Era esse dia domingo do Espírito Santo. Como todos sabem, a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos, uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de grande agitação; longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feito remontar os leitores. A festa não começava no domingo marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias cremos, para que tivesse lugar as novenas. O primeiro anúncio da festa eram as Folias. Aquele que escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; os mais, se delas se ocupavam, era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas. O que dantes se passava, bem encarado, não estava muito longe de merecer censura; porém era costume, e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio, porque leva uma risada na cara, e ouve uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje.
Entretanto digamos sempre o que eram as Folias desse tempo, apesar de que os leitores o saberão pouco mais ou menos. Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril. Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.
Confessem os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se um imperador vestido de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores, ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: os irmãos aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de porta em porta.
Enquanto caminhava o rancho tocava a música de barbeiros; quando parava, os pastores, acompanhando-se com seus instrumentos, cantavam; as cantigas eram pouco mais ou menos no gênero e estilo desta:
- O Divino Espírito Santo
- É um grande folião,
- Amigo de muita carne,
- Muito vinho e muito pão.
Eis aí o que era a Folia, eis aí o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho.
A este episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos em breve dar conta aos leitores. Por agora porém voltemos aos nossos visitantes.
Chegaram eles à casa de D. Maria, e acharam ainda todos à janela, porque acabava de passar a Folia. D. Maria recebeu-os com a sua costumada amabilidade. Leonardo ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D. Maria; porém, sem saber por quê, não teve desta vez mais vontade de rir-se; entretanto a menina continuava a ser feia e esquisita; nesse dia estava ainda pior do que nos outros. D. Maria tinha tido pretensões de asseá-la; vestira-lhe um vestido branco muito curto, pusera-lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e penteara-a de bugres. Por isso, agora que tendo ela tirado a costumada viseira de cabelos, lhe podemos ver o rosto, digamos, em abono da verdade, que se estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo, podia-se-lhe notar que não era tão feia de cara como a princípio pareceu.
O caso foi que o Leonardo começou a olhar para ela sem mais vontade de rir-se; olhou uma, duas, três, quatro, muitas vezes enfim, sem que nunca satisfizesse ao que ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura.
A menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração, de olhos baixos e queixo no peito. Entretanto quem tivesse hábito de observador fino poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido, e algum olhar fugaz dirigido para o lado do Leonardo.
D. Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume.
Na ocasião da saída, D. Maria, dirigindo-se ao compadre, disse-lhe:
— Olhe, escute: nós hoje vamos ao Campo ver o fogo, bem podíamos ir todos juntos; que diz?
— Sim, podíamos, respondeu o compadre: eu tinha de ir só com o meu rapaz; mas uma vez que me oferece, iremos todos juntos. E leva a senhora a sua menina, não é?
— Oh! levo, coitada; ela nunca viu o fogo; no tempo do pai nunca saía...
Sem pensar, o Leonardo estremeceu de contente: pareceu-lhe que desse modo teria mais ocasião de satisfazer a sua curiosidade. A menina nem se mexeu; pareceu-lhe aquilo absolutamente indiferente.
— Pois então estamos ajustados, acrescentou o compadre, e à noite cá as viremos buscar.
E saíram.