Memórias duma Mulher da Época/Primeira parte

«Mas o mundo não saberá nunca quanta ternura ha na tua ironia e quanta generosidade encobrem os teus modos frivolos; o que ele rapidamente apreenderá é que tu, em dias travessos, zombas do seu recato e da sua gravidade — quantas vezes postiços...»

Diana de Liz.
Memorias duma mulher da epoca
Memorias duma mulher da epoca


 
Primeira parte
 

15 de Outubro

Amanhã, amanhã! A minha alma abre-se, ansiosa, para a Vida, essa Vida que desconheço e tantas vezes me tem feito meditar. Sosinha, a horas mortas, no meu quarto de virgem, penso frequentemente no que será a verdadeira vida; sonho-a muito diferente da existencia incolor e monótona que sempre arrastei aqui, em casa de meus pais.

Amanhã, Vasco virá pedir a minha mão. Já mandei buscar flores, muitas flores para que o meu jubilo respire o perfume perturbante dos cravos, para que os meus olhos poisem, encantados, na cabeleira caprichosa dos crisântemos. Minha mãi, pálida e enternecida, meu pai, aprumado e sereno, eu, vestida de verde e ligeiramente nervosa, receberemos Vasco e seu tio, na sala grande. Nos olhos de minha mãi hão-de, forçosamente, rebrilhar duas lágrimas. E uma nuvem de comoção perpassará no ambiente.

Sinto bailar dentro do meu cerebro excitado a multidão dos meus sonhos, dos meus desejos ardentes e intensos. Tardavam-me estes momentos de prazer; já fiz vinte e dois anos e há quatro que vivo na ansiedade de casar embora afirmando o contrário a todas as minhas amigas.

Estou tonta de alegria; agora mesmo, em vez de mergulhar a pena no tinteiro, molhei-a na chavena de chá, que, diante de mim, espera o contacto dos meus labios inquietos. Creio que estou febril. Tenho os nervos, desde ontem, num continuo alvoroço.

Vou ser rainha dum minusculo reino, de um reino de bonecas, frivolo e perfumado, mas no qual as minhas ordens serão sempre cumpridas e os meus desejos respeitados. Poderei fazer o que quizer que me seja necessario ensaiar rogos nem esperar so- lenes permissões.

Reflexionando assim, não me suponho ingrata, desamoravel, para com meus pais; ao seu afecto corresponde o meu, calmo e reconhecido. Mas a vida deuma rapariga solteira é polvilhada de mil pequeninos dissabores, que tomam, por vezes, forma de humilhação... Quando, por exemplo, disponho de certo modo um cortinado, uma jarra, uma cadeira, e minha mãi, por discordar do meu criterio, vem, logo após, modificar essa disposição, eu sou forçada a submeter-me, dissimulando um ligeiro despeito, à supremacia maternal... Já me tem sucedido partir em vilegiatura fóra da época própria, fóra dessa época em que o movimento e a alegria são estonteantes, em que a atmosfera é mais cariciosa, os flirts mais saborosos e jocundos, trocando, assim, dias de vida intensa e prazer vivaz por outros dias insipidos e frios... E isto porque meu pai, atendendo a razões suas, apenas suas, o havia destinado assim... Sempre estes inevitaveis grãos de areia têm vindo acidentar a alfombra aveludada sobre a qual há repousado a minha mocidade.

Dentro em pouco, tudo isso cessará. Era tempo; sinto que não poderia esperar mais. Depois, o meu temperamento irrequieto, a minha imaginação exacerbada, arrastam-me cégamente, irresistivelmente, para o amor. O problema resolve-se, enfim. A minha vida, a minha verdadeira vida vai principiar.

16 de Outubro

São nove horas da noite. Só agora tenho um momento de meu para anotar as impressões do dia.

Tudo se passou como eu tinha previsto, desde as palavras breves, precisas, do tio de Vasco, até ás lágrimas de minha mãi. Vasco esteve admiravel de correcção; achei-o, todavia, um pouco impertigado e tambem me pareceu que os dedos das suas luvas, mal calçadas, dobravam na extremidade. Isto são, afinal, pormenores insignificantissimos. Ele é um rapaz encantador — e ama-me tanto!

Conhecemo-nos o verão passado, no Estoril; logo surgiu em mim um vivo interesse por ele e logo, tambem, o seu espirito se debruçou por sobre o meu. Prometi a Santa Filomena vinte e quatro velas e dez missas, se este casamento se realizasse. Sucede-me ás vezes confundir as coisas sagradas com as profanas; mais tarde, surpreendendo a intromissão, procuro remedia-la, separando e definindo as idéas. Mas ao primeiro ensejo, não deixo de reincidir. E então, nesta pobre cabecinha frisada, os lirios brancos do misticismo juntam-se, em singular e entontecedora miscelânea, às rosas rubras das ambições terrenas; o incenso dos templos e o «Chypre» dos perfumistas caros produzem, confundidos, um aroma indefinivel que me enevôa o cerebro... Necessito reagir.

4 de Novembro

Fômos ontem, todos quatro eu, Vasco e meus pais passar o dia a Sintra. Não havia frio. Apesar de estarmos no outono, o explendor daquela permanente orgia de verdura, pouco desmereceu este ano. Teatro de amores romanescos, refugio de angustias intelectualisadas e transcendentais, Sintra, a vetusta e maravilhosa Síntra exerce uma extranha influencia sôbre os meus nervos e o meu cerebro.

Passeámos lentamente, emudecidos e de alma encantada, por àleas ainda floridas; eu desejaria encontrar-me sozinha com o Vasco, ali, naquele cenario de penetrante beleza. A presença de meus pais pareceu-me, ontem, pela primeira vez, incomoda, inoportuna e advinhei que no espirito de Vasco haviam surgido pensamentos identicos aos meus.

Descançamos em recantos ensombrados, perto dos quais corria, ondeante e sussurrante, um fio de água que lembrava prata nova em fusão. Mais tarde, caído o crepusculo, regressámos ao centro da vila, trazendo os agasalhos cingidos e o apetite desperto.

O jantar estava ótimo e eu, á sobremesa, tinha fortissimas tentações de abraçar Vasco, mesmo deante de toda a gente que lá se encontrava. Era pouca: uns récem-casados, segundo parecia; dois sujeitos idosos, três rapazes em grupo e nós. O vinho estonteou-me um tanto ou quanto e, provavelmente, foi por isso que me apareceram no cerebro idéas tão exoticas. Tive um grande desejo de me sentar na beira da mêsa, baloiçar os pés e espalhar pelo chão as pétalas dos crisântemos que a adornavam. Custou-me conter-me. Vasco disse-me: «Tens um brilho nos olhos!»

— Eu ri, ri como uma louca. Parece-me que ainda hoje não estou completamente bôa...

15 de Novembro

Ontem, á noite, esteve cá a Maria de Lourdes com a irmã. Trouxe o violino e tocou alguns trechos celebrados; a irmã acompanhava-a ao piano. Por fim, para ser agradavel a meu pai, tocou uma peça de ritmo extranho e sugestivo. Vasco adora a musica e só tinha olhos para a executante... Ela é insinuantissima; o seu perfil, quasi clássico, a sua fronte de artista, os seus cabelos negros e lisos formam um conjunto de especial encanto. Veste mal, contudo, e não tem a minima coqueteria. Eu, de modo algum, introduziria o meu corpinho esbelto naquele vestido afogado e decerto não teria ânimo de cortar os meus caracoes e passar a usar os cabelos assim lisos, repuxados. E, apesar do seu invulgar talento, não posso deixar de confessar a mim própria que me não trocaria por ela, mesmo que isso fosse possivel. Gosto das minhas feições vivas e irregulares, dos meus cabelos partidos e frisados e, até, da minha execução imperfeita, ao piano, dos grandes clássicos. Gosto dos meus vestidos de audaciosa elegancia... Não, realmente, eu sou mais bonita do que ela... Porque seria que Vasco a não desfitou durante toda a noite?!

16 de Novembro

Já tenho casa. E' linda, sorridente, visitada pelo sol. Não é grande, mas possue muitas janelas e tambem uma larga varanda, da qual a gente se debruça por sôbre um jardim simétrico, regular, cuidado e aparado até o exagero. Com que alvoroço intimo percorri hoje essa casa, de um extremo a outro! Foi uma sensação de posse plena, completa, a que se reunia um quasi nada de orgulho e uma profunda comoção.

A minha casa! Eu e Vasco havemos de brincar ali, como duas crianças; hei-de esconder-me atraz das portas quando estivermos sós, para assustá-lo, surgindo repentinamente á sua frente; hei-de ter cravos na espaçosa varanda e fazer de cada janela um minusculo jardim suspenso.

Vou cuidar com especial carinho da sala de trabalho. Vasco diz-me que lhe é grato trabalhar á noite; parece-me já vê-lo, atento entre os seus livros complicados e os seus planos azuis, tracejados de branco. E eu, lendo ou pensando, lábios cerrados pelo mais discreto dos silencios, serei como que um grande bibelô, a um canto do divam, nessas noites de muda e serena ternura.

18 de Novembro

Trouxeram ontem o meu vestido de noiva. Colocámo-lo a meio do gabinete de vestir, num manequim, e dispuzemos-lhe, por cima, o manto de renda. Está lindo. Não posso compreender porque me senti como que sufocada por uma onda de tristeza que, de repente, me assaltou — depois de o haver examinado du- rante alguns minutos...

Fui fechar-me no meu quarto, deitei-me sôbre o leito e chorei. Senti um desejo intenso, quasi irreprimivel, de fugir para muito longe e nunca mais vêr toda esta gente que me rodeia. Dominei-me, por fim, e voltei ás minhas ocupações. Mas todo o dia estive enervada e quando, á noite, Vasco chegou, acheio-o detestavel. Pareceram-me de um mau gosto inconcebivel a gravata que trazia e a côr amarela dos seus elegantes sapatos. Iria jurar que me agradaria muito mais se não se penteasse com tanto esmero e não mostrasse tanto amiude os seus belos dentes regulares e brancos. Cheguei a julgar que já não o amava; e pensei que talvez o adorasse se ele fosse muito mais feio, sedutoramente feio e espirituoso, como o marido de Luizinha, a quem a mulher parece não achar graça alguma...

Hoje, estou outra. Já Vasco se me afigura incomparavel e, com efeito, lograria eu encontrar outro noivo semelhante a ele, assim fisicamente bem dotado e numa tão bela situação material?

19 de Novembro

Encontro-me extenuada pelo movimento destes ultimos dias. Fômos hoje de manhã escolher a decoração da sala e eu estive até agora tratando dumas avencas que quero levar para a minha residencia de casada. Tenho abatido extraordináriamente. Vasco mostra-se cada vez mais apaixonado e quere apressar asamento; eu não devo criar obstaculos aos seus desejos, mas acho extranho o que se está passando em mim... Ainda há menos dum mês, ansiava por esse dia que parecia não chegar; agora, quasi o receio ; se pudesse afastar, adiar indefinidamente a cerimonia, com certeza o faria.

Se Vasco pudesse suspeitar estes singulares pensamentos...

A campainha tocou; deve ser ele.

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Não me tinha enganado: era Vasco. Já se retirou, porém. Combinou-se, agora mesmo, que o casamento se fará de hoje a quinze dias. Sinto-me de novo entusiasmada. O meu enxoval está todo organizado.

Tenho ainda, contudo, tantas pequenas coisas a fazer! Oh, trabalhos forçados de uma noiva!

25 de Novembro

A atitude reservada e sombria de Luciano Casais, desde que sabe que estou noiva, causa-me apreensões.

Velho amigo de meu pai, tem sido tambem para mim um amigo excelente. Seria natural que a noticia do meu proximo casamento o alegrasse. Em vez disso, parece que o contristou, que o traz desanimado. Ele não conhecia Vasco; só há poucos dias lho apresentei, notando nos seus modos certa frieza para com o meu noivo, que, em contraste, lhe demonstrou uma viva simpatia.

Lembrei-me de que talvez lhe houvesse constado qualquer facto desfavoravel a Vasco e, ontem á tarde, interroguei-o francamente a êsse respeito.

— Não compreendo essa pregunta, Fausta! — respondeu. Se eu soubesse de algum pormenor depreciativo para o teu noivo, certamente teria avisado já teu pai.

— Mas esse teu ar contra feito...

— Este meu ar contrafeito não se relaciona contigo, nem com o teu casamento. Bem vês; é natural que eu tenha outras preocupações. No meu espirito não ha, a teu respeito, mais do que o grande, o sincero desejo de que sejas feliz.

Senti-me levemente humilhada ao ouvir-lhe a declaração, naturalissima, de que outras preocupações lhe preenchem o cerebro. Na realidade, não posso ter a pretensão de que todos quantos me rodeiam se preocupem exclusivamente comigo. Talvez que a sombria aparencia de Luciano seja efeito de alguma paixão; é ainda novo, celibatario e atribui-se-lhe grande veemencia no culto de Cipris. E, contudo... Contudo, tenho o pressentimento de que as palavras que lhe ouvi não correspondem totalmente ao que ele sente.

I de Dezembro

São duas horas da madrugada e só agora me recolho. E' amanhã o grande dia. Pena é sentir-me tão fatigada. Está tudo magnifico, aqui. Minha mãi chora pelos cantos, mas meu pai conserva-se sereno. Vasco «anda em braza», como vulgarmente se diz... Não posso escrever mais ; estou a cair com sono...

2 de Dezembro

São dez e meia da manhã. Daqui a meia hora, a minha mão, tremula com certeza — estou nervosa! — assinará o meu nome no grande livro de registos; daqui a uma hora sairá para a igreja o cortejo nupcial. E' esta a minha ultima impressão de solteira.

Meu Deus, meu Deus, serei feliz ?

19 de Dezembro

Depois de estarmos duas semanas em Coimbra, terra de meu marido, chegamos ontem a Lisboa. Estes quinze dias de lua de mel bastaram para que eu ficasse conhecendo melhor o caracter de Vasco, que é, afinal, mais diferente do meu do que eu supunha.

Nunca julguei que um homem de vinte e nove anos, vivendo quasi sempre em Lisboa e aqui educado, pudesse ser, no seu intimo, tão simples. Há momentos em que se me afigura que sou eu o rapaz desenvolto e ele a juvenil recem-casada...

Sinto-me tranquila, sem entusiasmos, mas tambem sem tristezas. Não se pode dizer, é certo, que o matrimonio seja uma fonte inexgotavel de alegrias...

Eu, ao fim de quinze dias de casada, quando interrogo a fundo o meu espirito, penso que esta situação é, na verdade, muito mais insipida do que deveria ser, segundo a nossa fantasia. Não sei se a todas as mulheres sucederá o mesmo que sucede comigo, isto é, experimentar uma sensação mixta, formada por um vago descontentamento e por uma ternura crescente por meu marido, sensação que não sei explicar — naturalmente porque é inexplicavel. Compreendo agora os suspiros misteriosos da Luizinha e o ar tristonho da Maria Alice! O marido desta ultima, é, certamente, arqui-banal; quanto ao da Luizinha, tão insinuante e vivo de espirito, admiro-me de que motive essa atitude da mulher. Recordo-me, porém, de ter ouvido dizer que, em solteiro, as protagonistas dos seus passatempos amorosos o abandonavam com a maior facilidade, desgostando-se, como provavelmente se desgostou já a esposa...

Porque as afugentaria ele? Ainda hei de ver se Vasco sabe a razão.

Pobre Vasco! Só agora reparo que lhe não dediquei meia duzia de linhas seguidas! Fica para amanhã.

23 de Dezembro

Tem estado uma temperatura glacial. Toda a noite me senti gelada, apesar do «édredon». Parecia que o frio me tinha atingido os ossos. Vasco está constipadissimo, o que não o impediu de dormir como um bemaventurado, escondido entre os cobertores como o carocol dentro da casca. Eu, que não posso dormir quando tenho frio, sentia-me indignada com tanto egoismo. E' que Vasco já não é o mesmo. Quasi todas as minhas amigas casadas me dizem que os homens mudam com o tempo, mas isso não razão para que me resigne a verificar que o facto de eu ter ou não ter frio é indiferente a meu marido — quando não há ainda um mês que nos casámos. Iria jurar que o primo Alberto, com quem travei conhecimento agora em Coimbra, não procede assim para com a mulher...

Tudo isto são pequeninas e intimas decepções. Guardo-as comigo e ninguem suspeita delas.

25 de Dezembro

Dia de Natal. Está um tempo lindo, apezar de frio, mas eu, hoje, não me sinto bem. Tivemos, ontem á noite, algumas vizitas intimas. A Emilia de Lara disse uns versos seus enfáticos e ôcos como tudo quanto se lhe gera no inflamado cerebro. Vasco, pleno de espirito e bom humor, animou toda a sala. Mas aquele seu habito de tamborilar, de vez em quando, com os dedos da mão direita no braço da poltrona, enraivece-me. Não sei explicar porque um gesto tão simples e tão natural me complica tão insuportavelmente com os nervos...

Luciano Casais não apareceu, apesar do meu convite. Dizem que está neurastenico; se assim é, a neurastenia torna-o incorrecto. Não assistiu ao meu casamento, não veio ainda a minha casa e nem sequer me enviou umas flores, ele que, noutro tempo, me levava todas as semanas um magnifico ramo. Enfim... Como é poeta, sonhador e um tanto esfingico... Parece estar convencionado que o talento torna desculpavel grande parte das faltas e das indelicadezas daqueles que o possuem... Eu, apesar da minha grande amizade a Luciano, não respeito absolutamente esse criterio.

Vasco mudou; mudou... É facto que, recebendo vizitas, lhe assistia o dever de sêr amável. No entanto, não chegou a dirigir-me quatro palavras em toda a noite. Sofri com isso. Ainda hoje estou sofrendo. Por fim, encetou uma conversação, a meu vêr excessivamente prolongada, com a Emilia de Lara. Não posso compreender que encantos haja nessa poetisa pretenciosa que, de olhar erguido e ar superior, pronuncia banalidades rimadas. É trigueira, deselegante e tem um nariz horrivel. Vasco já me disse, um dia, que há mulheres feias que atraem e seduzem os homens, mil vezes mais do que as belas. Será a Emilia uma dessas mulheres?

28 de dezembro.

Estreio hoje um linda capa, que veio ontem da modista. Vou vizitar meus pais. É a primeira vez que saio sozinha e sinto-me cheia de orgulho ao pensar nisto.

Já sou alguem. Vasco não gosta de que eu saia só; trata-se, por isso, duma excepção e, ainda assim, porque meus pais moram perto. Meu marido já me disse oh, absoluta, que tem toda a confiança em mim ― nem podia deixar de ser! ― mas como sou nova e bonita, não quere que alguem tenha ensejo de murmurar.

Abracei-o, quando lhe ouvi isto, mas a verdade é que teria ficado mais satisfeita se não se mostrasse tão convencido do meu grande amor por ele. Esta mania que os homens têm, de se julgarem amados com loucura! Eu amo sinceramente meu marido; se a vida de casada me parece um tanto insipida, não é, certamente, culpa sua ― nem tão pouco minha; são coisas independentes da nossa vontade. Mas não acho bem que ele me dê a entender que esse amor era inevitavel. E se eu deixasse, amanhã, de o amar?

2 de janeiro.

Estivemos ontem, á noite, em casa de meus pais, com algumas pessoas de amizade. Foi lá, pela primeira vez, um casal que me surpreende. O marido travou, há meses, conhecimento com meu pai. É um belo rapaz de trinta e cinco anos, talvez; é alto e desempenado. A mulher, uma morena nervosa, de olhos de fogo, deve ter cerca de vinte e oito anos.

O que me interessou, neste casal, foi o imens afecto que transluz em todos os olhares, em todas as palavras que dirigem um ao outro. A esposa não perde de vista o marido, numa expressão de ternura indiscritivel; o marido interrompe, de quando em quando, a mais curiosa conversação em que se haja embrenhado, para dirigir uma palavra de afecto á sua querida mulherzinha...

Soube que são casados há sete anos e disseram-me, tambem, que têm vivido sempre daquela maneira. Parece um casal exemplar. E nós outras, eu, a Luizinha, a Maria Alice, casadas há um mês, oito meses, um ano, todas com ar cançado de quem não sente já entusiasmos! E a forma quasi indiferente por que nos dirigimos em publico aos nossos maridos e por que eles se dirigem a nós?! Estou certa de que a todas três ocorreu o mesmo pensamento: ― Que filtro misterioso ingeriram estes dois entes que mostram adorar-se, quando há sete anos que vivem em comum?

De regresso a casa e ao deitar, dirigi a Vasco preguntas sobre preguntas ácerca deste casal modelo. Ele tinha sono. Sempre me disse, contudo, que os ternissimos esposos moram no primeiro andar, por cima das primas Teixeiras, na avenida de Berne e que o socego das Teixeirinhas é quasi diariamente interrompido pelas tremendas altercações daqueles vizinhos, originadas ora pelos ciumes da esposa, ora pelos descontentamentos do marido, quando, por exemplo, o almoço tarda dez minutos...

Caí das nuvens e declarei Vasco um marido ideal. Para não adorar um homem que espera mais de meia hora pelo almoço e não arrisca um unico queixume — verdade seja que somos casados de fresco — fôra preciso ser de gelo e ingrata tanto quanto possivel! Abracei-o, com ternura, afirmando-lhe que nunca imitaria a desconfiada esposa do amigo de meu pai e que jamais faria uma cena de ciumes... quando não tivesse motivo para isso. Ele murmurou qualquer coisa, numa voz confusa, e adormeceu. Pelo meu lado, tive sonhos lindos, que me deixaram boa disposição para oito dias.

E' que, verdadeiramente, sou feliz.

24 de Fevereiro

Fomos, ontem, ao melhor teatro de Lisboa, vêr uma nova peça, que nos aborreceu pela sua fórma ilógica e absurda. Eu mal conseguia disfarçar os bocejos e Vasco esteve olhando de soslaio para a bonita vizinha da frisa contígua. Um arzinho afectado, um penteado de manequim, um vestido de alto preço e baixo gosto completavam a criaturinha de rosto de boneca, parado e inexpressivo, que tanto chamava a atenção de meu marido.

Eu fingia não vêr... Mas estava furiosa e pensei que só um homem trivial pode interessar-se, ainda que seja durante cinco minutos, por uma mulher banalíssima, como aquela com certeza era...

Para dissimular a minha impressão, puz-me, num intervalo, a observar a assistencia; notei imediatamente uma cocotte que conheço de vista e já me disseram estar muito em voga na sociedade equivoca de Lisboa. Sempre que tenho ocasião de observar uma mulher daquele genero, faço-o com intensa curiosidade. Por detraz daquela expressão impudente, daquela maquilhagem ousada, não se esconderá, muitas vezes, uma grande amargura, não se procurará abafar, em determinadas ocasiões, a consciencia da propria baixeza? Ou perderão essas mulheres toda a delicadeza moral, toda a sensibilidade naturalmente feminina? Eu não sei, não sei! — mas iria jurar que ainda a de mais longa carreira, aquela que se mostra menos escrupulosa em arruinar os ricos, em desesperar os pobres, em causar o descalabro de alguns lares, não deixará de ter momentos de infinita tristeza, curtos lampejos de dignidade, que a fraquesa de espirito não sabe proteger e a força do habito apaga rapidamente...

Senti piedade por aquela mulher risonha e decotada que desviou de mim a vista, com presteza, quando os nossos olhos se cruzaram...

Por todas as razões saí triste do teatro...

2 de Março

Tivemos, ontem, a nossa primeira questão. Eu queria sair á noite, para ir vêr um filme muito anunciado. Vasco negou-se a acompanhar-me, dizendo que tinha assuntos de alta importancia a tratar com uns amigos, justamente á hora da exibição. Como minha mãi está com um resfriamento, não pude saír, tendo de renunciar á satisfação do meu desejo.

Vasco disse-me que podiamos ir ver, hoje, o filme, mas eu logo declarei que não sairia, para isso, nem hoje nem outra qualquer noite. E não saio! Meu marido classificou-me de teimosa e eu, a ele, de tirano; amuei e deitei-me ás nove horas da noite, o que, no entanto, não me causou insónia. Nem ouvi sequer entrar o meu tão pouco condescendente marido, que se deitou sem que eu desse por isso...

Sonhei que possuia a faculdade de me elevar nos ares — sem ser em avião — e que tinha voado, voado, numa linda noite, para um paiz desconhecido, estranho, de construções extravagantes. Poisei numa especie de minarete e quiz ajuizar do aspecto da cidade, mas uma nevoa intensa, que apareceu subitamente , não mo permitiu. — «Bizancio !» — murmurou ao meu lado, uma voz cava, que me arripiou. Não vi pessoa alguma, mas senti que me despenhava do alto do edificio e julguei chegado o meu ultimo momento. De repente, encontrei-me em casa, na saleta e ouvi Vasco dizer-me com voz agastada: «Não sei que significam todas essas fantasias; não vales mais do que as outras !»

Acordei; a claridade do dia entrava no quarto pela fenda da janela. Ao atentar na exquisitice do sonho, desatei a rir. O Vasco, que tambem havia despertado, deitou-me um olhar surprezo e eu, recordando-me da questão da vespera, retomei a minha expressão amuada e voltei-me para o lado oposto.

Ele não disse palavra e tratou de se levantar, cantarolando Vous avez perdu ça dans un taxi que, segundo suponho, ouviu no Folies Bergers. Tive vontade de lhe atirar qualquer coisa, irritadissima. com aquele desprendimento, mas consegui conter-me. Saíu, muito alegre.

Não lhe posso perdoar aquela feliz disposição.

3 de Março

Estou radiante. Vasco foi ontem procurar-me, á saleta, insistindo para que fossemos ver o filme que deu origem á nossa questão de ante-ontem. Resolvi-me por fim. Vi e gostei.

Vasco esteve cativante para comigo. Sinto-me bem, almocei hoje com muito apetite. Nenhuma outra impressão há, esta tarde, no meu espirito.

4 de Março

Estou indignada! Minha mãi veio hoje visitar-me e esteve-me contando o que a Adelaide, costureira, observou na noite de sabado. Seriam nove e meia quando ela subia a rua de Santa Marta e viu meu matido bater á porta duma casa baixa. Parou, disfarçando, para ver do que se tratava; dalí a alguns minutos saíu dessa casa uma rapariga vistosa e garrida, que travou do braço de Vasco, desaparecendo os dois a uma esquina.

Aqui está em que consistia a conferencia com amigos, sobre assuntos de importancia, que o não deixou ir comigo ao cinema, nessa mesma noite! Não será isto revoltante?!

A Adelaide diz que a rapariga é uma corista muito leviana que foi sua vizinha; eu não quero saber ao certo de quem se trata, nem é preciso, porque depois duma explosão de desespero, resolvi não falar em tal assunto a Vasco. Não me rebaixarei a mostrar ciumes por uma corista, talvez analfabeta, por quem ele me troca — sabe Deus quantas vezes! Pois não serei bastante viva de espirito e suficientemente amorosa para o cativar? Que exigirá ele mais de uma mulher e porque não lhe bastarei eu, sua esposa há tão pouco tempo?! Não sei, não comprehendo... Seja como fôr, o pedestal em que eu me esforçava por colocá-lo e que já por varias vezes tinha oscilado, ruíu agora estrondosamente e tenho a certeza de que, embora eu cale, por dignidade, a minha magua, Vasco não voltará a ser para mim o marido muito amado que foi até hoje. Não volta, não volta!

Hipocrita! Aquela ternura de ante-ontem, dia imediato ao do delicto! Perfido! Sinto-me arrependida de me ter mostrado tão terna...

Mas porque veio minha mãi falar-me dêstes nadas miseraveis, ridiculos, em que eu nunca deveria pensar?

8 de Março

Depois de três dias de cama, por causa dum resfriamento, levantei-me hoje, quasi restabelecida. Vasco, inquieto, tem-me rodeado de atenções, que eu, revoltada por tanta hipocrisia, tenho fingido não notar. Estou-o desprezando, não resta duvida, mas, ao mesmo tempo, sinto desejos de bater-lhe. Preferiria, contudo, ter passado estes dias sem que ele me visse, porque, com a cabeça pesada, os olhos entumecidos, o rosto avermelhado, estive, provavelmente, muito feia... Enfurece-me a idéa de que ele, durante esses dias, tenha achado mais bonitas do que eu mulheres que afinal o não são e cujos ataques de gripe ele não presencia!

E a outra, a corista espalhafatosa? Estas pequeninas miserias da vida! Vou fazer-me linda, para que Vasco logo á tarde me admire.

11 de Março

Não pude conter-me, hoje, quando meu marido veio beijar-me. Afastei-me, desdenhosa, e declarei-lhe que não receberia de bom grado caricias de quem as prodigalisava, por vezes, a criaturas pouco dignas. Ele corou ligeiramente e desatou a rir, logo em seguida, num riso forçado que me incomodou. Quiz que eu lhe explicasse as minhas palavras, preguntando-me porque razão desconfiava do «meu Vasco» e porque, tendo-me deixado beijar ontem, ante-ontem e nos outros dias, hoje, justamente depois dele ter passado quatro noites a fio sem sair de casa, mostrava semelhante atitude. Achei-o afectado, ridiculo; tinha a gravata ao lado e alguns cabelos erguiam-se-lhe, despenteados, no alto da cabeça. Tive um frouxo de riso que me ia sufocando e atirei-me para cima do sofá, sempre a rir. Deixei-me beijar, por fim, com o que ele exultou. Afinal de contas, não lhe quero mal.

Homens! Devo tornar-me tolerante e é possivel que acabe, como tantas outras, por habituar-me a estas traições.

Se a verdadeira vida é assim, não se pode dizer que seja animadora... Mas que remedio, senão filosofar!

22 de Março

Ontem, á noite, enquanto meu marido trabalhava em frente de uma pirâmide de planos, livros tecnicos e outros papeis dêsses que sempre me têm afugentado — e eu que havia julgado o contrario! — estive algum tempo à janela do meu quarto.

Tinha fechado a luz, antes de me sentar no divam que ocupa o vão dessa janela, raramente aberta. Onze horas, silencio, melancolia. Aflorou-me os labios um sorriso de irónica tristeza, ao recordar todo o meu alvoroço de há quatro mezes. Compreendo agora quanto tinham de insensatas e absurdas as minhas ambições sentimentais.

Eu esperava da vida qualquer coisa que não sei nem soube nunca definir qualquer coisa de bom, de belo, de entusiastico, que viesse preencher o meu coração enfermo de vácuo e soledade. Supuz que, ao ser solicitada pelo amor, deixando a casa de meus pais, cujo afecto não contentava a minha alma ardente, cairia sobre mim, vinda de alguma cornucópia maravilhosa, uma cantante e eterna cachoeira de prazeres, de jubilosas sensações. E o destino burlou-me, escarneceu-me. Casei há trez meses e meio e estou já sucumbida, amarrotada pela desilusão. Não posso deixar de pensar, com pavor, no que sucederá daqui a tres ou quatro anos... Procuro segurar-me, com todas as minhas forças, aos restos de um ótimismo que me foge; mas a realidade contundente murmura sem cessar, aos meus ouvidos, o seu estribilho dia bólico: «Teu marido atraiçoa-te após alguns escassos meses de casados, e, em troca, tu não lhe tens amor.» Esta é a verdade crua, cortante, que rompe, implacavelmente, a tunica rosada e ténue da ilusão. Eu não amo meu marido, nunca o amei, apesar de repetir incessantemente a mim própria que o amava, como uma criança que repete a lição que deve decorar. E, durante mais de uma hora, com o olhar perdido no espaço, a face encostada a uma das mãos, sentindo-me sozinha como nunca me sentira, pensei nessa verdade desoladora e evidente.

Depois, numa involuntaria sucessão de pensamentos, lembrei-me de que muitas outras mulheres viveriam, àquela mesma hora, o seu drama de amor, de ciume, de miseria ou de ambição. Junto das janelas iluminadas que lantejoulavam a cidade nocturna, tornando-a semelhante ao manto dum estrião gigantesco, outras janelas haveria, mergulhadas na treva, sobre cujos parapeitos deviam debruçar-se frontes febris, insatisfeitas, de mulher. E muitos homens sofreriam, tambem, ocultos na obscuridade daquela noite sem lua, as suas decepções, as suas humilhações, as suas amarguras, a morte dos seus mais belos sonhos, assassinados por um ruim destino...

Quantas almas feridas nas arestas da vida sangrariam, naquele instante, espalhadas pelo mundo?

Estas reflexões não me trouxeram, porém, consolação. Descaiu-me, num dos braços, a cabeça perturbada; chorei silenciosamente, por mim e por todas as mulheres que, nesse minuto, se batiam, como eu, em dolorosos raciocinios.

27 de Março

A manhã está esplendente. Esta luz que poisa num ângulo da minha pequena secretária é leve e cariciosa. Vasco saíu hoje muito cêdo. Devem trazer-me logo uma gatinha felpuda, que vi e cubicei há poucos dias e cujos olhos recordam o oiro fosco de certas joias antigas.

Tenho lírios amarelos na sala de visitas e um perfume novo sobre o marmore do toucador. O meu lenço está impregnado dessa deliciosa essencia. Sinto-me ótimista; canta-me dentro do coração, nesta primavera radiosa, um passarinho irrequieto, de plumagem irisada e garganta de cristal... Ontem, estive num dos meus dias cinzentos; hoje, que diferença!

30 de Março

Não posso, não devo suportar por mais tempo o revoltante procedimento de meu marido. Foi passar hoje parte da noite com essa mulher de quem me falaram. Vi-o eu. Achei suspeito o ar apressado com que saíu depois de jantar vesti, á pressa, um agasalho e... segui-o. Desci até este ponto perante a minha propria dignidade. A mulher é grosseira, vulgar — assim me pareceu de longe. E' provavel que Vasco, já, em solteiro, a conhecesse e ache natural conservar, depois de casado, uma ligação que nada tem de lisongeira para ele.

Que vergonha! Custa a crer que um homem culto possa comprazer-se em taes inferioridades. Sob a excitação destes meus pobres nervos, não logram perdurar filosofias fáceis.

Tenho febre; e tenho frio, tambem. Isto vae acabar mal...