idéas acompanhe-me, se não, entregue-me as suas armas, ou prepare-se para o combate.
— Não comprehendo o que querem dizer essas palavras=entregue-me as suas armas, respondeu o coronel, e espero que ninguem m’as ha-de explicar.
— Então tome o commando dos seus soldados, e vamos vêr por quem é Deus.
— Veremos, disse Jurien.
E partiu a galope a unir-se aos seus soldados.
Mas no mesmo momento Lavalleja desenrolou a bandeira nacional, azul, branca e encarnada e immediatamente os cento e sessenta orientaes passaram para o seu lado.
Os quarenta brazileiros foram feitos prisioneiros.
A marcha de Lavalleja para Montevideo foi uma verdadeira marcha triumphal, de que o resultado foi que a republica oriental, proclamada pela vontade e enthusiasmo de um povo inteiro, tomou logar entre as nações.
ROSAS
Durante estes acontecimentos engrandecia-se um nome que mais tarde devia ser o terror da federação argentina.
Pouco depois da revolução de 1810 um mancebo de quinze a dezaseis annos saía de Buenos-Ayres, abandonando a cidade e dirigindo-se para o campo. Ia muito perturbado e caminhava apressadamente.
Este mancebo chamava-se João Manoel Rosas.
Porque esta creança, este fugitivo abandonava a casa onde havia nascido? Porque ia pedir um asylo aos habitantes dos montes? É porque acabava de insultar sua mãe, como mais tarde devia insultar a sua patria; ia perseguido pela maldição pa terna.
Este successo, sem nenhuma importancia para os acontecimentos d’aquelle paiz, esqueceu bem depressa no meio de factos mais serios que então tiveram logar, e em quanto todos os antigos companheiros do fugitivo se reuniam debaixo do estandarte da independencia para combater os hespanhoes, Rosas, andava pelos pampas entregando-se á vida dos gauchos, adoptando o seu vestuario e costumes, tornando-se um dos melhores cavalleiros e um dos homens mais habeis d’essas immensas planicies, no manejo do laço e da bola, de sorte que vendo-o tão habil n’estes exercicios selvagens, quem não o conhecesse não o tomaria por um habitante da cidade, nem por um pueblero fugitivo, mas por um verdadeiro gaucho.
Rosas entrou primeiramente como peon, isto é jornaleiro, em uma estancia, depois foi capataz, — Garibaldi já nos explicou o que era um capataz — chegando depois a mayordomo.
N’esta qualidade governava os bens da poderosa familia Anchorena. É d’ahi que começa a sua fortuna como proprietario.
Sendo o nosso designio fazer conhecer Rosas debaixo de todos os aspectos; vamos dizer qual era a situação do seu espirito no meio dos acontecimentos que então tinham logar.
Rosas tinha estado em Buenos-Ayres durante os prodigios praticados pela revolução contra a Hespanha. Então quem tinha coragem procurava a celebridade no campo da batalha, quem tinha instrucção procurava-a nos conselhos. Rosas era ambicioso de celebridade, mas qual era a que elle poderia esperar? Que nome poderia adquirir, elle que não tinha nem coragem para se apresentar no campo da batalha, nem instrucção alguma para adquirir um nome entre os homens da sciencia? A todos os momentos ouvia proferir a seu lado alguns nomes que se haviam tornado celebres. Eram como ministros, Rivadaria, de Pasos, de Aguerro, como guerreiros, Saint-Martin, de Baléarés, de Rodrigues, e de Las Heras.
E todos estes nomes de que o ruido, vindo da cidade, ia achar éco nas solidões dos campos, todos estes nomes avivavam o seu odio contra essa cidade que tendo triumphos para todos, não tinha para elle senão o exilio.
Já n’esta época Rosas pensava no futuro e preparava-o. Errando pelos pampas, confundido com os gauchos, fazia-se o companheiro da miseria do povo, elogiando os prejuizos do homem das planicies, excitando-o contra os cidadãos, demonstrando-lhe a superioridade do numero e diligenciando fazer-lhe comprehender que quando quizessem os habitantes do campo, seriam senhores da cidade.
Os annos foram passando, até que chegamos a 1820.
Foi então que Rosas começou a apparecer, apoiado na influencia que havia adquirido nos habitantes das planicies.
Já vimos o que se passou em Montevideo. Vejamos agora o que se passou em Buenos-Ayres.
A milicia de Buenos-Ayres rebellou-se contra o governador Rodrigues. Então um regimento das milicias do campo, los colorados de las Conchas entraram na cidade, em 5 de outubro de 1820, tendo á sua frente um coronel, que era conhecido em Buenos-Ayres, e que conhecia Buenos Ayres.
Este coronel era Rosas.
No dia seguinte as milicias do campo, e as milicias da cidade vieram ás mãos, mas n’esse dia o coronel não estava á frente do regimento.
Uma violenta dôr de dentes, que Rosas deixou de soffrer assim que finalisou o combate, affastava-o, com grande pezar, do campo da batalha. E porque não teria elle razão? Octavio tambem teve um grande ataque de febre no dia da batalha de Actium.
Rosas parecia-se muito com Octavio; mas mais tarde Octavio foi Augusto, o que segundo todas as probabilidades nunca será Rosas.
Esta entrada em Buenos-Ayres foi a unica expedição guerreira em que Rosas tomou parte durante toda a sua vida politica.
Foi então que Rivadavia, já mui conhecido, foi nomeado ministro do reino, tomando a direcção de todos os negocios.
Rivadavia era um d’esses homens de genio, como apparecem no meio das revoluções durante os dias de tormenta. Havia viajado muito na Europa, possuindo uma instrucção universal, e parecendo animado do mais ardente e puro patriotismo. Infelizmente a vista da civilisação europea, que tinha estudado em Paris e Londres havia-lhe feito nascer falsas idéas da sua applicação a um povo que não tendo por detraz de si dez seculos de luctas sociaes, não as podia admittir.
Rivadavia queria dobrar a marcha do tempo e fazer o mesmo pela America que Pedro o Grande havia feito pela Russia; mas não tendo á sua disposição os meios de Pedro foi obrigado a desistir das suas intenções.
Póde ser que com mais alguma esperteza Rivadavia as tivesse alcançado, mas censurava os homens pelos seus habitos e certos habitos são uma nacionalidade e outros um orgulho. Escarnecia os trajes americanos, manifestando a sua repugnancia pela jaqueta, o seu desprezo pela chiripa, o vestuario do homem dos campos, e como ao mesmo tempo não occultava a sua preferencia pela casaca e bota de polimento, despopularisou-se pouco a pouco, e sentiu o poder prestes a escapar-lhe.
E não obstante que de beneficios não fez ao seu paiz em troca d’esses vestidos ridiculos que lhe queria tirar? A sua administração foi a mais prospera que Buenos-Ayres teve. Foi elle que fundou a universidade, os liceos, e que introduziu nas escolas o ensino mutuo. Durante a sua administração, muitos sabios foram chamados da Europa, as artes foram protegidas, desenvolvendo-se muito, emfim Buenos-Ayres era chamada a Athenas da America do Sul.
Já fallámos da guerra de Buenos-Ayres em 1826. Para sustentar esta guerra, Buenos-Ayres fez sacrificios enormes, exgotando as suas finanças, e enfraquecendo por esse motivo muito as molas da sua administração.
Exgotadas as finanças, enfraquecido o governo, as revoluções começaram.
Já dissemos que em Buenos-Ayres como em Montevideo, o campo e a cidade nunca estavam em harmonias de opiniões, como nunca o estavam em harmonias de interesse.
Buenos-Ayres fez uma revolução.
Immediatamente o campo fez uma revolução, e dirigindo-se sobre Buenos-Ayres, invadiu a cidade e fez o seu chefe governador.
Este chefe era Rosas.
Vamos fechar o parenthesis, aberto algumas paginas atraz.
Em 1830 Rosas foi eleito governador pela influencia dos habitantes do campo, não obstante a opposição da cidade, que elle encontrou meia policiada pela administração de Rivadavia.
Então Rosas, o gaucho, tentou reconciliar-se com a civilisação, parecendo querer esquecer os costumes selvagens adoptados por elle até então: a serpente queria mudar de pelle.
Mas a cidade resistiu ás suas tentativas, e a civilisação recusou receber o transfuga que se havia passado para o campo da barbaria. Rosas mostrava-se revestido de um uniforme, e immediatamente os militares perguntavam em que campo de batalha havia elle ganho aquellas dragonas. Fallava n’uma reunião, e logo os homens intelligentes perguntavam entre si onde tinha elle ido aprender aquelle estylo; quando apparecia n’um passeio, as mulheres designando-o com o dedo diziam: «Ahi vae o gaucho disfarçado!»
Os tres annos do seu governo passaram-se n’esta lucta mortal para o seu orgulho, e póde ser que a estas torturas moraes que lhe fizeram soffrer n’este periodo, seja devida a sua ferocidade. D’esta maneira quando resignou o poder e desceu a escada do palacio, com a alma cheia de odio, e o coração de fel, sabendo que desde então não havia alliança possivel com a cidade, foi ter de novo com os seus fieis gauchos, e as suas estancias de que era o senhor, com a intenção de um dia entrar de novo em Buenos-Ayres, como Scylla, que elle não conhecia e de quem provavelmente nunca havia ouvido fallar, havia entrado em Roma, com a espada n’uma mão e uma tocha m outra.
Para alcançar este fim vejamos o que elle fez. Pedia ao governo que lhe concedesse um commando qualquer no exercito que ia combater os indios selvagens. O governo que o temia julgou affastal-o concedendo-lhe este favor, e deu-lhe todas as tropas de que podia dispôr, esquecendo que se enfraquecia mettendo todo o poder nas mãos de Rosas.
Este logo que se achou á frente do exercito fez uma revolução em Buenos-Ayres, fez-se chamar ao poder que não acceitou senão com grandes condições, porque tinha ás suas ordens todo o exercito, e entrou em Buenos-Ayres com a dictadura mais absoluta de que se tem conhecimento, isto é com toda la suma del poder publico — com toda a extensão do poder publico.
O governador que elle fez cair, ou antes que elle precipitou era o general João Romão Baleace, um dos homens que tinha mais trabalhado na guerra da independencia, e um dos chefes do partido federal de que Rosas se dizia o sustentaculo. Baleace era um nobre coração e a sua fidelidade á patria era proverbial. Havia acreditado em Rosas e tinha trabalhado muito para a sua elevação. Baleace foi o primeiro sacrificado por Rosas, morrendo proscripto e quando o seu cadaver repassou a fronteira, protegido pela morte, Rosas recusou á sua familia, não as honras funebres que eram devidas a um ex-governador, mas as simples ceremonias a quem todo o cidadão tem direito.
Em 1833 foi que começou o verdadeiro poder de Rosas. No seu primeiro governo, cheio de dissimulação, não tinha apresentado os seus instinctos de crueldade, que fizeram depois d’elle uma celebridade de sangue. Este primeiro periodo não tinha sido marcado senão pelo fuzilamento do major Monteiro e dos prisioneiros de S. Nicolau. Comtudo não devemos esquecer que foi n’esta época que tiveram logar muitas mortes sombrias e subitas, d’essas mortes de que a historia inscreve a data com tinta encarnada no livro das nações.
D’esta maneira desappareceram dois chefes de que a influencia poderia fazer alguma sombra a Rosas. As mortes de Arbolito e de Molina tiveram logar n’esta época. O mesmo aconteceu, segundo nos parece, aos dois consules que acompanharam Octavio na sua primeira batalha contra Antonio.
Daremos mais alguns detalhes de Rosas que ainda não nos appareceu senão como dictador, mas tendo já alcançado um poder como poucos homens tem exercido n’uma nação.
Em 1833, Rosas contava trinta e nove annos. Tinha o aspecto europeo, cabellos louros, olhos azues, e uma presença soffrivel. Não usava nem de barbas, nem de bigodes. O seu olhar seria bello se se podesse examinar, mas Rosas havia-se habituado a não olhar de frente, nem os seus amigos nem os seus inimigos, porque sabia que n’um amigo existe quasi sempre um inimigo disfarçado. A sua voz era doce, e, quando tinha necessidade de agradar a sua conversação tinha muito de attrahente. A sua reputação de cobarde é proverbial, e a de esperto é universal. Adorava as mystificações, sendo esta a sua grande occupação antes de se entregar aos negocios serios. Uma vez chegado ao poder, não foi senão uma distracção, que eram brutaes como a sua natureza.
Citemos um ou dois exemplos:
Uma tarde que devia jantar na companhia de um dos seus amigos, occultou o vinho destinado a beber-se e deixou unicamente no bofete uma garrafa do famoso licor de Leroy, que para ser completamente celebre só lhe falta ser descuberto no tempo de Moliere. O amigo procurando o vinho só achou a garrafa de Leroy e encontrando-lhe um gosto mui agradavel, bebeu-a toda. Rosas não bebeu se não agua, e partiu logo que acabou o jantar para a sua estancia.
Durante a noite o amigo de Rosas soffreu dores infernaes. Rosas riu muito d’este seu innocente brinquedo, se elle tivesse morrido, Rosas teria, sem duvida, rido muito mais.
Quando recebia algum cidadão em uma das suas estancias, fazia-o montar em cavallos muito fogosos e a sua alegria era conforme a gravidade da queda que o cavalleiro dava.
No palacio do governo achava-se sempre rodeado de loucos e de imbecis, e no meio dos negocios mais serios conservava este singular cortejo. Quando sitiava Buenos-Ayres, em 1829, tinha a seu lado quatro d’estes pobres diabos, que havia feito monges, tornando-se em virtude do seu poder, seu prior. Chamavam-se frei Biqua, frei Chaja, frei Lechuza, e frei Biscacha. Rosas gostava muito de confeitos, tendo-os sempre de todas os qualidades na sua tenda.
Os monges que tambem gostavam muito de confeitos, roubavam alguns de quando em quando. Rosas então chamava-os a todos e os monges que sabiam o que lhe custaria a mentir, confessavam o crime.
Immediatamente o culpado era despojado dos vestidos e fustigado pelos seus tres companheiros.
Todos conheciam em Buenos-Ayres o seu mulato Eusebio, e para isso muito concorreu Rosas que em um dia de recepção publica, teve a idéa de fazer o mesmo que a condessa Dubarry fazia com o preto Zamora.
Eusebio vestido de governador recebeu os cumprimentos das authoridades, em logar do seu senhor.
Não obstante a amizade que Rosas tinha a Eusebio, teve um dia a lembrança de lhe fazer uma brincadeira, como costumavam ser todas as que esta boa alma inventava. Fingiu que acabava de ser descoberta uma conspiração, contra elle, de que o chefe era Eusebio. O fim d’esta conspiração era matar Rosas. Eusebio foi preso apezar dos seus protestos de innocencia. Rosas dominava os juizes a tal ponto que elles não se importavam se o accusado era ou não innocente. Rosas accusava, e elles julgaram e condemnaram Eusebio á morte.
Eusebio soffreu todos os preparativos do supplicio. Confessou-se, e sendo depois conduzido ao logar do supplicio, ahi encontrou o carrasco e seus ajudantes, e quando este brinquedo estava quasi a terminar tragicamente, appareceu Rosas que disse a Eusebio estar sua filha Manuelita apaixonada por elle, e que por isso lhe perdoava, com a condição de a desposar.
É inutil dizer que Eusebio não morrendo do supplicio esteve quasi a morrer de medo.
Vamos agora dizer aos nossos leitores quem era como mulher esta Manuelita que a Providencia tinha collocado ao pé de seu pae como um bom anjo, de que a principal occupação, durante toda a sua vida, foi repetir todos os dias a palavra perdão, alcançando-o muitas vezes.
Manuelita é hoje uma mulher de quarenta annos que por dedicação por seu pae, e póde ser, que talvez pela missão que recebeu do ceu, se tem conservado solteira, pelo menos até 1850, época em que a perdemos de vista.
Manuelita não era precisamente uma mulher encantadora, mas era bella, com uma figura distincta, dotada de um tacto profundo, coquette como uma parisiense, e muito preoccupada, sobre tudo do effeito que produzia nos estrangeiros.
Manuelita foi muito calumniada, o que era muito natural por ser filha de Rosas, isto é, do homem sobre o qual convergiam todos os odios. Era accusada de ter herdado os sentimentos crueis de seu pae, e de ter, como a filha do papa Borgia, esquecido o amor filial por outro mais terno e menos christão.
Tudo isto é falso. Manuelita ficou solteira por duas razões: a primeira porque Rosas sentia muitas vezes a necessidade de ser amado, e sabia que o unico amor real, dedicado, infinito, sobre que podia contar era o de sua filha. Manuelita ficou solteira porque, talvez, nos seus sonhos de realeza, Rosas, hoje simples particular, vivendo num canto da Inglaterra, via no futuro brilhar para Manuelita alguma alliança mais aristocratica do que aquellas a que poderia então aspirar.
Tanto a historia deve ser severa para com Rosas, tanto, a menos de ser injusta, deve ser cheia de indulgencia para com Manuelita, a quem todos que a conhecem fazem justiça, reconhecendo o que dizemos como uma verdade. Manuelita foi o dique eterno, que fazia parar a colera de seu pae. Quando creança tinha um meio muito extravagante para obter d’elle a graça que pedia.
Fazia despir completamente o mulato Eusebio, arreiando-o como um cavallo, e calçava uns lindos sapatos com esporas. Eusebio punha as mãos no chão, e Manuelita montava-se-lhe nas costas, fazendo caracolar o seu bucephalo humano diante de seu pae que ria muito d’este singular brinquedo, concedendo a Manuelita o perdão que implorava.
Mais tarde quando ella comprehendeu que não podia empregar este meio, apezar de ser tão efficaz, começou a pôr em pratica a obra de Mecena ao pé de Augusto, quando elle lhe lançava as suas tabuas nas quaes estava escripto: Surge, carnifex! Mas Manuelita procedia de outra maneira, porque conhecendo seu pae perfeitamente, sabia as vaidades secretas que era necessario fazer vibrar, e por isso muitas vezes alcançava o que pedia.
Manuelita era ao mesmo tempo a rainha e escrava de seu pae. Administrava a casa, cuidava de Rosas, e encarregada de todas as relações diplomaticas era o verdadeiro ministro dos negocios estrangeiros de Buenos-Ayres.
Assim como Rosas era um ente á parte, que não se confundia com pessoa alguma na sociedade, Manuelita era tambem uma creatura não só estranha no meio de todas, mas mesmo estranha a todas, e que viveu n’este mundo solitaria, longe do amor dos homens e da sympathia das mulheres.
Rosas tambem tinha um filho chamado João, mas que nunca seguiu a politica de seu pae, e uma filha que ainda creança casou, sendo hoje uma casta esposa e mãi feliz, tendo um nome, o de seu marido, honrado e respeitado por todos.
Tendo alcançado o poder, o grande trabalho de Rosas, foi anniquilar a federação.
Lopes o seu fundador, cahiu doente. Rosas mandou-o vir para Buenos-Ayres e tornou-se seu enfermeiro.
Lopes morreu envenenado.
Quiroga, o chefe da federação, que havia escapado são e salvo de vinte batalhas, e de quem a coragem e lealdade era proverbial, morreu assassinado.
Cullen, o conselheiro da federação, foi nomeado governador de Santa Fé. Rosas improvisou uma revolução, e Cullen foi entregue a Rosas pelo governador de São Thiago.
Cullen foi fuzillado.
Todos os homens notaveis no partido federal tiveram a mesma sorte que tinham tido na Italia os homens de consideração durante o dominio dos Borgias. Pouco a pouco, Rosas, empregando os mesmos meios que Alexandre VI e seu filho Cesar, conseguiu reinar na republica argentina, que apezar de reduzida a uma perfeita unidade, conserva ainda o nome pomposo de federação, e vae talvez, ser inimiga dos unitarios.
Diremos algumas palavras dos homens que acabamos de nomear, fazendo reviver algum tempo os seus spectros accusadores, o que dará alguma idéa da scena de Shakespeare no Ricardo 3.o, antes do combate.
Havia n’esses homens uma especie de selvajaria politica que é digna de ser conhecida.
Fallemos primeiramente do general Lopes. Uma unica anedocta, dará não sómente idéa d’este chefe, mas fará conhecidos os homens com quem elle tinha a tratar.
Lopes era governador da Santa Fé, e tinha em Entre Rios um inimigo pessoal, o coronel Ovando, que em seguida a uma revolta foi conduzido prisioneiro ao general Lopes.
O general almoçava. Recebeu perfeitamente Ovando e convidou-o a almoçar. A conversação travou-se entre elles como entre dois convivas, aos quaes uma egualdade de condições tivesse ordenado a mais perfeita cortezia.
Comtudo no meio da conversação, Lopes exclamou:
— Coronel, se eu tivesse cahido nas suas mãos, como cahiu nas minhas e isto no momento em que almoçasse, que faria?
— Convidal-o-ia para almoçar, como v. ex.a acaba de fazer.
— E depois?
— Mandava-o fuzillar.
— Estimo muito que pense do mesmo modo que eu. Acabando de almoçar será fuzillado.
— Se não se quer demorar muito, póde ser já.
— Não, não, acabe de comer descançado, não tenho muita pressa.
E continuaram a almoçar com todo o descanço, e tendo concluido:
— Julgo ser tempo, disse Ovando.
— Agradeço-lhe o não haver esperado que eu o lembrasse, respondeu Lopes.
Depois chamando o seu camarada.
— O piquete está prompto? perguntou elle.
— Sim, meu general, respondeu o soldado.
Então voltando-se para Ovando:
— Adeus, coronel, disse Lopes.
— Adeus, não; mas sim até á vista, porque não se vive muito tempo quando se fazem guerras como as nossas.
E cumprimentando Lopes sahiu. Cinco minutos depois, o estrondo de uma descarga annunciou a Lopes que o coronel Ovando havia entregue a alma a Deos.
Passemos a Quiroga.
QUIROGA
Este é mais nosso conhecido. A sua reputação atravessando os mares, fez echo em Paris, e a moda apoderou-se d’elle: de 1820 a 1823 todos tinham capotes á Quiroga e chapeus á Bolivar. É provavel que nem um nem outro tivessem usado dos capotes e chapeus que os seus admiradores adoptaram a duas mil leguas de distancia.
Quiroga, como Rosas, era tambem camponez e havia servido, na sua mocidade, como sargento no exercito de linha contra os hespanhoes.
Retirado ao seu paiz natal, a Rioja, entrou nos partidos internos, e tornado-se senhor do paiz, lançou-se na lucta das differentes facções da republica, e foi n’estas luctas que se mostrou pela primeira vez á America.
No fim de um anno, Quiroga era a espada do partido federal, e é talvez o unico homem que tenha obtido similhantes resultados pela simples applicação do seu valor pessoal. O seu nome tinha alcançado um tal prestigio que só elle valia muitos exercitos.
A sua grande tactica no meio dos combates, era chamar para o pé de si o maior numero de perigos, e quando repentinamente dava o grito de guerra brandindo na mão essa longa lança que era a sua arma predilecta, os mais bravos faziam conhecimento com o medo.
Quiroga era cruel, ou antes feroz, mas na sua ferocidade havia sempre alguma cousa d e grande e generoso. Era a ferocidade do leão e não a do tigre.
Quando o coronel Pringles, um dos seus maiores inimigos, foi feito prisioneiro e assassinado, o seu assassino apresentou-se a Quiroga, seu chefe, julgando ter ganho uma boa recompensa.
Quiroga deixou-lhe contar o seu crime, e mandou-o fuzillar.
Uma outra vez dois officiaes pertencentes ao partido inimigo foram feitos prisioneiros pelos soldados de Quiroga que lembrando-se do castigo do seu camarada, os conduziram sãos e salvos á presença do seu chefe.
Quiroga offereceu-lhe abandonar as suas bandeiras, servindo debaixo das suas ordens.
Um acceitou, outro recusou.
— Está bem, disse elle ao que havia acceitado, montemos a cavallo e vamos vêr fuzillar o seu camarada.
Aquelle sem fazer a menor observação, apressou-se a obedecer, e conversou todo o caminho alegremente com Quiroga de quem se julgava já ajudante de campo, em quanto o seu camarada cercado por um piquete, com as armas carregadas, marchava tranquillamente para a morte.
Chegado ao logar destinado para a execução, Quiroga mandou ajoelhar o official que tinha recusado trahir o seu partido, e disse-lhe que se preparasse para morrer, e quando o viu prompto:
— Vamos, disse Quiroga, ao pobre official que se julgava já morto, és um bravo. — Monta no cavallo do teu camarada e parte.
E designava o cavallo do renegado.
— E eu? perguntou este.
— Tu, respondeu Quiroga, não precisas cavallo porque vaes morrer.
E apezar das supplicas que lhe fez em favor do seu camarada, aquelle a quem acabava de dar a vida, mandou-o fuzillar.
Quiroga só foi vencido uma vez, e essa pelo general Paz, o Fabio americano. Duas vezes destruiu o exercito de Quiroga nas terriveis batalhas de Tablada e Oncativo. Era um bello espectaculo para esses jovens republicanos o vêr a arte, a tactica e a estrategia em lucta contra a coragem indomavel e a vontade de ferro de Quiroga. Mas uma vez o general Paz foi feito prisioneiro, a cem passos do seu exercito, e desde essa época Quiroga foi invencivel.
Terminada a guerra entre o partido unitario e o partido federal, Quiroga emprehendeu uma viagem ás provincias interiores sendo na volta, attacado em Barrancallaco por trinta assassinos, que fizeram fogo sobre a carroagem. Quiroga que se achava n’esta occasião doente, estava deitado, na carroagem, tendo-lhe por isso atravessado o peito uma balla. Apesar d’isso Quiroga levantou-se pallido e ensanguentado e abriu a portinhola. Vendo-o em pé, apezar de estar quasi cadaver, os assassinos fugiram; mas Santos Peres, seu chefe, dirigiu-se a Quiroga e dando-lhe um golpe na cabeça acabou de o matar.
Então os assassinos voltaram e acabaram a obra começada. Eram os irmãos Renafé, commandantes em Cordova que de accordo com Rosas dirigiam esta expedição. Mas Rosas tinha tido todo o cuidado de affastar de si todas as suspeitas, de modo que ninguem julgou fosse elle um dos cumplices em similhante morte, podendo por isso tomar o partido do que tinha feito assassinar, perseguindo os assassinos que foram presos, julgados, e fuzillados.
Falta Cullen.
Cullen, que tinha nascido em Hespanha, havia-se estabelecido na cidade de Santa Fé, onde se tinha ligado com Lopes, sendo depois seu ministro e director na politica. A immensa influencia que Lopes teve na republica argentina, desde 1820 até á sua morte em 1833, fez de Cullen uma personagem muito importante. Quando nos dias de sua desgraça, Rosas proscripto emigrou para Santa Fé, recebeu de Cullen toda a especie de serviços, mas esses serviços não poderam fazer esquecer ao futuro dictador que Cullen era um dos homens que queriam acabar com o reinado da arbitrariedade na republica argentina. Comtudo soube occultar o seu odio a Cullen debaixo das apparencias da maior amizade.
Pela morte de Lopes, Cullen foi nomeado governador da Santa Fé consagrando-se a fazer grandes melhoramentos na provincia, e em logar de se mostrar inimigo da França, mostrou por esta nação muitas sympathias, considerando que a sua alliança era um grande passo para as suas idéas civilisadoras. Então Rosas promoveu uma revolução, que appoiou publicamente, sendo coadjuvado por alguma tropa. Cullen vencido refugiou-se na provincia de Santiago del Estero, que governava o seu amigo Ibarra. Rosas, que destruindo a federação tinha já declarado Cullen selvagem unitario, entabolou negociações com Ibarra afim de lhe entregar Cullen.
Durante muito tempo estas negociações não obtiverão resultado algum, julgando-se Cullen, seguro pela confiança que tinha no seu amigo, mas um dia foi preso pelos soldados de Ibarra e conduzido a Rosas que o mandou assassinar no meio do caminho, porque disse elle n’uma carta dirigida ao governador de Santa Fé que tinha succedido a Cullen, o seu processo estava feito pelos seus crimes que eram conhecidos por todos.
Cullen era dotado d’uma conversação agradavel e d’um coração generoso. A sua influencia sobre Lopes foi sempre empregada a evitar toda a especie de rigor, e foi em resultado d’esta influencia que o general Lopes, não obstante as supplicas de Rosas, não consentiu em mandar fuzillar um unico dos prisioneiros da campanha de 1831, campanha que poz em seu poder os chefes mais importantes do partido unitario.
Cullen possuia uma instrucção superficial e os seus talentos eram mediocres.
Foi d’esta sorte que Rosas, o unico que talvez não teve nenhuma gloria militar, entre os chefes do partido federal, se desembaraçou dos chefes d’este partido, ficando desde então a pessoa mais importante da republica argentina, e senhor absoluto de Buenos Ayres.
Então Rosas tendo alcançado todo o poder, commeçou a sua vingança contra as classes elevadas que até então o tinham despresado. No meio das personagens mais aristocratas e mais elegantes mostrava-se sempre vestido de jaqueta, ou sem gravata. Aos seus bailes a que presidia com sua mulher e filha, não eram convidados senão os carreiros, sapateiros, etc. Um dia abriu o baile dançando com uma escrava, e Manuelita com um gaucho.
Mas não foi só d’esta maneira que elle puniu a soberba cidade, porque proclamou o terrivel principio:
«o que não está comigo é contra mim»
E desde então todo o homem que lhe desagradava foi classificado de selvagem unitario, e o que uma vez Rosas havia designando por este nome não tinha mais direito nem á vida nem á honra.
Então para por em pratica as theorias de Rosas, organisou-se debaixo dos seus auspicios a famosa sociedade Mas-forca, isto é, ainda ha forca. Esta sociedade era composta de tudo quanto havia de peor na sociedade.
N’ella se achavam filiados por ordem superior o chefe da policia, os juizes de paz, e todos aquelles que deviam vigiar pela ordem publica. Por este meio quando os membros d’esta sociedade entravam em casa de qualquer cidadão, para a roubar ou assassinar o seu proprietario, era escusado chamar em seu auxilio a policia, porque ninguem corria a soccorrer a desgraçada victima. Estas excursões tinham logar quasi sempre de dia, tanto era o receio dos criminosos.
E quer o leitor alguns exemplos? Vamos dal-os, por que não é costume nosso fazer uma accusação sem a provar.
Os elegantes de Buenos-Ayres tinham n’esta época o habito de trazer os bigodes de modo que pareciam formar um U, e isto era sufficiente para a sociedade dos MAS-FORCA, debaixo do pretexto de que o U queria dizer unitario, se apoderar do desgraçado, rapando-lhe a cara com navalhas mal afiadas, de modo que a carne vinha juntamente aos pedaços com os cabellos. Depois de praticarem esta barbaridade, abandonavam a victima aos caprichos da populaça, que muitas vezes continuava esta brincadeira até dar a morte áquelle desgraçado.
As mulheres do povo começavam a usar nos cabellos a fita encarnada chamada mono. Um dia a Mas-forca collocada ás portas das principaes egrejas, marcou com um ferro em brasa todas as mulheres que entravam ou sahiam sem ter a tal fita.
Tambem não era uma cousa extraordinaria o ver uma mulher despojada dos seus vestidos e açoitada no meio da rua, e isto porque ella trazia um lenço, um vestido um enfeite qualquer, no qual havia a cor azul ou verde. O mesmo succedia com os homens da mais elevada posição, sendo apenas necessario para elles correrem os maiores perigos que se apresentassem em publico de casaca ou com uma gravata.
Ao mesmo tempo que as pessoas, sem duvida designadas á muito, e que pertenciam ás classes superiores da sociedade perseguidas por uma cruel vingança, eram victimas d’estas violencias, centenas de cidadãos eram encarcerados, e isso só porque as suas opiniões não estavam em harmonia com as do dictador. Ninguem conhecia o crime porque era preso, mas isso tambem era desnecessario, visto ser conhecido de Rosas. Do mesmo modo que o crime ficava desconhecido, tambem o julgamento era considerado inutil, e todos os dias as prisões para poderem dar entrada a novas victimas, eram despojadas de algumas d’ellas que erão fuziladas. Estes fuzilamentos tinham logar de noute, sendo a cidade constantemente accordada de sobresalto.
De manhã, cousa horrivel que nem mesmo em França se viu durante os terriveis dias de 1793, os carreiros apanhavão tranquillamente os cadaveres dos assassinados e hiam ás prisões buscar os dos que tinham sido fuzillados, e conduzindo-os a um grande fosso onde eram todos lançados, sem que fosse permittido aos parentes das victimas o vir reconhecel-as e prestar-lhe as ultimas honras funebres.
Ainda não é tudo: os carreiros que conduzião estes restos deploraveis annunciavam a sua chegada por terriveis gracejos que faziam fechar todas as portas e fugir a população. Muitas vezes decepavam a cabeça do tronco, enchendo cestos com ellas, e offerecendo-as depois aos tranzuentes assustados.
Bem depressa o calculo se juntou á barbaridade, o fisco á morte.
Rosas comprehendeu que o meio de se conservar no poder era crear em volta de si interesses inseparaveis dos seus.
Então mostrou a uma parte da sociedade metade da fortuna da outra dizendo-lhe — É tua.
A partir d’este momento a ruina dos antigos proprietarios de Buenos-Ayres foi consumada, começando os amigos de Rosas a obter grandes fortunas.
O que não tinha ousado pensar nenhum tyranno, o que não tinha vindo á idéa de Nero, foi executado por Rosas: depois de haver assassinado o pai prohibiu ao filho o deitar luto. A lei que continha esta prohibição foi proclamada e fixada nas esquinas, e bem necessaria foi, porque quando não, tudo em Buenos Ayres andaria de luto!
Os excessos d’este despotismo admiraram alguns estrangeiros e sobre tudo alguns francezes. Rosas cansou a paciencia de Luiz Felippe, paciencia bem reconhecida, e logo depois teve lugar o primeiro bloqueio pela esquadra franceza.
Entretanto as classes elevadas tão mal tractadas, commeçarão a fugir de Buenos Ayres e para encontrar um asylo refugiaram-se no estado oriental, onde a maioria da cidade proscripta achou hospitalidade.
Foi em vão que a policia de Rosas redobrou de vigilancia, foi em vão que uma lei prohibio de morte a emigração, foi em vão que a essa morte se juntaram os mais crueis detalhes, porque Rosas conheceu bem depressa que a morte só não era sufficiente; o terror e o odio que inspirava Rosas eram mais fortes que os meios inventados por elle, e a emigração augmentava d’uma maneira espantosa a todos os momentos. Para realisar a fuga de toda uma familia, era só necessario encontrar um barco que a podesse transportar. Encontrado elle, pai, mãe, filhos, irmãos, ahi se lançavam, abandonando casa, bens, fortuna, e todos os dias, se via chegar ao estado oriental, isto é a Montevideo algumas d’essas barcas cheias de passageiros tendo por unica fortuna o fato que levavam em cima de si.
Nenhum d’esses fugitivos teve de se arrepender da confiança que tinham posto na hospitalidade do povo oriental, pois essa hospitalidade foi como o teria sido a d’uma republica antiga; hospitalidade como devia esperar o povo argentino d’amigos, ou antes d’irmãos, que tantas vezes tinham combatido unidos para repellir os inglezes, hespanhoes ou brasileiros, — inimigos communs, inimigos estrangeiros — menos perigosos comtudo do que esse que havia nascido no meio d’elles.
Os argentinos chegavão em grande quantidade, e erão esperados no porto pelos habitantes, que escolhiam em rasão dos seus recursos pecuniarios, ou do tamanho da sua casa os emigrados que podiam recolher. Então viveres, dinheiro, fato, tudo era posto á disposição d’esses desgraçados, até que elles tivessem alcançado alguns recursos, no que todos os coadjuvavão. Elles do seu lado reconhecidos entregavam-se ao trabalho, afim de alliviar o fardo que impunhão aos seus hospedes, dandolhe assim os meios de receber novos fugitivos. Para poderem praticar tão nobre acção, as pessoas mais habituadas ao luxo trabalhavão nos misteres mais infimos, enobrecendo-se tanto mais a occupação a que se entregavam era em opposição com o seu estado social.
Foi por este modo que os mais bellos nomes da republica argentina figuram na emigração.
Lavallée, a espada mais brilhante do seu exercito, Florencio Varella, o seu mais bello talento, Aguero, um dos seus primeiros homens de estado; Echaverria, o seu Lamartine; La Vega, o Bayardo do exercito das Andes; Guttierez, o feliz cantor das glorias nacionaes; Alsina o grande advogado e illustre cidadão, pertencem ao numero dos emigrados, assim como apparecem Saenz, Valente, Molino, Torres, Ramos, Megia, grandes proprietarios; como apparecem, Rodrigues, o velho general dos exercitos da independencia, e unitario; Olozabal, um dos mais bravos d’esse exercito das Andes de que dissemos ter sido La Vega o Bayardo. Rosas perseguia igualmente o unitario e o federal, não se preocupando senão de se desembaraçar de todos os que podiam ser um obstaculo á sua dictadura.
É á hospitalidade concedida aos homens que elle perseguia que deve ser attribuido o odio de Rosas ao Estado oriental.
Na épocha a que nos referimos a presidencia da republica era exercida pelo general Fructuoso Rivera.
Rivera era camponez, como Rosas, como Quiroga; unicamente os seus instinctos erão humanitarios o que o fazia inimigo de Rosas. Como homem de guerra, a bravura de Rivera não podia ser excedida; como chefe de partido a sua generosidade não podia ser igualada. Durante trinta e cinco annos figurou nas scenas politicas do seu paiz. Quando a revolução contra a Espanha começou, Rivera sacrificou a sua fortuna, por que não era só generoso, era prodigo.
Do mesmo modo que Rivera era prodigo para com os homens, Deus tinha sido prodigo para com elle. Era um bello cavalheiro, em todo o sentido da palavra hespanhola caballero, que comprehende ao mesmo tempo o soldado e o gentilhomem, de estatura elevada, de olhar prescutador, conversando com graça, e attraindo todos por um gesto particular que só lhe pertencia, sendo por isso o homem mais popular dos Estados orientaes. Mas se Rivera como homem era mui apreciavel, como administrador nunca houve nenhum que desorganisasse mais os recursos pecuniarios d’uma nação. Assim como havia destruido a sua fortuna particular, destruiu a fortuna publica, não para se enriquecer, mas porque homem publico tinha conservado todos os habitos do homem particular.
Na epocha que descrevemos, essa ruina ainda não se fazia sentir: Rivera, commeçava a sua presidencia, e estava rodeado dos homens mais notaveis do paiz: Obez, Herrero, Vasques, Alvares, Ellauri, Luiz Eduardo Peres, erão verdadeiramente senão seus ministros ao menos seus directores, e com estes homens tudo o que era progresso, liberdade e prosperidade, estava promettido a este bello paiz.
Obez, o primeiro dos amigos de Rivera era um homem d’um caracter respeitavel. O seu patriotismo, o seu talento eminente, a sua instrucção profunda o collocaram no numero dos grandes homens da America, e para que nada faltasse á sua popularidade, morreu no exilio victima do systema de Rosas no Estado oriental.
Luiz Eduardo Peres, era o Aristides de Montevideo. Republicano severo, patriota exaltado, consagrou a sua longa existencia á virtude, á liberdade, e ao seu paiz.
Vasquez, homem de talento e instrucção, rendeu os primeiros serviços ao seu paiz no cerco de Montevideo, na guerra contra a Hespanha e acabou a sua carreira durante o cerco contra Rosas.
Herrera, Alvares, e Ellauri cunhados de Obez, não ficaram atraz dos que temos nomeado. Foram deffensores dedicados do Estado oriental, e de toda a causa americana, sendo por isso os seus nomes mui respeitados em todo o territorio americano.
MANUEL ORIBE
A presidencia de Rivera finalisou em 1834. O general Manuel Oribe foi quem lhe succedeu, por influencia do proprio Rivera que contava ter n’elle um amigo e continuador do seu systema. Com effeito Manuel Oribe tinha sido nomeado general por Rivera, e havia feito parte da precedente administração, como ministro da guerra.
Oribe pertencia ás primeiras familias do paiz. O seu espirito era fraco, a sua intelligencia acanhada, explicando-se por isso a sua alliança com Rosas, a quem se entregou totalmente, sem pensar que essa alliança trazia comsigo a perda d’essa mesma independencia pela qual tantas vezes havia combatido.
Como general a sua incapacidade era incompleta. As suas paixões tinham a violencia das organisações nervosas e arrastavam-n’o á crueldade. Como particular era um homem honesto.
Como administrador foi mais economico que Rivera e não se lhe pode censurar o ter augmentado o defficit do thesouro, e comtudo é a elle que cabe toda a responsabilidade da ruina do Estado oriental. Esquecendo que para ser chefe de partido, não é sufficiente só o querer sel-o, recusou o ficar alliado do grande partido nacional de que Rivera era chefe. Querendo formar um partido seu, excitou a desconfiança de todos e espantado pela sua fraqueza lançou-se nos braços de Rosas. Ainda que o tratado tivesse ficado secreto todos conheceram esta alliança pelas hostilidades secretas do governo contra a emigração argentina e como todos detestavão o systema de Rosas, o paiz seguiu Rivera, quando elle em 1836 se collocou á frente d’uma revolução contra Oribe.
Não obstante essa revolução em que tomou parte quasi todo o paiz, Oribe resistiu até 1838.
Oribe deixou a presidencia por renuncia feita officialmente perante as camaras e sahiu do paiz tendo pedido ás mesmas camaras licença para se retirar.
Rosas, vendo-o abandonar a sua posição, obrigou-o a protestar contra essa renuncia, e reconhece-o como chefe do paiz de que havia sido expulso. Foi o mesmo do que se Luiz Filippe, tivesse em Clermont reconhecido o duque de Bordeos como vice-rei da republica franceza.
Em Montevideo zombaram ao principio d’essa excentricidade do dictador, mas elle preparava-se para mudar esses risos em lagrimas.
A consequencia natural da conducta de Rosas era a guerra entre as duas nações.
Esta guerra foi horrivel.
Oribe, a quem alguns dos nossos jornaes, pagos por Rosas, chamaram o illustre e o virtuoso Oribe, foi ao mesmo tempo general e carrasco.
Mostremos aos leitores algumas d’essas paginas de sangue publicadas pela America do Sul, e nas quaes vem registados dez mil assassinatos.
Tomemos ao acaso alguns dos relatorios feitos a Rosas pelos seus agentes e officiaes.
O general D. Marianno Achaque serve no exercito contrario a Rosas, defende S. João e no dia 22 de agosto de 1841 rende se depois de quarenta e oito horas de resistencia. D. José Ramires official de Rosas transmitte então ao governo de S. João o relatorio official d’este successo. Copiaremos estas linhas:
Tudo se acha em nosso poder, mas com perdão e garantia para todos os prisioneiros. Entre elles está um filho de Lamadrid.
Agora leia-se o numero 2067 do Diario da tarde de Buenos Ayres, de 22 de outubro de 1841, e em opposição do documento official de José Ramires, que assegura a vida dos prisioneiros, veja o leitor o seguinte:
Desaguedero, 22 de setembro de 1841.
«O selvagem unitario Marianno Acha foi hontem decapitado e a sua cabeça exposta ao publico.
Assignado: Angelo Pacheco.»
É necessario não confundir este Pacheco, tenente de Rosas com seu primo Pacheco y Obes um dos seus inimigos mais encarniçados.
O leitor deve lembrar-se que no relatorio de Ramires se acha esta frase.
«Entre os prisioneiros está um filho de Lamadrid.»
Veja-se a Gazeta Mercantil, numero 5703, de 20 de abril de 1842 e ahi se encontrará esta carta escripta por Mazario Benavides a D. João Manoel Rosas:
Miraflore 7 de abril de 1842.
«Em um despacho precedente, dei-lhe parte dos motivos porque conservava o selvagem Gyriaco Lamadrid, mas sabendo que elle se tinha dirigido a muitos chefes da provincia para os resolver a tomar a sua defesa, mandei assim que cheguei a Rioja decapital-o, assim como o salvagem unitario Manoel Julião Frias, natural de Santiago.
Assignado: Mazario Benavides.»
Manoel Oribe á testa dos exercitos de Rosas encarregados de submetter as provincias Argentinas, derrotou, a 15 de abril de 1842, no territorio de Santa-Fé as forças commandadas pelo general João Paulo Lopes.
Entre os prisioneiros encontra-se o general D. João Martins.
Lêde esse fragmento d’uma carta d’Oribe:
«No quartel general de Banancas de Cosonda 17 de abril de 1842. — Trinta e tantos mortos e alguns prisioneiros, entre as quaes se achava João Martines a quem hontem mandei decepar a cabeça.
Assignado: Manoel Oribe.»
Se ainda tendes em vosso poder a Gazeta mercantil, vêde o numero 5903, de 20 de setembro de 1842, e ahi encontrareis um relatorio official de Manuel Antonio Saravia, empregado no exercito de Oribe.
Este relatorio contém uma lista de desasete individuos, de que um era chefe de batalhão e outro capitão, que foram prisioneiros em Numayan, soffrendo ahi o castigo ordinario da pena de morte.
Voltemos ao illustre e virtuoso Oribe, numero 3007 do Diario da tarde, onde vem o seguinte a proposito da batalha de Monte Grande.
«Quartel general no Ceibal 14 de setembro de 1841.
«Entre os prisioneiros foi encontrado o traidor selvagem unitario, ex-coronel Facundo Borda, que foi executado immediatamente, com outros pertendidos officiaes de cavallaria e infanteria.
Manoel Oribe.»
Oribe estava feliz; um traidor lhe entregou o governador de Tucuman e os seus officiaes. Eis como elle annuncia esta noticia a Rosas.
«Quartel general de Métau 3 de outubro de 1841.
«Os selvagens unitarios que me entregaram o commandante Sandoval e que são Marion, o pertendido governador general de Tucuman, Avellanieda, o pertendido coronel J. M. Villela, o capitão José Espejo, e o tenente Leonardo de Sousa, foram immediatamente executados na forma ordinaria, á excepção de Avellanieda a quem ordenei que cortassem a cabeça, sendo exposta ao publico na praça de Tucuman.
Manoel Oribe.»
Agora passemos a outro carrasco de Rosas.
«Casamarca 29 do mez de Rosas 1841. A S. Excellencia o senhor governador Arredondo.
«Depois de duas horas de fogo a infanteria foi passada á espada, e a cavallaria posta na mais completa desordem.
«O general conseguiu escapar-se pela serra de Ambaste com trinta homens, mas foi perseguido e apanhado e a sua cabeça será bem depressa exposta na praça publica, assim como já o estão as dos perteadidos ministros Gonçalves Dulce e Espeche.
«Viva a federação!
Assignado: M. Maza.» «Lista dos selvagens unitarios pertendidos chefes e officiaes que foram executados depois da acção de 29: «Coronel: Vicente Mercao. «Commandantes: Modesto, Villafane, João Pedro Ponce, Damasio Arias, Manoel Lopes, Pedro Rodrigues. «Chefes de batalhão; Manoel Riso, Santiago da Cruz. «Capitães: João de Deus Ponce, José Salas, Pedro Araujo, Izidoro Ponce, Pedro Barros. «Ajudantes: Damario Sarmento, Eugenio Novillo, Francisco Quinteros Daniel Rodrigues. «Tenente: Domingos Dias.
Assignado: M. Maza.»
Apresentaremos mais esta carta de Maza, para depois voltarmos a Rosas.
« Casamarca, 4 de novembro de 1841.
«Já lhe disse que pozemos em completa desordem o selvagem unitario Cubas, e que era perseguido, esperando ter em breve em meu poder a cabeça do bandido. Foi com effeito prisioneiro no Cerro das Ambastes, e a sua cabeça está exposta na praça publica da cidade.
«Depois da acção foram feitos prisioneiros dezenove officiaes que seguiam Cubas. Não dei quartel. O triumpho foi completo.
M. Maza.»
Vejamos de passagem no Boletim de Mendonça n.o 12, esta carta escripta no campo de batalha d’Arroyo Grande e dirigida ao governador Aldao pelo coronel D. Jeronymo Costa.
«Fizemos prisioneiros mais de cento e cincoenta officiaes que foram executados immediatamente.»
Todo o fogo de artificio tem o seu ramalhete, terminaremos pelo seu ramalhete este fogo de artificio de sangue.
Prometti fallar de novo em Rosas, e vou agora cumprir a minha promessa.
O coronel Zelallaran foi morto e a sua cabeça offerecida a Rosas que passou tres horas a dar-lhe pontapés. N’esse momento soube que um outro coronel, irmão d’armas do primeiro, havia sido feito prisioneiro. No primeiro momento teve tenção de o mandar fuzillar, mas depois mudou de resolução, e condemnou-o a ter doze horas por dia, durante tres dias, essa cabeça cortada em cima de uma meza que se devia achar collocada na sua frente.
Rosas mandou fuzillar na praça de S. Nicolau alguns dos prisioneiros do general Paz.
Entre elles estava o coronel Vedela antigo governador de S. Luiz; no meio do supplicio o filho do condemnado lançou-se nos braços de seu pae.
— Fuzillae ambos, disse Rosas.
E o pae e o filho expiraram nos braços um do outro.
Rosas mandou conduzir a uma das praças de Buenos Ayres oitenta prisioneiros indios, e em pleno dia e na presença de todos os mandou matar a estocadas.
Camilla O’Gorman menina de dezoito annos e oriunda d’uma das principaes familias de Buenos-Ayres, foi seduzida por um padre de vinte e quatro, e fugiram ambos de Buenos-Ayres, refugiando-se n’uma pequena villa de Corrientes onde passando por esposos, estabeleceram uma pequena escola. Corrientes cahe em poder de Rosas, e os dous fugitivos reconhecidos por um padre e denunciados por elle a Rosas, são presos e conduzidos a Buenos-Ayres, onde sem julgamento Rosas os mandou fuzillar.
— Mas, diz alguem a Rosas, Camilla está gravida!
— Baptisae o ventre, diz Rosas, que como excellente christão, quer salvar a alma do menino.
Esta cerimonia executada, Camilla O’Gorman foi fuzillada.
Tres ballas atravessaram os braços da desgraçada mãe que os havia estendido para proteger seu filho...
Depois d’isto como diremos que a França se pronunciou em favor de Rosas?
E com effeito o tratado de 1840 assignado pelo almirante Mackan, firmou então o poder de Rosas, deixando só a republica oriental engagada na lucta.
Foi então que appareceu Garibaldi na sua volta do Rio Grande.
D’um lado Rosas e Oribe, isto é, a força, a riqueza, o poder combatendo pelo despotismo.
Do outro lado, uma pequena republica, uma cidade arruinada, um thesouro exhausto, um povo sem recursos, não podendo pagar aos seus defensores, mas combattendo pela liberdade.
Garibaldi não hesitou; e encaminhou-se para os deffensores da liberdade.
Agora abandonamos a penna para lhe deixarmos contar a historia d’esse cerco, que como o de Troia, durou nove annos.
FIM DO PRIMEIROMEMORIAS
DE
José Garibaldi
Traduzidas do manuscripto original
POR
Alexandre Dumas