Mestre (Álvaro de Campos)
- Mestre, meu mestre querido,
- Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
- Vida da origem da minha inspiração!
- Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
- Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
- Alma abstracta e visual até aos ossos.
- Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
- Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
- Espírito humano da terra materna,
- Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...
- Mestre, meu mestre!
- Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
- Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
- Eu, escrevo de tudo como um pó de todos os ventos,
- Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
- Meu mestre e meu guia!
- A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
- Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
- Natural como um dia mostrando tudo,
- Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
- Meu coração não aprendeu nada.
- Meu coração não é nada,
- Meu coração está perdido.
- Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
- Que triste seria como tu se tivesse sido tu.
- Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
- Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
- Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
- Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
- Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
- Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
- Pela indiferença de toda a vila.
- Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
- Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
- Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
- E eu por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
- Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
- Se não me podias ensinar a ter alma com que a ver clara?
- Porque é que me chamaste para o alto dos montes
- Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
- Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
- Como quem está carregado de ouro num deserto,
- Ou canta com voz divina entre ruínas?
- Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
- Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
- Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
- Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
- Que poderia ao menos vir a agradar,
- E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
- Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!
- Feliz o homem marçano,
- Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
- Que tem a sua vida usual,
- Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
- Que dorme sono,
- Que come comida,
- Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
- A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
- Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
- Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.