Memórias de um Sargento de Milícias/XXXIX
No dia seguinte já o Vidigal sabia de cor e salteado tudo quanto havia sucedido ao Leonardo, e pôs-se alerta, pois que a ocasião era oportuna.
O Leonardo entrara para a ucharia com o pé esquerdo: a tormenta por que havia passado nada foi em comparação da que lhe caiu nas costas, quando em casa se soube da causa verdadeira de sua saída.
É uma grande desgraça não corresponder a mulher a quem amamos aos nossos afetos; porém não é também pequena desventura o cairmos nas mãos de uma mulher a quem deu na cabeça querer-nos bem deveras. O Leonardo podia dar a prova desta última verdade. Vidinha era ciumenta até não poder mais: ora, as mulheres têm uma infinidade de maneiras de manifestar este sentimento. A umas dá-lhe para chorar em um canto, e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas: isto é muito cômodo para quem as tem de sofrer. Outras recorrem às represálias, e nesse caso desbancam incontinenti a quem quer que seja: esta maneira é seguramente muito agradável para elas próprias. Outras não usam da mais leve represália, não espremem uma lágrima, mas assim por um espaço de oito ou quinze dias, desde que desponta a aurora, até que cai a noite, resmungam um calendário de lamentações, em que entram seu pai, sua mãe, seus parentes e amigos, seu compadre, sua comadre, seu dote, seus filhos e filhas, e tudo por aí além; isso sem cessar um só instante, sem um segundo de descanso: de maneira a deixar na cabeça do mísero que a escuta uma assuada eterna, capaz de fazer amolecer um cérebro de pedra. Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco-caso: essas tornam-se divertidas, e faz gosto vê-las. Outras enfim deixam-se tomar de um furor desabrido e irreprimível; praguejam, blasfemam, quebram os trastes, rompem a roupa, espancam os escravos e filhos, descompõem os vizinhos: esta é a pior de todas as manifestações, a mais desesperadora, a menos econômica, e também a mais infrutífera. Vidinha era do número destas últimas.
Apenas pois, como há pouco dizíamos, se verificou a verdadeira causa da saída do Leonardo, desabou um temporal que só terá semelhante no que há de preceder ao aniquilamento do globo. Depois de gritar, chorar, maldizer, blasfemar, ameaçar, rasgar, quebrar, destruir, Vidinha parou um instante, concentrou-se, meditou, e depois, como tomando uma grande resolução:
— Minha mãe, disse dirigindo-se a uma das velhas, quero a sua mantilha...
— Filha de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de mantilha?...
— Eu cá sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha...
Foram todos reunindo-se em roda de Vidinha, surpreendidos por aquela resolução.
O Leonardo estava sentado, ou antes encolhido a seu canto, quedo e silencioso.
— Quero a sua mantilha, minha mãe; quero, e quero...
— Mas para onde ides, rapariga?... Ora, meu Deus!... isso foi coisa que vos fizeram...
— Quero ir à ucharia...
— Jesus!...
— Quero ir... que me importa que seja a casa do rei?... Hei de ir... hei de procurar o tal toma-largura... quero fazer-lhe cá duas perguntas... e, ou o Menino Jesus não é filho da Virgem, ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa.
— Que loucura, rapariga... que desatino!...
Os dois primos riam-se interiormente do que se estava passando.
Não há coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece. Tudo quanto em Vidinha havia de requebro, de languidez, de voluptuosidade tinha desaparecido; estava feia, e até repugnante.
Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter.
O Leonardo viu que o caso estava malparado, e tendo estado até então calado, decidiu-se também a pedir a Vidinha que não saísse. Foi, como se costuma dizer, pior a emenda que o soneto.
— Qual!... responde Vidinha... essa agora é que havia de ser bonita... Qual! pois eu não hei de sair?... Tinha que ver... então por pedido do senhor? Ora qual...
E foi saindo.
Começava a anoitecer.
A gente de casa ficou toda na maior aflição; ninguém sabia o que se havia de fazer. O Leonardo tomou a resolução de acompanhar Vidinha a ver se a detinha em caminho.
Vidinha caminhava tão depressa que a principio o Leonardo quase que a perdia de vista; finalmente conseguiu alcançá-la, e começou a pedir-lhe que voltasse, fazendo as maiores promessas de comedir-se dali em diante, e de lhe não dar mais motivos de desgosto. Vidinha porém a nada atendia, e caminhava sempre. O Leonardo recorreu a ameaças; Vidinha redobrou a passos: voltou de novo a rogativas; Vidinha caminhava sempre.
Já estavam no largo do Paço: Vidinha, quase a correr, deixou o Leonardo umas poucas de braças atrás de si, entrou muito adiante dele pelo portão da ucharia adentro, e desapareceu. O Leonardo parou um instante a resolver-se se entraria também ou não. Finalmente decidiu-se a entrar. No momento em que ia transpondo a soleira do portão, voltou repentinamente, e ia disparando uma carreira: uma mão magra, mas vigorosa, o deteve agarrando-o pela gola da jaqueta: era a mão do major Vidigal, com quem ele havia esbarrado ao querer entrar, e de quem pretendia fugir. Vendo que lhe seria inútil qualquer tentativa, porque ali perto havia guarda, o Leonardo resignou-se. O major olhou para ele soltando uma risadinha maligna; e disse-lhe apenas muito pausada e descansadamente:
— Ora vamos...
O Leonardo entendeu bem a significação daquelas duas palavras, e caminhou, ao lado do major, na direção que este lhe indicava.