Memórias de um pobre diabo/Terceira Parte - Capítulo 4
«Eu sempre ouvi dizer:—frade nem vivo,
Nem morto e nem pintado na parede.—
A rasão deste dito salta aos olhos;
O que frades, outr'ora, não fizessem
Incumbir ao diabo era debalde:
E as chronicas referem muitos casos
De quináos, que ao diabo os frades deram.
Mas verdade verdade, o frade de hoje,
Labéo das frias cinzas de Epicuro,
Não chega ao calcanhar do velho frade.»
Repetindo em voz alta estas blasphemias,
Os olhos affinquei n'um poento quadro,
Meu fiel companheiro no deserto
Em que a mão da fortuna me lançára.
O quadro figurava um frei Rotundo,
Nutrido e nédio, rindo-se á sorrélfa
Da feia carantonha do diabo,
Que raivoso mordia um par de dados.
Mingúa a humanidade a pouco e pouco!
Já se não topa mais um frei Bojudo
Estillando gordura ao sol em pino.
Que ditosa panella, a de outros tempos,
Onde cahisse o lenço de Alcobaça
Que limpasse o cachaço de algum frade!
Sahia a olha convertida em banha.
Hoje o frade, sequer, sabe o Larraga
Ou Brillat-Savarin. Dantes o frade
Era um poço ambulante de sciencias.
E os costumes? e o lar? se bem me lembro,
Algures li que, vós, ditosos monges,
Fostes, nas priscas eras dos conventos,
Pesadelo de todos os maridos,
E horror! horror! horror! das raparigas!
«Illustre Guardião (clamo inspirado)
Tu mais que Belphegor sagaz nos tramas,
Mais roliço e mais sabio, tu me ensina
O meio de sahir destes apuros!»
Avalie-se agora o que eram frades
Em tempos que lá vão,—que desenhados
Inda fazem milagres. Repentino
Me occorre um pensamento de alta monta.