O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados, desses que se chamam da carne, e que não hão de ser levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do tempo da sua mocidade: o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa, fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos. Por castigo em nada havia ele saído ao pai, e nem os conselhos, nem os cuidados e nem o exemplo deste puderam encaminhá-lo por boa vereda, Aos 20 anos, tendo sentado praça, era um cadete desordeiro, jogador e o mais insubordinado do seu regimento. Bastantes vergonhas custara ao pobre pai, que cuidadoso procurava sempre por todos os meios encobrir-lhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia, já pagando por ele dívidas de jogo, já atabafando-lhe as desordens e curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários. Houve porém uma que as circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio. Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del-rei, estando o infeliz pai em preparativos de viagem, viu entrar-lhe pela porta adentro uma mulher velha, baixa, gorda, vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da baixa classe do país, com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de chita, um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso embaixo do queixo, e uns grossos sapatões nos pés. Parecia presa de grande agitação e de raiva: seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das órbitas afundadas pela idade, suas faces estavam rubras e reluzentes, seus lábios franzinos e franzidos apertavam-se violentamente um contra o outro como prendendo uma torrente de injúrias, e tornando mais sensível ainda seu queixo pontudo e um pouco revirado.

Apenas se achou ela em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido, O capitão recuou instintivamente um passo.

— Ah! Sr. capitão, disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras, chegando a boca muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça: olhe que isto assim não vai direito; fazer-me andar a cabeça à roda... põe-me os miolos a ferver... e eu estouro... já viu!...

— Mas o que há então, mulher?... Eu não lhe conheço...

— Não quero cá saber de nada... Já lhe disse que isto não vai bem... e eu estouro...

— Mas por quê?... o que é que tem?... É preciso que você diga...

— Não tenho nada que dizer... Estouro, já lhe disse, Sr. capitão!...

— Pois estoure com trezentos diabos! mas ao menos diga pelo que é que estoura.

— Não tenho nada que dizer... já lhe disse... isto põe a cabeça da gente como uma cebola podre, não tem lugar nenhum... Ir-me por lá com ares de santarrão comprar frutas...

— Quem, mulher de Deus? Você não se explicará?

— Qual explicar, nem meio explicar! Pois então por ser cá a gente uma mulher velha, que já perdeu os achegos ao mundo, e ela uma pobre rapariga tola e bisbilhoteira, com vontade de saber de tudo, vir-me cá a mim pregar o mono na bochecha, e a ela em lugar ainda mais melindroso...

— Mas quem é que pregou monos a você mais a ela? e quem é ela?...

— Faz-se de novo! continuou a mulher exasperando-se; pois o Sr. capitão já não tinha consentido no casamento?...

— Que casamento? com quem?

— Ai, ai, ai, que cá me anda a cabeça como uma nora solta... Pois o Sr. capitão não sabe que tem um filho?...

— Sim, sei, respondeu este começando a descobrir o mistério.

— E não sabe que ele é um pedaço de um mariola!... A isto o capitão podia, porém não se animou a responder afirmativamente, e perguntou somente:

— E que mais?...

— E não sabe também que eu tenho uma filha que trouxe do Lumiar, a Mariazinha?

— Como, se eu nem a conheço?...

— Pois é uma rapariga muito capaz... e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá a entender com ela muito tempo: namoro para cá, namoro para lá, presentes daqui, promessas dacolá... e afinal de contas... brás!... E então que lhe parece?

O capitão foi às nuvens.

— Até lhe prometeu casamento, dizendo que o Sr. Capitão consentia... Ora eu bem sei que ela também teve a sua culpa... mas eu desculpo isso, porque também já fui rapariga... e sei que quando começa cá o diabo no corpo, adeus! Mas isto põe a gente tonta, porque... enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna.

O capitão tinha compreendido tudo, e por mais algumas explicações que se seguiram viu-se reduzido ao maior aperto. Desta vez a diabrura do rapaz era irremediável. A mulher tinha toda a razão; porém casar seu filho com a filha de uma colareja... isso não poderia ser; além de que nada tinha que deixar ao filho, e só com o soldo de cadete não poderia sustentar mulher e casa, restando além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos...

Despediu a velha, não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso.

— Olhe, veja lá, disse ela ao sair; se o negócio não se arranja, eu estouro! ...

O pobre homem ficou nos apuros; foi ter com a ofendida, e procurou, oferecendo-lhe alguma coisa para seu dote, obter que ela se calasse, e que desistisse de suas pretensões; esta quis a princípio recusar, porém a mãe aconselhou-a que aceitasse, sem dúvida com medo de estourar. Deste modo ficou o caso um pouco remediado, posto que a consciência do capitão, que era de homem de honra, não ficara de modo algum satisfeita. O tempo porém não dava lugar a mais; era chegado o momento de acompanhar a el-rei, e ele partiu deixando o filho recomendado a quantos amigos tinha. Decorreram os anos, e quando menos esperava soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal Mariazinha, que então já era a Maria que os leitores bem conhecem. Procurou fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai honrado, porém quis fazê-lo ocultamente. Foi ter com a comadre, a quem já conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade. Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela. Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em ocasião em que este se achava embaraçado por causa de umas irregularidades em uns autos que se lhe atribuía, e que a comadre o aconselhou de procurá-lo mesmo sem o conhecer, a titulo de que era muito bom homem e amigo de servir a todos.

Eis aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenente-coronel por intermédio da comadre, e por que este prometeu empenhar-se por ele, o que com efeito tratou de cumprir.

Como dissemos, apenas a comadre saiu, saiu ele também, e foi tratar de pôr o Leonardo na rua. Dirigiu-se primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo todas as informações, e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram exatíssimas, e que ela não deixara escapar a menor circunstância. O Leonardo repetiu e confessou tudo o que ele já sabia, corrido de embaraço e de vergonha; e ao despedir-se o velho:

— Sr. tenente-coronel, disse-lhe ele, V.S. já me livrou de uma que não era culpa minha; livre-me desta também... olhe que está comprometida a minha honra...

O Leonardo esquecia-se da teoria da Maria.

— A honra não, respondeu o velho, o que está comprometido é o seu juízo: hão de dizer (e eu sou o primeiro) que você está doido.

— Fugi de uma saloia e fui cair numa cigana... tem razão!...

O velho saiu sorrindo-se. Daí dirigiu-se à casa de um seu amigo, fidalgo de valimento, para dele obter a soltura do Leonardo. Morava ele em uma das ruas mais estreitas da cidade, em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos postigos que se abriam às furtadelas, sem que ninguém de fora pudesse ver quem a eles chegava.

A poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam à casa um aspecto triste no exterior; quando ao interior, andava pelo mesmo conseguinte. A sala era pequena e baixa; a mobília que a guarnecia era toda de jacarandá e feita no gosto antigo; todas as peças eram enormes e pesadas; as cadeiras e o canapé, de pés arcados e espaldares altíssimos, tinham os assentos de couro, que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha. Quem quiser ter idéia exata destes móveis procure no consistório de alguma irmandade antiga, onde temos visto alguns deles.

As paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros, ou antes de caixas de vidro que deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas as cores, que não eram totalmente feios, porém que não tinham decerto o subido valor que se lhes dava naquele tempo. À direita da sala havia sobre uma mesa um enorme oratório no mesmo gosto da mobília.

Havia finalmente em um canto uma palma benta, destas que se distribuem no domingo de ramos; e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de poeira, terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho tenente-coronel, que era pouco mais ou menos semelhante em todas as casas ricas de então, e por isso nos demoramos em descrevê-lo.

Sem se fazer esperar muito, apareceu o dono da casa: era um homem já velho e de cara um pouco ingrata; vinha de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão.

Em poucas palavras o velho expôs-lhe o caso e lhe pediu que fosse falar a el-rei em favor de Leonardo.

A princípio opôs ele algumas dúvidas, dizendo:

— Homem, pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho? El-rei há de rir-se do meu afilhado.

Afinal, porém, teve de ceder a instâncias da amizade, e prometeu tudo. O velho saiu satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo, que pulou de contente. Poucos dias depois chegou a ordem de soltura, e ele foi posto na rua. Acreditara que tinha acabado de passar pelo pior dos suplícios, porém insuportáveis torturas começaram para ele no dia em que saiu da cadeia: a mofa, o escárnio, o riso dos companheiros seguiu-o por muitos dias, incessante e martirizador.