Fomos ao cemitério. Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os mais deles ficaram a embranquecer cá fora.
Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples, — a inscrição e uma cruz, — mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre da véspera.
Rita orou diante dele alguns minutos, enquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas próximas. Em quase todas havia a mesma antiga súplica da nossa: "Orai por ele! Orai por ela!" Rita me disse depois, em caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos os que ali estão. Talvez seja a única. A mana é boa criatura, não menos que alegre.
A impressão que me dava o total do cemitério é a que me deram sempre outros; tudo ali estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas imóveis. Só alguns pássaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorjeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.
Já perto do portão, à saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, enquanto ela rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma.
— Onde está?
Disse-lhe onde estava. Quis ver quem era. Rita, além de boa pessoa, é curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperássemos ali mesmo, ao portão.
— Não! pode não vir tão cedo, vamos espiá-la de longe. É assim bonita?
— Pareceu-me.
Entramos e enfiamos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distância, Rita deteve-se.
— Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, há dias.
— Quem é?
— É a viúva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.
Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá apareceu em Andaraí, a quem Rita me apresentou e com quem falei alguns minutos.
— Viúva de um médico, não é?
— Isso; filha de um fazendeiro da Paraíba do Sul, o Barão de Santa-Pia.
Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quisesse beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dois coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: "Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu". Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viúva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para trás. Encoberto por um mausoléu, não a pude ver mais nem melhor que a princípio. Ela foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos depois e viemos no outro.
Rita contou-me então alguma coisa da vida da moça e da felicidade grande que tivera com o marido, ali sepultado há mais de dois anos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta reflexão:
— Não quer dizer que não venha a casar outra vez.
— Aquela não casa.
— Quem lhe diz que não?
— Não casa; basta saber as circunstâncias do casamento, a vida que tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.
— Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.
— Mas eu não casei.
— Você é outra coisa, você é única.
Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como se me chamasse "peralta". Logo ficou séria, porque a lembrança do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso à bulha; ela, depois de aceitar uma ordem de idéias mais alegre, convidou-me a ver se a viúva Noronha casava comigo; apostava que não.
— Com os meus sessenta e dois anos?
— Oh! não os parece; tem a verdura dos trinta.
Pouco depois chegamos a casa e Rita almoçou comigo. Antes do almoço, tornamos a falar da viúva e do casamento, e ela repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe:
— Mana, você está a querer fazer comigo a aposta de Deus e de Mefistófeles; não conhece?
— Não conheço.
Fui à minha pequena estante e tirei o volume do Fausto, abri a página do prólogo no Céu, e li-lha, resumindo como pude. Rita escutou atenta o desafio de Deus e do Diabo, a propósito do velho Fausto, o servo do Senhor, e da perda infalível que faria dele o astuto. Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquela ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo:
— Vamos almoçar. Não quero saber desses prólogos nem de outros; repito o que disse, e veja você se refaz o que lá vai desfeito. Vamos almoçar.
Fomos almoçar; às duas horas Rita voltou para Andaraí, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.