IV

As minhas primeiras aventuras

 

Durante algum tempo naveguei na companhia de meu pae; depois fui a Cagliari no bergantim Etna, de que era capitão José Gervino.

N’esta viagem presenciei uma horrivel catastrophe que me deixou uma eterna recordação. Vindo de Cagliari, na altura do cabo Noli, navegavamos na companhia de alguns navios, entre os quaes se achava uma encantadora falua catalã. Depois de gosarmos dois ou tres dias de um bello tempo, começámos a sentir algumas rajadas d’esse vento a que os nossos marinheiros chamam Libieno, por que antes de chegar ao Mediterraneo passa pelo deserto de Lybia. Impellido por elle o mar não tardou a enfurecer-se, e tão furiosamente que nos arrastou para Vado.

A falúa de que já fallei sustentou-se admiravelmente no começo da tormenta, e não duvido dizer que todos nós receiando que a tempestade augmentasse, desejavamos antes estar a bordo da falúa, do que dos nossos navios. Infelizmente a desgraçada embarcação estava destinada a offerecer-nos um doloroso espectaculo: uma vaga horrivel a cobriu, e em bem poucos instantes todos aquelles desgraçados foram submergidos. A catastrophe tinha logar á nossa direita, e por isso nos era absolutamente impossivel soccorrel-os. Os outros navios que nos acompanhavam tambem se achavam na mesma impossibilidade. Nove pessoas da mesma familia morreram á nossa vista, sem lhe podermos prestar o mais leve soccorro. Algumas lagrimas appareceram nos olhos dos mais endurecidos dos nossos marinheiros, mas o perigo proprio era tal que ellas bem depressa seccaram. A tempestade abrandou, como se estivesse satisfeita por haver immolado estas victimas; e chegamos a Vado sem incidente.

De Vado parti para Genova, e de Genova voltei a Niza.

Então comecei uma serie de viagens ao Levante, durante as quaes fomos tres vezes tomados e roubados pelos piratas. Duas vezes o fomos na mesma viagem, o que tornou os segundos piratas mui furiosos, visto que não nos encontravam cousa alguma para roubar. Foi n’estes ataques que comecei a familiarisar-me com o perigo, e a vêr que sem ser Nelson, podia como elle perguntar: — O que é o medo?

Foi n’uma destas viagens, no bergantim Cortese, capitão Barlasemeria, que fiquei doente em Constantinopla. O navio foi obrigado a fazer-se de véla, e prolongando-se a minha doença mais do que eu tinha julgado, achei-me muito falto de recursos.

Como em todas as situações desgraçadas em que me tenho achado, sempre encontrei alguma alma caridosa que me soccorresse, nunca pensei muito na falta de dinheiro.

Entre essas almas caridosas encontrei uma que nunca esquecerei: é a excellente senhora Luiza Sauvaigo, de Niza, que me fez convencer de que as duas mulheres mais perfeitas do mundo, eram minha mãe e ella.

Luiza fazia a felicidade de um marido, excellente homem, e tratava com uma admiravel intelligencia da educação de seus filhos.

Porque razão fallei agora de Luiza? É porque escrevendo para satisfazer uma necessidade do coração, ella me dictou o que acabo de lançar ao papel.

A guerra então existente entre a Porta Ottomana e a Russia contribuiu a prolongar a minha estada na capital do imperio turco. Durante este tempo e ignorando ainda como poderia alcançar recursos para viver, fui admittido como preceptor em casa da viuva Timoni. Este emprego foi-me dado sob recommendação de M. Diego, doutor em medicina, e a quem dou aqui um voto de agradecimento pelo serviço que me prestou. Estava, pois, preceptor de tres meninos. Assim fiquei muitos mezes, até que a vontade de navegar vindo de novo, me embarquei no bergantim Notre-Dame-de-Grace, de que tinha sido capitão Casanova.

Foi este o primeiro navio em que embarquei como capitão.

Não fatigarei o leitor fallando nas minhas viagens, em que nada de extraordinario me succedeu, direi unicamente que atormentado sempre por um profundo patriotismo, nunca cessei de perguntar noticias sobre a ressurreição de Italia, mas infelizmente até á edade de vinte e quatro annos todo o trabalho foi inutil.

Emfim, n’uma viagem a Taganrog veiu a bordo do meu navio um patriota italiano, que me deu algumas noticias sob a maneira porque marchavam os negocios de Italia.

Havia alguma esperança para o nosso desgraçado paiz.

Christovão Colombo, não foi mais feliz, quando perdido no meio do Atlantico, e ameaçado pelos seus companheiros a quem havia pedido só tres dias, ouviu gritar: «Terra», do que eu quando ouvi pronunciar a palavra patria, e vi no horisonte o primeiro pharol preparado pela revolução franceza de 1830.

Havia então homens que se occupavam da redempção da Italia!

Em outra viagem, transportei no Clorinde, a Constantinopla alguns Simoniacos, conduzidos por Emilio Parrault.

Tinha ouvido fallar pouco na seita de «Saint-Simon»; sabia unicamente que estes homens eram os apostolos perseguidos de uma nova religião.

Vendo em Parrault um patriota italiano, dei-lhe parte de todos os meus pensamentos. Então durante essas noutes transparentes do Oriente, que, como diz Chateaubriand, não são as trevas, mas unicamente a ausencia do dia, debaixo d’esse ceu marchetado de estrellas, sobre esse mar de que a brisa parecia cheia de inspirações generosas, discutimos, não só as mesquinhas questões de nacionalidade nas quaes havia pensado muito, questões restrictas á Italia, e a cada provincia — mas até a grande questão da humanidade.

Este apostolo provou-me que o homem que defende a sua patria, ou que ataca a dos outros, é no primeiro caso um soldado piedoso; injusto no segundo, — mas o homem que tornando-se cosmopolita, adopta a todas por patria e vae offerecer a sua espada e o seu sangue ao povo que lucta contra a tyrannia, é mais que um soldado — é um heroe.

Teve então logar no meu espirito uma mudança repentina. Pareceu-me vêr em um navio não o vehiculo encarregado de transportar mercadorias entre os diversos paizes, mas o mensageiro do Senhor. Havia partido avido de emoções, e curioso por vêr cousas novas, e a mim mesmo perguntava se esta idéa irresistivel que me perseguia não tinha horisontes mais dilatados e por descobrir. Via esses horisontes atravez o longiquo véo do futuro.