Ontem escrevi à mana Rita anunciando-lhe a morte do homem, e hoje de manhã abrindo os jornais, dei com a notícia de haver falecido ontem o leiloeiro Fernandes. Chamava-se Fernandes. Sucumbiu a não sei que moléstia grega ou latina. Parece que era bom chefe de família, honrado e laborioso, e excelente cidadão; a Vida Nova chama-lhe grande, mas talvez ele votasse com os liberais.
Mana Rita, já pela minha carta, já pelas notícias de hoje, correu a ter comigo. Senhoras não deviam escrever cartas; raras dizem tudo e claro; muitas têm a linguagem escassa ou escura. Rita pedira-me notícias do leiloeiro, por lhe dizerem que ele morava no Catete, e adoecera gravemente há dias. Como era meu vizinho, podia ser que eu soubesse dele: foi o motivo da pergunta, mas esqueceu dizê-lo.
Hesitei entre confessar a minha invenção ou deixá-la encoberta pela coincidência, mas foi só um minuto, nem isso, foi um instante. Rita é minha irmã, não me ficaria querendo mal e acabaria rindo também. Ouviu a minha verdade, sem zanga, mas também sem riso. A razão disto é um pormenor, que não vale a pena dizer miudamente e só o bastante para explicar a carta e a seriedade. Trata-se de contas entre ela e o finado, objetos que ela mandou vender, e não sabe se ele vendeu ou não, nem como havê-los ou o dinheiro; bastará ir ao armazém. Há de haver escrituração donde conste tudo; prometi acompanhá-la amanhã. Ficou satisfeita, começou então a sorrir, depois disse-me os objetos que eram, quadros velhos, romances lidos.
Jantou comigo. Antes de irmos para a mesa, vimos passar o enterro do Fernandes. Teve a pachorra de contar os carros; ai de mim, também eu os contava em pequeno; ela é que parece não haver perdido esse costume estatístico. O Fernandes levava trinta e sete ou trinta e oito carros.
Deixo aqui esta página com o fim único de me lembrar que o acaso também é corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero.