Memórias duma Mulher da Época/Clotilde, Clarinha, Clarisse

Clotilde
Clarinha
Clarisse



 
Quatro horas da tarde. Clotilde, Clarinha e Clarisse, sentadas em bancos rusticos, à sombra dum enorme castanheiro, na Quinta das Pedras Negras, perto de Belas, conversam, descuidosas. As duas últimas, são hospedas, durante oito dias das suas férias, de Clotilde, que deixou no ano antecedente o colégio. Clarinha e Clarisse, quinze e desasseis anos, são primas; ambas têm olhos claros e risonhos. Clotilde é morena e viva, dezoito anos, olhos de zingara, diabólicos.
 

CLOTILDE — E a «Mademoiselle» ainda está rabujenta?

CLARISSE — Ai, menina! Cada vez pior! Agora até diz coisas feias, quando a D. Aurora não póde ouvi-la. No último dia que lá estivemos lhe ouvi eu dizer, por entre dentes: — Sacredieu!

CLOTILDE (escandalisada) — Ah!

CLARISSE — E não quere, agora, nem por sombras , que a gente chegue á janela, nem mesmo do lado do jardim! Está insuportável!

CLARINHA — Sim, ela não quere que nós cheguemos á janela, mas morre por espreitar a filha do Moreira, quando o namorado, á noitinha, se põe aos beijos a ela...

CLOTILDE (interessada) — Quem é o namorado da filha do Moreira?

CLARISSE — E' um estudante da Politécnica, chamado Valente...

CLOTILDE — Valente? Espera lá; é um alto, muito trigueiro?

CLARISSE — Sim, sim! Tem cabeça de bico!

CLOTILDE — Bem sei quem é. Dansei com êle um cotillon, o ano passado, nas Caldas.

CLARINHA — Tem um ombro mais alto do que outro.

CLOTILDE — Para pôr defeitos em cada um ainda não vi como vocês! Pois eu acho-o muito simpático e muito bem educado. O que eu não sabia é que êle namorava aquele pão sem sal da filha do Moreira.

CLARISSE — Eu não dava um passo por êle. Tem uma cabeça assim... não sei como... muito exquisita. Eu só gostaria dum rapaz bem parecido, que vestisse bem e não tivesse mau génio...

CLOTILDE — Naturalmente eras capaz de gostar dum manequim de cêra, como o Luiz Lopes.

CLARISSE (picada) — Chama-lhe manequim de cêra... Tomáras tu que êle te fizesse a côrte...

CLOTILDE (desdenhosa) — Eu?! Eu não gosto de bonecos de montra. A gostar, era dum homem de carne e ôsso!

CLARISSE (trocista) — E de cabeça de bico!

CLARINHA (conciliadora) — Acabem lá com isso. Olhem: o que eu acho é que em a gente tendo de gostar, gosta, pronto! Seja feio ou seja bonito! Eu, por exemplo, não gosto de homens baixos nem de homens loiros, mas tenho a certeza de que se me aparecêsse um, baixo e loiro, que soubesse cativar-me e convencêr-me, caía no laço, sem querer saber de mais nada!

CLOTILDE — Eu gosto dos homens muito magros e muito trigueiros...

CLARISSE — Mas é o teu tipo... Não devias gostar...

CLOTILDE — Mas gósto. Gósto assim como o doutor Girão.

CLARINHA — Quem é o doutor Girão?

CLOTILDE — É um amigo do padrinho, que vem ás vezes cá á quinta.

CLARISSE — Que idade tem êle ?

CLOTILDE — Já passa dos trinta.

CLARISSE — Ih! Trinta anos! É quási velho!

CLOTILDE (irritada) — Tu não sabes o que dizes! Só queria que o visses — ainda hás-de vê-lo — e que me dissésses depois se dava ou não dava um marido ideal!

CLARISSE — Ora! Nós, em solteiras, sabemos lá se um rapaz é ou não é um marido ideal! Só depois de casar é que essas coisas se sabem. Antes disso... Eles enganam a gente, com aquelas palavrinhas sentimentais! O Valente, que está sempre a rir e aos beijinhos á namorada, é capaz de se tornar sêco e mal humorado, se viér a casar com ela... Foi o que sucedeu ao marido da tia Amélia, disse-mo ela mesma.

CLARINHA — A filha do Moreira fez mal em dar aquela confiança ao rapaz. Eu é que não consentia uma coisa daquelas... Até me arripio toda!

CLARISSE — Eu tambem não admitia aquilo. É de mais!

CLOTILDE — Vocês não admitiam?! Eu sempre queria vêr... Gostando-se muito dum rapaz, faz-se tudo quanto êle quere... A não sêr assim não é amor a valêr...

CLARINHA — Pois tu deixavas um homem dar-te um beijo antes de casar?!

CLOTILDE — Porque não? É uma coisa tão natural!...

CLARISSE — Ó Clotilde, pois tu não tens vergonha de dizer isso?!

CLOTILDE (rindo a bom rir) — Eu, não! (Clarinha e Clarisse riem tambem).

CLARINHA (baixando a voz) — Querem vêr que já experimentaste?!

CLOTILDE (muito vermelha) — Schiu!

CLARINHA (cheia de curiosidade) — Pódes contar, que nós não dizemos nada a ninguem.

CLOTILDE (que está morrendo por fazer as suas confidencias) — Nada, nada!

CLARINHA (quási suplicante) — Conta!... Conta lá! Nós não dizemos nada seja a quem fôr!

CLOTILDE — Vocês juram?

CLARINHA e CLARISSE (em côro) — Juramos!

CLOTILDE (baixinho) — Pois é verdade. Já experimentei...

CLARINHA (no mesmo tom) — Quem foi? Foi o tal doutor Girão? (Clotilde meneia afirmativamente a cabeça) — Eu já calculava! Como foi?

CLOTILDE — Ora, foi ao pé do muro, ali adiante, junto da nespereira... Êle tinha vindo visitar o padrinho e eu ía acompanhá-lo até ao portão.

CLARISSE — E como foi que êle fez?

CLOTILDE — Foi de repente... Eu tinha parado, a olhar para o céu... a vêr um bando de passarinhos... e êle, zet! Deu-me um beijo na face esquerda...

CLARINHA — Eu faço idéa do susto que tivéste!

CLOTILDE — Qual história! Não tive susto nenhum. Ele é muito simpático. Foi só uma certa confusão...

CLARISSE — E já tornou a fazer o mesmo?

CLOTILDE — Só na segunda-feira é que volta cá; isto foi na quinta. Agora, que vocês cá estão, não póde sêr, mas depois é natural que sim... O que teve graça é que eu, com a surpreza, deixei caír uma rosinha que levava na mão; êle abaixou-se para ma apanhar mas — não sei como aquilo foi — saltou-lhe do bolso um postal com o retrato duma rapariga com tipo de estrangeira. Eu, para disfarçar a confusão em que tinha ficado, preguntei-lhe quem era. — Fez-me lêr: Un bon souvenir de votre amie Margueritte — e disse que era uma rapariga com quem costuma passear muito, quando vai á Belgica... Parece que é professora, não sei bem... Tambem me disse que eram simples camaradas e que nunca lhe tinha dado um beijo. — Nunca lhe deu um beijo? — preguntei-lhe eu. E êle respondeu-me, assim muito frio: — Não. Para quê?!

CLARINHA — Ah! E tu?

CLOTILDE — Eu fiquei intrigada e disse-lhe: — Então... e agora em mim... para quê?!

CLARISSE — Ah! E êle?

CLOTILDE — Sorriu... e não respondeu.

 

Lisboa, 1923.