Cremos, pelo que temos referido, que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve, e para outros pesado e custoso: o rapaz amava. É escusado dizer a quem.
Como é que a sobrinha de D. Maria, que a principio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia, lhe viera depois a inspirar amor, é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto nos basta. Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho, o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna. E com efeito, logo depois da noite do fogo no Campo, em que as coisas começavam a tomar vulto, principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos. Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que experimentara
na noite do fogo, a acordara da sua apatia, voltara de novo ao seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos, nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e olhos no chão.
Ora, para quem, como o Leonardo, levara depois daquela feliz noite a construir esses castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos nos dias felizes do primeiro amor, isso foi já uma contrariedade sem nome; quando se viu assim tratado quase desatou a chorar; só o conteve o receio de não poder depois justificar o seu pranto com qualquer pretexto. A este primeiro movimento sucedeu-lhe um momento de calma, e depois cresceu-lhe por dentro uma chama de raiva, e esteve a ponto de chegar-se para a menina, desenterrar-lhe o queixo do peito, e chamá-la quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia. Afinal cismou um pouco e murmurou um-que me importa!-que pretendia ser desprezo, e que não era senão despeito.
À primeira visita depois da noite do fogo seguiram-se muitas outras em que as coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo.
Um novo sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos sucessos; foi o encontro dos dois, padrinho e afilhado, em casa de D. Maria com uma personagem estranha a ambos. Era um conhecido de D. Maria que havia há pouco chegado de uma viagem à Bahia. Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio, de pouco mais ou menos trinta e cinco anos de idade, magro, narigudo, de olhar vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos de fivela, capote e chapéu armado, e terá idéia do físico do Sr. José Manuel, o recém-chegado. Quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara. Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência. José Manuel era uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias.
Debaixo do mais fútil pretexto tomava a palavra, e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano.
Por exemplo, conversando-se sobre qualquer objeto acontecia falar-se em D. Francisca Brites.
— Conheci muito D. Francisca Brites, atalhava imediatamente o incansável falador; era mulher de João Brites, filho bastardo do capitão Sanches; em tempo de casada diziam suas coisas dela, e a culpa tinha Pedro d’Aguiar, sujeito que não gozava de boa nota, principalmente depois que se meteu aí n’alhada de um testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha que, em abono da verdade, era bem capaz disso, pois era sujeito de mãos limpas. Foi até ele quem furtou de casa a filha de D. Úrsula, que foi moça de Francisco Borges, a quem deixou para seguir a Pedro Antunes, que por sinal lhe deu bem má vida. E também ela não devia esperar outra coisa dele, porque homem que se atreveu a fazer o que ele fez a três filhas que tinha, é capaz de tudo. Chegou a pôr pela porta fora com um pau as pobres moças depois de as ter espancado desapiedadamente. Entretanto uma delas foi bem feliz: achou aí um capitão de navio que tratou dela; as outras não, coitadas...
— Infelizes por quê? acudia por acaso algum dos circunstantes; elas casaram...
— Casaram, sim, é verdade, retorquia ele tomando novo fôlego, porém com que marido? Um tomava moafas de todo o tamanho, o outro gastou tudo quanto tinha no jogo. Conheci-os a ambos muito bem...
E por aí prosseguia e internava-se a perder de vista pela geração toda dos dois maridos, e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras.
Desde o primeiro dia que o padrinho e o afilhado encontraram-se com José Manuel em casa de D. Maria, nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem, e este não querer bem foi crescendo de dia em dia, especialmente pela parte do Leonardo. E o caso é que ele tinha razão; foi o instinto que o avisou de que ali havia um inimigo. Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D. Maria, e tanto repartia ele esses afagos com Luisinha, que bem claro se deixou ver que havia neles fim oculto. Afinal o negócio aclarou-se. D. Maria era, como dissemos, rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua sobrinha; se morresse D. Maria, Luisinha ficaria arranjada, e como era muito criança e mostrava ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que se achasse, como José Manuel, em disponibilidade; este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha. Quando Leonardo, esclarecido pela sagacidade do padrinho, entrou no conhecimento destas coisas, ficou fora de si, e a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem, quando fosse visitar D. Maria, munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho, e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel. Porém teve de aplacar-se e ceder às admoestações do padrinho, que sabia de todos os seus sentimentos, e que os aprovava.