Indo a entrar na barca de Niterói, quem é que encontrei encostado à amurada? Tristão, ninguém menos, Tristão que olhava para o lado da barra, como se estivesse com desejo de abrir por ela fora e sair para a Europa. Foi o que eu lhe disse, gracejando, mas ele acudiu que não.

— Estou a admirar estas nossas belezas, explicou.

— Deste outro lado são maiores.

— São iguais, emendou. Já as mirei todas, e do pouco que vi lá fora é ainda o que acho mais magnífico no mundo.

O assunto era velho e bom para atar conversa; aproveitamo-lo e chegamos ao desembarque, depois de trocadas muitas idéias e impressões. Confesso que as minhas não eram mais novas que o assunto inicial, e eram curtas; as dele tinham sobre elas a vantagem de evocações e narrativas. Não estou para escrever tudo o que lhe ouvi acerca dos anos de infância e adolescência, nem dos de mocidade passados na Europa. Foi interessante, decerto, e parece que sincero e exato, mas foi longo, por mais curta que fosse a viagem da barca. Enfim, chegamos à Praia Grande. Quando eu lhe disse que preferia este nome popular ao nome oficial, administrativo e político de Niterói, dissentiu de mim. Repliquei que a razão do dissentimento vinha de ser eu velho e ele moço. "Criei-me com a Praia Grande; quando o senhor nasceu a crisma de Niterói pegara." Não havia nisto agudeza alguma; ele, porém, sorriu como achando fina a resposta, e disse-me:

— Não há velhice para um espírito como o seu.

— Acha? perguntei incredulamente.

— Já meus padrinhos mo haviam dito, e eu reconheço que diziam a verdade.

Agradeci de cabeça, e, estendendo-lhe a mão:

— Vou ao palácio da presidência. Até à volta, se nos encontrarmos.

Uma hora depois, quando eu chegava à ponte, lá o achei. Imaginei que esperasse por mim, mas nem me cabia perguntar-lho, nem talvez a ele dizê-lo. A barca vinha perto, chegou, atracou, entramos. Na viagem de regresso tive uma notícia que não sabia; Tristão, alcunhado brasileiro em Lisboa, como outros da própria terra, que voltam daqui, é português naturalizado.

— Aguiar sabe?

— Sabe. O que ele ainda não sabe, mas vai saber, é que nas vésperas de partir aceitei a proposta de entrar na política, e vou ser eleito deputado às cortes no ano que vem. Não fosse isso, e eu cá ficava com ele; iria buscar meu pai e minha mãe. Sei que ele me há de querer dissuadir do plano; meu padrinho não gosta de política, menos ainda de política militante, mas eu estou obrigado pelo gosto que lhe tenho e pelo acordo a que cheguei com os chefes do partido. Escrevi algum tempo num jornal de Lisboa, e dizem que não inteiramente mal. Também falei em comícios.

— Eles querem-lhe muito.

— Sei, muito, como a um filho.

— Têm também uma filha de afeição.

— Também sei, uma viúva, filha de um fazendeiro que morreu há pouco. Já me falaram dela. Vi-lhe o retrato encaixilhado pelas mãos da madrinha. Se conhece bem a madrinha, há de saber o coração terno que tem. Toda ela é maternidade. Aos próprios animais estende a simpatia. Nunca lhe falaram de um terceiro filho que tiveram, e ela amava muito?

— Creio que não; não me lembra.

— Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim, à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já me não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.

Não me soube grandemente essa aliança de gerente de banco e pai de cachorro. É verdade que o próprio Tristão dá a maior parte à madrinha, que é mulher. Com a prática dos dias anteriores e estas duas viagens de barca, sinto-me meio habilitado a possuir bem aquele moço. Só lhe ouvi meia dúzia de palavras algo parecidas com louvor próprio, e ainda assim moderado. "Dizem que não escrevo inteiramente mal" encobrirá a convicção de que escreve bem, mas não o disse, e pode ser verdade.