Venho da gente Aguiar, e não me quero ir deitar sem escrever primeiro o que lá se passou. Cheguei cedo, estavam sós os dois velhos e receberam-me familiarmente.

— Venha o terceiro velho, disse Aguiar, venha fazer companhia aos dois que aqui ficaram abandonados.

Esta palavra, que podia ser de queixa, foi dita rindo, e percebi pelo tom que era alegre. Foi-me dita quase à porta da sala, onde ele foi ter comigo, ficando ela em uma das duas cadeiras de balanço, unidas e trocadas, em forma de conversadeira, onde costumavam passar as horas solitárias. Respondi que trazia a minha velhice para somar às duas e formar com elas uma só e verde mocidade, das que já não há na Terra. Sobre este tema gasto e vulgar disseram também algo de riso, e tais foram os primeiros minutos.

— Talvez não nos encontrasse, se eu não estivesse doente de um joelho, disse D. Carmo.

— Doente?

— Dói-me um pouco este joelho, e o lugar é melindroso para andar. Tristão foi sozinho à casa do desembargador, aonde vão hoje alguns amigos do foro. Aguiar também queria ir, mas Tristão disse-lhe que era melhor ficar; ele se incumbiria de dar lá todas as desculpas, e foi sozinho.

— Quis que eu ficasse fazendo companhia à madrinha, explicou Aguiar. Se eu teimo em ir ele era capaz de ficar para a não deixar sozinha.

— Pode ser, disse D. Carmo com os olhos.

Só com os olhos. De boca disse logo depois que talvez ele fosse também, à espera de ver lá moças. É provável que os velhos amigos levem as filhas.

— Mas então é alguma festa? perguntei.

— Não, conselheiro, acudiu Aguiar; os amigos são uns três ou quatro que ontem ajustaram entre si lá ir hoje, e avisaram disso o desembargador. Foi o que Fidélia nos contou ontem mesmo, aqui em casa.

E D. Carmo continuou o que ia dizendo antes:

— Alguns levarão as filhas, e é natural a um rapaz o desejo de ver moças. Tristão acha que as suas patrícias são muito graciosas; mais de uma vez o tem dito. Também se não houver lá nenhuma é provável que acabe a visita cedo e torne para casa. Tristão é cada vez mais amigo nosso.

Conhecia este outro tema, e acenei de cabeça que sim. Aguiar disse a mesma coisa. O que ele não disse, nem eu esperei, foi a nota melancólica que a mulher trouxe à conversação, e que eu cuidei de atenuar, como pude.

— Os dias vão correndo, disse ela, e os últimos correrão mais depressa; brevemente o nosso Tristão volta para Lisboa e nunca mais virá cá, ou só virá para ver as nossas covas.

— Ora, D. Carmo! deixe-se de idéias tristes.

— Carmo tem razão, interveio o marido; o tempo acabará depressa para que ele se vá, e não ficará às nossas ordens para que fiquemos eternamente na vida.

— Todos nós lá vamos, disse eu. A morte é outro desembargador, conta muitos amigos que lá passam as noites, e os que têm filhas levam as filhas. Isto é certo, mas o melhor é não pensar nela.

— Não é nela, é nele, emendou D. Carmo; falo do nosso Tristão, que se irá brevemente.

Sorri e disse:

— Ele se irá, creio, mas ficará ela.

Acentuei bem os pronomes, e não seria preciso; Carmo entendeu-me logo e bem. O ar de riso que se lhe espraiou do rosto mostrou que entendera a alusão à bela Fidélia. Era uma consolação grande. Não obstante, a consolação só cabe ao que dói, e a dor da perda de um já não seria menor que o prazer da conservação da outra. Logo vi essas duas expressões no rosto da boa senhora, combinadas em uma só e única, espécie de meio luto. Aguiar também sentiria como a mulher, mas o ofício de banqueiro obriga e acostuma a dissimular. E talvez ainda não falassem entre si do próximo regresso do Tristão; felicidade rima com eternidade, e estes eram felizes.

Eram felizes, e foi o marido que primeiro arrolou as qualidades novas de Tristão. A mulher deixou-se ir no mesmo serviço, e eu tive de os ouvir com aquela complacência, que é uma qualidade minha, e não das novas. Quase que a trouxe da escola, se não foi do berço. Contava minha mãe que eu raro chorava por mama; apenas fazia uma cara feia e implorativa. Na escola não briguei com ninguém, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes eram extremados e discutiam, eu fazia da minha alma um compasso, que abria as pontas aos dois extremos. Eles acabavam esmurrando-se e amando-me.

Não quero elogiar-me... Onde estava eu? Ah! no ponto em que os dois velhos diziam das qualidades do moço. Não mentiam; quando muito, podiam exagerar alguma, mas as que citavam deviam ser verdadeiras: bom, carinhoso, atento, justo, puro de sentimentos, índole pacífica, maneiras educadas, capaz de sacrifícios, se fosse necessário. Não o tinham achado mau nem falho, quando ele chegou; agora, porém, as qualidades antigas estavam apuradas, e algumas novas apareciam. Ainda que eu discordasse deles não diria nada para os não aborrecer, mas que sabia eu que pudesse contrariar essa opinião de amigos? Nada; concordei com ambos.

D. Carmo entendeu acaso que o assunto podia ser enfadonho a estranhos, e trocou as mãos à conversa. Não totalmente, é verdade; falou da casa do Desembargador Campos e do que iria por lá. Eu (habilmente, confesso) querendo saber o estado do coração de Osório, perguntei se ele não estaria lá também, ele, que também é do foro. Aguiar disse logo que podia ser que sim; conforme. Sobre isto falamos um pouco, e as qualidades do advogado foram ainda honradas, mas não eram tantas, nem tamanhas como as de Tristão. Falavam com simpatia, Aguiar mais que D. Carmo; eram relações propriamente do banco e do foro.

— Mas não haverá ainda nele alguma faísca antiga? perguntei.

— Pode ser, e será mais uma razão para fugir, concluiu ele.

Não quis dizer o que vira na rua, e aliás a conclusão dele não era errada. D. Carmo escutava agora sem falar, embora com interesse. A discrição daquela senhora é das mais completas que tenho achado na vida. Não quis ela entrar em tal assunto, e o marido não tardou muito que o deixasse. Eu não retive a um nem a outro.

Assim é o destino dos namorados sem ventura; os próprios amigos, como Aguiar parece que é de Osório, tratam logo de outra coisa. Eles que se fiquem consigo. Nós passamos a tratar de algumas notícias de sociedade e das últimas notícias novelescas de Paris. Neste capítulo D. Carmo sabe mais que eu, e muito mais que o marido, que não sabe nada; mas Aguiar acompanhou a conversação como se soubesse alguma coisa. Ele compra-lhe os livros, que ela lê e resume para ele ouvir. Como a memória dele é grande, cita também as narrações escritas, com a diferença que ela, tendo impressão direta, a análise que faz é mais viva e interessante. Ouvi-lhe dizer de alguns nomes contemporâneos muita coisa fina e própria. É claro que, se o marido escrevesse também, achá-lo-ia melhor que ninguém, porque ela o ama deveras, tanto ou mais que no primeiro dia; é a impressão que ainda hoje me deixou.

Eu, para lhes ser agradável, — e um pouco a mim mesmo, porque os queria gozar também, — voltei ao assunto principal para ambos, que não seria Fidélia só, nem só Tristão, mas os dois juntos.

— Digam-me, se eles fossem irmãos e seus filhos, não seria melhor que apenas amigos e estranhos um ao outro?

Era a primeira vez que lhes dizia uma coisa destas, e o interesse foi tamanho que eles pegaram do assunto para dizer coisas interessantíssimas. Não as escrevo por ser tarde, mas cá me ficam de memória. Digo só que, quando saí, D. Carmo, apesar do joelho doente, e por mais que eu quisesse detê-la, veio comigo à porta da sala. Aguiar acompanhou-me até à porta do jardim, enquanto ela veio à janela, donde se despedia ainda uma vez.

— Olhe o sereno, boa noite, disse-lhe eu cá de baixo.

— Boa noite.

D. Carmo entrou. Aguiar e eu apertamos a mão um do outro. Indo a sair, lembrou-me falar do cão ali sepultado. Não lhe falei logo, dei três ou quatro investidas, mas tão rápidas que, se gastei um minuto, foi o mais; nem tanto. Aguiar ouviu-me espantado e constrangido.

— Quem lhe contou isso?

— O Dr. Tristão.

Não lhe quis citar o Campos, que também me falou do animal. Aguiar confessou calando, depois falando, mas não falou muito. Confirmou que tiveram muita amizade ao bicho, e referiu-me os padecimentos que a doença e a morte deste produziram na mulher. Não disse os seus, mas também os tivera; olhou uma vez para o lado da parede, e depois de uma pausa:

— Tristão riu-se naturalmente do nosso carinho?

— Ao contrário, falou-me com muito louvor; tem bom coração aquele rapaz.

— Muito bom.

Apesar de não ser dado a melancolias, nem achar que o ofício de banqueiro vá com tais lástimas, separei-me dele com simpatia. Vim pela Rua da Princesa, pensando nele e nela, sem me dar de um cão que, ouvindo os meus passos na rua, latia de dentro de uma chácara. Não faltam cães atrás da gente, uns feios, outros bonitos, e todos impertinentes. Perto da Rua do Catete, o latido ia diminuindo, e então pareceu-me que me mandava este recado: "Meu amigo, não lhe importe saber o motivo que me inspira este discurso; late-se como se morre, tudo é ofício de cães, e o cão do casal Aguiar latia também outrora; agora esquece, que é ofício de defunto".

Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que preferi atribuí-lo a algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro. Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol. Creio que falavam da Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão filósofo, e o mérito do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá dado algum dia o meu cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com vozes defuntas.