Memórias de um Sargento de Milícias/XLII
Estavam pois as contas ajustadas completamente entre o Leonardo e o toma-largura; haviam-se vingado um do outro: o último golpe na luta competira ao Leonardo: ele abençoou o acaso, e mesmo o major Vidigal, por lhe ter fornecido ocasião de ir arrancar dos lábios de seu rival a taça da ventura. Até quase que estimou que lhe tivessem sentado praça; e bem dissemos nós que para ele não havia fortuna que não se transformasse em desdita, e desdita de que lhe não resultasse fortuna.
O toma-largura, como dissemos, fora levado pelo Leonardo; e os leitores, familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal, adivinham já que lhe indicaram o caminho da casa da guarda no largo da Sé. O estado em que ele se achava não permitiu porém que o levassem até lá. Os vapores que do estômago lhe tinham subido à cabeça foram-se pouco a pouco condensando, e em meio do caminho pesavam-lhe sobre o cérebro vinte arrobas; a cabeça, não se podendo manter, abandonou-se ao tronco, que, achando o peso excessivo, quis apelar para as pernas; estas porém não eram mais fortes, e, curvando-se trêmulas e bambas, deram com o valentão de ainda há pouco estirado na calçada. Os soldados não o puderam levantar, porque era, como dissemos a princípio, de uma corpulência colossal. Foi mister pois abandonar a presa: o major não teve grande dificuldade nisso, primeiro, pelo trabalho que daria qualquer outra resolução, segundo, porque se bem que da última classe, sempre era o toma-largura gente da casa real, e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas imunidades.
O Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem resultado mais estrondoso a primeira presa que fazia, pois era isto de mau agouro para o seu futuro militar; mas também sua mais bela vingança estava tomada.
Ficou pois o toma-largura abandonado na calçada.
Satisfaçamos agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores de saber o como chegara o Leonardo à posição em que se achava. Agarrado pelo major na porta da ucharia, como se sabe, fora por ele em pessoa conduzido a lugar seguro, donde só saíra para sentar praça no Regimento Novo. Todos os batalhões que havia na cidade tinham uma companhia de granadeiros, e havendo uma vaga na companhia do Regimento Novo, fora o Leonardo escolhido para preenchê-la. Sabendo disto o major, reclamou-o para seu serviço (porque era dessas companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial), pois como homem experimentado naquelas coisas, pressentira que ele lhe seria um valioso auxiliar. Até um certo ponto o major não se enganou. Com efeito o Leonardo, sendo naturalmente astuto, e tendo até ali vivido numa rica escola de vadiação e peraltismo, deveria conhecer todas as manhas do ofício. Havia porém uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços, e era que com ele próprio, com suas próprias façanhas, tinha muitas vezes o major de gastar o tempo que lhe era preciso para o demais. O poder dos hábitos adquiridos era nele tal, que nem mesmo o rigor da disciplina lhe servia de barreira.
Contemos a primeira diabrura que lhe lembrou praticar depois que vestiu farda, e que foi tanto mais sensível quanto a princípio se mostrara um soldado por tal maneira sisudo que ia quase adquirindo reputação de rígido.
Os gaiatos e suciantes da cidade, a quem o major Vidigal dava constantemente caça, lembraram-se de imortalizar as suas façanhas por qualquer meio, e inventaram um fado com o seguinte estribilho nas cantigas:
- Papai lelê, seculorum.
Nesse fado a personagem principal representava o major que, figurado morto, vinha estender-se amortalhado no meio da sala; as demais personagens cantavam-lhe em roda cantigas alusivas, que terminavam todas pelo estribilho que acima indicamos.
O major, que disto soubera, andava em busca de uma ocasião oportuna para tirar desforra de semelhante gracejo, que dava a entender qual era, a seu respeito, o desejo dos que o tinham inventado. Teve um dia denúncia que numa casa do morro da Conceição se preparava para essa noite um rigoroso-papai lelê,-e dispôs as coisas para pilhar os da roda em flagrante.
À hora oportuna mandou dois ou três granadeiros adiante, cada um por sua vez, para examinar o que havia, tendo combinado primeiramente um sinal positivo e outro negativo para indicarem uns aos outros se havia ou não ocasião e motivo de dar o assalto: estes sinais o granadeiro que devia aproximar-se mais da casa comunicaria ao que lhe ficasse imediato, este passaria adiante, o outro faria o mesmo até chegar ao lugar em que estava o major; era um verdadeiro sistema de sentinelas avançadas, como se se tratasse de uma grande campanha. No caso de ser dado o sinal positivo, marchariam todos vagarosamente e se reuniriam para o assalto; dado o sinal negativo, dispersar-se-iam em silêncio, porque um dos maiores caprichos do major era nunca mostrar que havia sido logrado. Ao Leonardo coube a incumbência de ser a vedeta mais próxima ao inimigo, e de dar o primeiro sinal. Marchou pois adiante, e os companheiros postaram-se à espera. Esperaram por longo tempo, e cansaram de esperar; finalmente, quando já se iam dispondo a contravir às ordens e abandonar o posto para procurar o Leonardo, ouviram três vezes seguidas um longo assovio, que era o sinal negativo convencionado. Em virtude disto dispersaram-se exasperados, e foram depois reunir-se ao major embaixo da ladeira, no lugar que dá para a entrada do Aljube. Aí reunidos, esperaram muito tempo pelo Leonardo sem que ele aparecesse. O major principiou a cismar com o caso; de novo e repentinamente deu ordem de subir o morro. Subiram com efeito, e marchando desta vez o major adiante, foram ter à casa indicada. Com surpresa de todos, apenas se foram aproximando viram luzes e ouviram o zunzum das violas e a toada das cantigas. Fervia dentro o fado rigoroso. Sem necessitar grandes precauções, porque todos pareciam entregues à maior segurança, cercou o major a casa, e apanhou tudo, como se costuma dizer, com a boca na botija. Estava-se exatamente no ponto solene da cerimônia.
Achava-se a personagem que representava o papai amortalhado em um lençol, com a cabeça coberta, deitado no chão, e a chusma em roda a cantar e a dançar.
Quando o major bateu, e foi entrando, acompanhado da sua gente, ficou tudo gelado de medo: o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou depois imóvel, como se fosse de pedra, representando com mais propriedade do que talvez desejasse o papel de morto. Segundo seu costume, o major fez continuar por um pouco a brincadeira em sua presença. Depois começou a indagação das ocupações de cada um, e, conforme o que colhia, os foi mandando embora, ou pondo de parte, para lhes dar melhor destino. Durante toda esta cena, que levou seu tempo, o amortalhado deixou-se ficar imóvel, na mesma posição, com a cabeça coberta. Corrida toda a roda, disse-lhe o major:
— Olá, camarada da mortalha, então deveras você quer que o levem daí para a cova?
Nem um movimento em resposta.
— Ah! está morto; perdeu a fala; é natural.
Silêncio profundo.
O major fez sinal a um dos granadeiros, que tocou no sujeito com a ponta do camarão: nem assim porém ele sequer moveu-se. A um novo sinal do major o granadeiro desandou-lhe uma tremenda lambada. Ressuscitou com isso o morto, pôs-se de um salto em pé. Procurou porém evadir-se por uma janela, conservando sempre a cabeça coberta: os granadeiros seguraram-no, e o major disse-lhe:
— Homem, você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno: fale primeiro com a gente.
E tirando-lhe o pano da cara acrescentou:
— Ora vamos ver a cara do defunto...
Um grito de espanto, acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros, interrompeu o major. Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser ele o nosso amigo Leonardo!...