Anteontem fui deixar um bilhete de visita a Fidélia; ontem, a convite do tio, que me encontrou na rua, fui tomar chá com ambos.
Naturalmente conversamos do defunto. Fidélia narrou tudo o que viu e sentiu nos últimos dias do pai, e foi muito. Não falou da separação trazida pelo casamento, era assunto velho e acabado. A culpa, se houve então culpa, foi de ambos, ela por amar a outro, ele por querer mal ao escolhido. Eu é que digo isso, não ela, que em sua tristeza de filha conserva a de viúva, e se houvesse de escolher outra vez entre o pai e o marido, iria para o marido. Também falou da fazenda e dos libertos, mas vendo que o assunto era já demasiado pessoal, mudou de conversa, e cuidamos da cidade e das ocorrências do dia.
Pouco depois chegaram D. Cesária e o marido, o Doutor Faria, que vinham também visitá-la. A expansão com que D. Cesária falou a Fidélia e lhe deu o beijo da entrada compensou, a meu ver, o dente que lhe meteu há dias em casa do corretor Miranda. Daquela vez, apesar da graça com que falou, não gostei de a ver morder a viúva; agora tudo está pago. Repito o que lá digo atrás: esta senhora é muito mais graciosa que o marido. Nem precisa muito; ele o mal que diz dos outros di-lo mal, ela é sempre interessante.
D. Cesária pagou tudo. Não é que as palavras que empregou ontem dêem muito de si, como louvor e amizade, mas a expressão dos olhos, o ar admirativo e aprovador, um sorriso teimoso, quase constante, tudo isso valia por um capital de afeto. Papel-moeda também é dinheiro. Com ele comprei esta tinta e esta pena, o charuto que estou fumando e o almoço que começo a digerir. As duas senhoras não sofrem comparação entre si, e para conversar, D. Cesária basta e sobra. Eu conheci na vida algumas dessas pessoas capazes de dar interesse a um tédio e movimento a um defunto; enchem tudo consigo. Fidélia parece ter-lhe simpatia e ouvi-la com prazer. A noite foi boa.
Ia-me esquecendo uma coisa. Fidélia mandou encaixilhar juntas as fotografias do pai e do marido, e pô-las na sala. Não o fez nunca em vida do barão para respeitar os sentimentos deste; agora que a morte os reconciliou, quer reconciliá-los em efígie. Foi ela mesma que me deu esta explicação, quando eu olhava para eles. Não me admira a delicadeza de outrora, nem a resolução de agora; tudo responde à mesma harmonia moral da pessoa.
Quando eu disse isto cá fora ao casal Faria (saímos juntos), o marido torceu o nariz. Não lhe vi o gesto, mas ele proferiu uma palavra que implica o gesto; foi esta: "Afetação!" Quis replicar-lhe que não podia havê-la em ato tão íntimo e particular, mas a tempo encolhi a língua. D. Cesária não aprovou nem reprovou o dito; ponderou apenas que o gás estava muito escuro. Notei para mim que estava claríssimo, e que provavelmente ela não achara mais pronto desvio à conversação. Faria aproveitou o reparo da esposa para dizer o mal que pensa da companhia do gás e do governo, e chamou ladrão ao fiscal. Eram onze horas.