É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem; foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha, desgostaram a comadre, mas que não alteraram em coisa alguma a amizade do barbeiro pelo afilhado: cada vez esta aumentava, se era possível, tornava-se mais cega. Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava para o pequeno, e tanto mais que durante este tempo fizera este alguns progressos: lia soletrado sofrivelmente, e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendera a ajudar missa. A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato, o padrinho exultou; foi um dia de orgulho e de prazer: era o primeiro passo no caminho para que ele o destinava.
— E dizem que não tem jeito para padre, pensou consigo; ora acertei o alvo, dei-lhe com a balda. Ele nasceu mesmo para aquilo, há de ser um clérigo de truz. Vou tratar de metê-lo na escola, e depois... toca.
Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este em uma casa da rua da Vala, pequena e escura.
Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto havia penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo.
Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos 6 nos discípulos por dá cá aquela palha. Por isso era um dos mais acreditados da cidade. O barbeiro entrou acompanhado pelo afilhado, que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola, que nunca tinha imaginado. Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito.
As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.
— Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho.
— E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a palmatória.
O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.
— É verdade: faz santos até as feras, disse traduzindo.
O mestre sorriu-se da tradução.
— Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre.
O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.
— Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem.
— Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...
O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.
Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde.
— Mas você não sabe que é preciso aprender?...
— Mas não é preciso apanhar...
— Pois você já apanhou?...
— Não foi nada, não, senhor; foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino que estava ao pé de mim; o mestre ralhou comigo, e eu comecei a rir muito...
— Pois você vai-se rir quando o mestre ralha...
Isto contrariou o mais que era possível ao barbeiro. Que diabo não diria a maldita vizinha quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola?... Mas não haviam reclamações, o que o mestre fazia era bem-feito. Custou-lhe bem a reduzir o menino a voltar nessa tarde à escola, o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não desse mais. Isto porém não era coisa que se fizesse, e não foi senão um engodo para arrastar o pequeno. Entrou este desesperado para a escola, e por princípio nenhum queria estar quieto e calado no seu banco; o mestre chamou-o e pô-lo de joelhos a poucos passos de si; passado pouco tempo voltou-se distraidamente, e surpreendeuo no momento em que ele erguia a mão para atirar-lhe uma bola de papel. Chamou-o de novo, e deu-lhe uma dúzia de bolos.
— Já no primeiro dia, disse, você promete muito...
O menino resmungando dirigiu-lhe quanta injúria sabia de cor.
Quando o padrinho voltou de novo a buscá-lo achou-o de tenção firme e decidida de não se deixar engodar por outra vez, e de nunca mais voltar, ainda que o rachassem. O pobre homem azuou com o caso.
— Ora logo no primeiro dia!... disse consigo; isto é praga daquela maldita mulher... mas hei de teimar, e vamos ver quem vence.