Memórias de um pobre diabo/Segunda Parte - Capítulo 5

Em verdade, eu devia ao prélo cento e treze mil e quinhentos réis.

Do que me gabo hoje é que, actualmente nas typographias, o credito dos escriptores não monta áquella quantia.

—Diabo!.. ruminei, alguns jornaes já annunciaram o proximo apparecimento de minhas poesias: se não satisfaço a conta pára a impressão; se a impressão pára, começam os typographos a decorar os versos impressos... elles então que são cantadores de modinhas! e decorados, adeus novidade! Ruminando na solucção do imprevisto embaraço, fui interrompido pelo padre Severino. Conhecem-o?

Eu tambem já o-conhecia.

O reverendo entrou pelo meu habitaculo clamando:

—Leva-me preso comtigo
N'um fio dos teus cabellos!

—Glose este motte, meu poeta.

Nós já nos não respeitavamos.

—Ouça isto, foi proseguindo:

Não se sabe apartar quem ama e pena,
E quem nisto é mais fraco, este é mais forte;
A dôr da mesma morte é mais pequena,
Que quem morre melhora muito a sorte;
Quem morre acaba o mal, quê toda a pena
Dura co'a vida sem passar da morte:
Maior pena padece o que está ausente,
Pois morre de saudade e morto sente.

—O que acha?

—Que li algures...

—Onde homem? isto é meu e muito meu. Pensa vossê que só faz versos? Por mais prosa que a gente seja, batendo-lhe devéras o coração, torna-se poeta. Adivinhe o que me succedeu?

—Suspenderam-lhe as ordens...

—Assim fosse; cousa mais seria; partio para a Bahia a Mariquinhas...

—Qual dellas? o padre falla em tantas...

—A da rua da Lapa, a unica Mariquinhas, que tenho confessado, de olhos azúes. O marido foi removido.

—Coitado do homem!

—Faça idéa do meu pezar ao receber esta noticia, chegando hontem de Petropolis.

—Avalio!

—Vossê, deve escrever um artigo contra o ministerio, tosando a valer o ministro da fazenda. Isso é cousa que se pratique, remover d'aqui para alli e sem porquê um pobre empregado publico?

—E de mais a mais casado!...

—E querem moralidade, e exigem honradez da pobreza obrigando-a a fazer sacrificios... escreva o artigo, mostre tambem saber prosa.

—Mas, padre, porque não o-escreve vossê, que é o interessado?

—Muito obrigado! então vossê porque não é padre, não se interessa pelos seus semelhantes?

Non sibi soli se natum homo
Meminerit...

Seja menos egoista meu poeta, e glose o motte:

Leva-me preso comtigo
N'um fio dos teus cabellos,

que é para eu remetter com aquella oitava a Mariquinhas. Quero uma decima triste, triste como o miserere.

—Temos outra. Pois se o padre é quem está triste, porque não compõe a glosa?

—Porque tenho que pregar um sermão na quinta-feira, o vapor sahe amanhã para a Bahia e hoje é terça.

—Pois eu, reverendo, não terei cabeça para glosar motte algum, emquanto não resolver este problema: cento e treze mil e quinhentos réis, que devo, estão para o que tenho, como o que tenho está para X...

E ficamos a olhar um para o outro, durante cinco minutos.