O compadre, apenas dera por falta do afilhado, viu-se preso da maior aflição; pôs em alarma toda a vizinhança, procurou, indagou, mas ninguém lhe deu novas nem mandados dele. Lembrou-se então da via-sacra, e imaginou que o pequeno a teria acompanhado; percorreu todas as ruas por onde passara o acompanhamento, perguntando aflito a quantos encontrava pelo tesouro precioso de suas esperanças; chegou sem encontrar vestígios algum até o Bom Jesus, onde lhe disseram ter visto três meninos que por se portarem endiabradamente na ocasião da entrada da via-sacra o sacristão os correra para fora da igreja.

Foi este o único sinal que pôde colher.

Vagou depois por muito tempo pela rua, e só se recolheu para casa estando já a noite adiantada. Ao chegar à porta de casa abriu-se o postigo de uma rótula contígua, e uma voz de mulher perguntou:

— Então vizinho, nada?

— Nada, vizinha, respondeu o compadre com voz desanimada.

— Ora, quando eu lhe digo que aquela criança tem maus bofes...

— Vizinha, isto não são coisas que se digam...

— Digo-lhe e repito-lhe que tem maus bofes... Deus permita que não, mas aquilo não tem bom fim...

— Oh! senhora, replicou o compadre muito irritado, que tem a senhora com a minha vida e mais das coisas que me pertencem? Meta-se consigo, cuide nos seus bilros e na sua renda, e deixe a vida alheia.

Entrou depois para casa murmurando:

— Um dia faço aqui uma estralada com esta mulher: é sempre isto! parece um agouro!

Toda a noite levou o pobre homem acordado a pensar nos meios de achar o pequeno: e depois de ter formado mil planos, disse consigo:

— Em último lugar vou ter com o major Vidigal.

E esperou que o dia voltasse para prosseguir em suas pesquisas.

Entretanto vamos satisfazer ao leitor, que há de talvez ter curiosidade de saber onde se meteu o pequeno.

Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação bem merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus costumes e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, eperteza e velhacaria, e se não, o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito. Viviam em quase completa ociosidade; não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos.

Os dois meninos com quem o pequeno fugitivo travara amizade pertenciam a uma família dessa gente que morava no largo do Rossio, lugar que tinha por isso até algum tempo o nome de campo dos Ciganos. Tinham esses meninos, como dissemos, pouco mais ou menos a mesma idade que ele: porém acostumados à vida vagabunda, conheciam toda a cidade, e a percorriam sós, sem que isso causasse cuidado a seus pais; nunca faltavam a acompanhamento de via-sacra, nem a outra qualquer coisa desse gênero. Encontrando-se nessa noite, como já sabem os leitores, com o nosso futuro clérigo, a ele se associaram, e o carregaram para casa de seus pais, onde, como de costume, havia festa de ciganos (e este costume ainda hoje se conserva); faziam, dissemos, festa todos os dias, porém motivavam-na sempre. Hoje era um batizado, amanhã um casamento, agora anos deste, logo anos daquele, festa deste, festa daquele santo. Na noite de que tratamos havia um oratório armado, e festejava-se um santo de sua devoção; não lhe sabemos o nome.

Pelo caminho o menino teve alguns escrúpulos e quis voltar, porém os outros tal pintura lhe fizeram do que ele ia ver se os acompanhasse, que decidiu-se a segui-los até onde quisessem.

Chegaram enfim à casa, onde já tinha começado a festa.

Ao lado esquerdo da sala estava o oratório iluminado por algumas pequenas velas de cera, sobre uma mesa coberta com uma toalha branca, servia-lhe de espaldar uma colcha de chita com folhos. Em roda da sala estavam colocados assentos de toda a natureza, bancos, cadeiras, etc., onde se assentavam os convidados. Não eram estes em pequeno número, eram ciganos e gente do país; traziam toilettes de toda a casta, do sofrível para baixo; mostravam-se alegres e dispostos a aproveitarem bem a noite.

Os meninos entraram sem que alguém reparasse neles e foram colocar-se junto do oratório.

Daí a pouco começou o fado.

Todos sabem o que é fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito.

O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco e pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante algumas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar.

Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado.

Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos; seguindo com a maior certeza o compasso da música, ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados, depois repelem-se, depois juntam-se; o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente, outras vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se de novo.

Há também a roda em que dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve, porém sempre igual e a um só tempo.

Além destas há ainda outras formas de que não falamos. A música é diferente para cada uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes de pensamento verdadeiramente poético.

Quando o fado começa custa a acabar; termina sempre pela madrugada, quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras.

O menino, esquecido de tudo pelo prazer, assistiu à festa enquanto pôde; depois chegou-lhe o sono, e reunindo-se com os companheiros em um canto, adormeceram todos embalados pela viola e pelo sapateado.

Quando amanheceu acordou sarapantado; chamou um dos companheiros, e pediu que o levasse para casa.

O padrinho ia saindo para começar nas pesquisas quando esbarrou com ele.

— Menino dos trezentos... onde te meteste tu?...

— Fui ver um oratório... Não diz que eu hei de ser padre?!...

O padrinho olhou-o por muito tempo, e afinal, não podendo resistir ao ar de ingenuidade que ele mostrava, desatou a rir, e levou-o para dentro já completamente apaziguado.