radioso e alegre render finezas à Chiquinha.
Tinha a bonita moça além da sua boniteza e graça natural o dote de focar sofrivelmente guitarra, e de cantar com excelente voz modinhas e lundus.
Dizem que não havia quem como ela cantasse com doçura, expressão e requintado gosto a modinha então em moda, versos do ilustrado filósofo depois Marquês de Maricá:
Marília, se me não amas,
Não me digas a verdade,
Finge amor, tem compaixão,
Mente, ingrata, por piedade.
Doce mentira
Sabe agradar;
Um desengano
Pode matar.
Naquele dia a Chiquinha pediu a Ledo que lhe escrevesse alguns versos para a música de modinha ou de lundu que ela costumava cantar, favor que aliás estava habituada a merecer.
Ledo tomou a pena e escreveu a seguinte quadra com o seu estribilho:
Nesta rua tenho ao lado
Um cego que é rico e nobre,
E defronte um namorado
Poeta infeliz e pobre.
Não sou indiscreta,
Que procure o esquivo;
E quanto ao poeta
De versos não vivo.
O epigrama não subira à altura das admiradas inspirações e do aticismo de Ledo; era antes ligeira zombaria feita a Chiquinha nas alusões ao ilustre varão, honesto chefe de família que não a olhava e parecia estranho à existência da mais que leviana rapariga, e a Bernardo Avelino, o poeta pobre, que a namorava.
Mas a Chiquinha riu muito, achou ótima a quadrinha, e tanto cantou-a, que Bernardo Avelino, tendo dela conhecimento, deu-lhe resposta em furioso soneto, do qual possuo cópia, mas não o transcrevo aqui, porque, além de muito injurioso, chegou levado pela cólera até a aproveitar aleives que inimigos tinham assacado contra Ledo.
O ilustrado e célebre fluminense desprezou a insultuosa desforra, dando-se por bem consolado com o amor da Chiquinha - como dizia a brincar, e para mais atormentar o poeta a quem na verdade provocara, ridicularizando-o.
Mas de fato não sobrava tempo a Ledo para combates mesquinhos e pouco dignos dele e de Bernado Avelino.
Ledo achava-se então muito absorvido em transcendentes assuntos políticos do Império nascente, já proclamado, mas à espera da sua constituinte, e não menos o atarefavam as contendas e lutas de influência predominante no seio da maçonaria, que guarda o segredo das causas de alguns dos mais consideráveis acontecimentos da época.
A 28 de outubro de 1822 demitiu-se o Ministério Andrada, e a 30 do mesmo mês e ano voltou de novo ao poder com a força e o prestigio de representação popular que o reclamara, e com ostentosa, pública e comovida aceitação do Imperador D. Pedro I.
Ledo, que era na maçonaria antagonista dos Andradas, logo na manhã de 31 de outubro deixou sua casa e ocultou-se, prevendo perseguições políticas.
Tinha adivinhado.
Os Andradas voltaram ao governo armados de medidas extraordinárias, e logo ordenaram e fizeram efetuar a prisão de José Clemente Pereira, que fora o Presidente da Câmara Municipal a 9 de janeiro, no dia do Fico; de Nóbrega que tinha sido Ministro da Guerra no ministério dos mesmos Andradas; do Padre (depois cônego) Januário da Cunha Barbosa, companheiro de Ledo na redação do Reverbero e nos mais ingentes trabalhos para a independência da pátria.
Todos esses beneméritos foram deportados e provaram em França o pão do desterro.
Arbitrariamente condenado, como esses amigos políticos seus e maçons da mesma parcialidade, à prisão e ao desterro, Ledo escapou, escondendo-se às diligências da polícia do governo.
Como nestas Memórias não escrevo história política, deixo de parte o estudo e a apreciação destes lamentáveis fatos, que somente poderiam ter ficado bem e publicamente esclarecidos, se tivesse podido dar-se pública interpelação aos ministros, e ampla discussão parlamentar na maçonaria de 1822, de que eram membros influentíssimos aqueles desterrados e D. Pedro I, José Bonifácio, Martim Francisco, Ledo e todas as notabilidades da época.
Certo é que abriu-se devassa sobre conspiração e planos revolucionários dos varões ilustres já deportados, beneméritos da independência, que por isso e só por isso foram privados da glória de ser eleitos deputados à Constituinte brasileira, cabendo-lhes repetir lá de longe, da terra do desterro, o sic vos non vobis de Virgílio.
Mas eu disse acima que Ledo, homem habilíssimo e sagaz, logo a 31 de outubro, adivinhando imediata e arbitrária perseguição, eclipsara-se prudente e cauteloso, de modo que não houve empenho policial que pudesse conseguir apanhá-lo, posto que ele nem um só dia se tivesse arredado da cidade, e pelo contrário em não poucas noites ousasse sair a passeio, ou a mudar de hospedagem, tomando diversos disfarces.
Todavia não era possível a Ledo prolongar sem vexame e sem incômodo pessoal e comprometimento de amigos essa anômala situação de suspeito conspirador escondido e procurado, mas também ele não queria dar aos Andradas o gosto da sua prisão e do seu desterro forçado.
Ainda nisso andavam capricho e antagonismo de elementos maçônicos.
Tinha de sair do porto do Rio de Janeiro para Buenos Aires um navio pertencente a negociante que sem dúvida era filho da viúva, e nesse barco foi fraternalmente garantida a Ledo passagem segura para a República do Prata.
Mas de que modo poderia Ledo ir até a praia, embarcar em bote ou escaler, e recolher-se ao navio escapando à policia, que tomara a peito prendê-lo?...
Tomaram-se precauções; preparou-se tudo. Ledo, porém, que por mais de uma vez disfarçado se expusera, indo à noite ver a Chiquinha, quis a todo transe despedir-se dela na hora de sua partida.
Forçoso foi confiar o segredo da empresa à moça de costumes impuros e portanto menos digna de confiança em caso tão delicado.
Mas a Chiquinha desprezando apreensões de provável perseguição subseqüente, e mostrando-se toda dedicada a Ledo, prestou-se fiel e exaltadamente ao plano de sua fuga.
Querem alguns que Joaquim Gonçalves Ledo tivesse saído de uma casa da Rua do Hospício disfarçado com hábito de frade franciscano, e que se dirigisse dali diretamente à praia para embarcar.
Que ele saiu de amiga e fraternal hospedagem na Rua do Hospício, é certo; tenho porém informações fidedignas de que foi da casa da Chiquinha que seguiu para o seu embarque, e bastando esse fato para assinalar imprudência, não creio que ele provocasse reparos e suspeitas entrando já vestido de frade na casa de má reputação.
Prefiro por isso esta outra versão.
Na aprazada noite, Ledo foi sob qualquer disfarce despedir-se da Chiquinha, objeto de sua apaixonada afeição em 1822, e ali no pequeno sobrado da Rua do Ouvidor chegada a hora da partida tomou o preparado hábito de frade franciscano (que lho perdoem os religiosos dessa ordem), imprimiu na face da Chiquinha seu último e fervoroso beijo, já nesse momento ainda mais fervoroso - beijo de frade - e partiu.
Também pretendem alguns que o ilustre perseguido político fora embarcar, disfarçando-se com vestidos de mulher; isso não é verossímil, não é; conheci pessoalmente Ledo; não era homem de alta estatura, mas representaria mulher gigantesca, excitadora de observações e de curiosidade importuna.
Ele incorreu no escândalo de sair simulado de frade da casa da Chiquinha.
E foi indo em direção ao mar, a descer vagaroso e grave pela Rua do Ouvidor.
Não houve quem disputasse o passo ao frade.
Aquele tempo não era o de hoje. Então o frade ainda era grande coisa, e o hábito franciscano ainda tinha o prestigio de S. Carlos, de Sampaio, de Montalverne e de outros luminares da tribuna sagrada.
E Ledo recebido em escaler, cujo improvisado patrão era um irmão que o esperava, foi levado para o navio mercante, onde ceou com alguns outros irmãos, e no dia seguinte saiu barra afora para Buenos Aires.
Quem não achar muito bonita esta conspiração antioficial, este generoso auxílio da maçonaria, é incapaz de compreender o belo na sociedade, e na vida dos homens.
A Chiquinha passou o resto daquela noite de despedida a chorar saudosa e tristemente; no outro dia ainda chorou; mas no seguinte recomeçou a rir e a cantar modinhas e lundus, como dantes.
Sina das que são Chiquinhas, como ela o era.
A devassa contra os supostos conspiradores e revolucionários continuou, e é triste lembrar que entre as testemunhas comprometedoras dos patriotas desterrados e de Joaquim Gonçalves Ledo se contaram companheiros dos mesmos na revolução gloriosa da Independência, e que uma dessas testemunhas da devassa foi o poeta Bernardo Avelino.
Quando cerca de dois anos depois Ledo voltou para o Rio de Janeiro, se ainda conservava lembranças da Chiquinha, teve o desgosto de não encontrá-la mais nem na Rua do Ouvidor, nem em alguma outra da cidade.
A bonita, mas pobre e infeliz rapariga, seguindo seu mísero destino, um dia batera as asas, e como não tinha de quem despedir-se, ninguém soube para onde ela voou.
A Chiquinha foi um pirilampo na Rua do Ouvidor.
Não sei bem determinar qual foi a pequena casa térrea onde morou o poeta Bernardo Avelino, e por isso não a indico.
De lado esquerdo da rua e perto do Largo hoje Praça de S. Francisco de Paula mostra-se o grande sobrado, que é desde muitos anos ocupado pelo Hotel Ravot.
Foi essa casa propriedade de José Luís de Carvalho e Melo e ainda o é de seu digno filho do mesmo nome e título nobiliário.
Luís José de Carvalho e Melo, deputado da Constituinte brasileira, Ministro dos Negócios Estrangeiros a 15 de novembro de 1823, conselheiro de Estado e um dos colaboradores e signatários do projeto da Constituição que foi jurada a 25 de março do ano seguinte, Visconde da Cachoeira e Senador do Império, foi jurisconsulto de alta reputação, magistrado probo e justo, e varão de muito merecimento e de virtudes.
Conservou-se no ministério com a pasta dos negócios estrangeiros até 1825 e faleceu em 1826.
De 15 de novembro de 1823 até sua morte o Visconde da Cachoeira sofreu quebra considerável de sua popularidade, porque o partido liberal do Brasil não lhe perdoou o ter entrado para o ministério três dias depois da dissolução da Constituinte (da qual fora membro distinto e muito considerado), tomando por esse fato manifesta responsabilidade daquele desastroso golpe de Estado.
Como o Visconde da Cachoeira também o Marquês de Caravelas (José Joaquim Carneiro de Campos) igualmente deputado da Constituinte, Conselheiro de Estado e colaborador do projeto da Constituição em 1823, ficou suspeito aos liberais que retiraram dele todas as suas simpatias e toda a confiança.
Entretanto eram ambos liberais moderados, notáveis e ilustrados pensadores, que após a dissolução da Constituinte provavelmente entenderam que o seu dever de patriotismo exigia deles o sacrifício da popularidade que gozavam, em proveito e no interesse da monarquia constitucional representativa, que fora e era o sistema de governo de suas idéias políticas.
A história começou já a fazer justiça aos varões ilustres maljulgados pelas paixões da época.
Em frente à casa do Visconde da Cachoeira, ou do Hotel Ravot, vê-se uma outra de duas portas e de dois pavimentos, atualmente ocupada por loja francesa de toilettes.
Foi nesse modesto ubi que se fundou em maio de 1869 a Reforma, órgão do partido liberal em oposição.
Como já ficou dito, Sabino Reis, finado este ano em Paris, foi o gerente e dedicadíssimo administrador da Reforma que lhe deveu sacrifícios de tempo, de atividade e de dinheiro.
Tenho saudades da primeira época daquele diário político liberal que iniciou na sua redação a prática generosa de ser cada artigo assinado pelo seu autor: nem uma só vez deu-se abuso ou dissimulo do próprio nome com o empréstimo de alheio; nem um só dos escritores liberais recuou jamais ante a responsabilidade das suas idéias e do seu esgrimir na polêmica séria, enérgica e às vezes ardente com os adversários. Estava também sistemática ou consequentemente assentado que, dada a hipótese de responsabilidade efetiva de qualquer artigo, o seu autor se apresentasse pronto a sujeitar-se à ação da lei.
Essa prática não pôde resistir por muito mais de ano à luta desigual com os anônimos da imprensa adversária. A Reforma seguiu seu caminho prestando serviços, como ainda presta, ao partido liberal, de que é órgão na imprensa; mas eu creio que ela não teria a influência que teve e tem entre os liberais do Império, se não rompesse logo em maio de 1869, ganhando incontestável força moral com os seus artigos todos assinados por escritores liberais, todos bem conhecidos e todos tomando a responsabilidade legal de suas idéias, e do modo ou da forma com que menos ou mais fervorosos as expunham e pregavam.
Este capítulo saiu-me quase todo cheio de reminiscências políticas, de que, suponho-o, os meus leitores gostam menos do que de tradições de outro gênero.
Mas a Rua do Ouvidor é de todas as da cidade do Rio de Janeiro a mais leviana e a mais grave, a mais mentirosa e a mais verdadeira, a mais absurda e a mais profética rua política; rivaliza nesse ponto com a nossa Praça do Comércio, e, portanto, era de indeclinável dever meu registrar nestas Memórias as suas casas notáveis em relação à política.