D. Pulquéria da Assunção era uma senhora de seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço que possuía alguma coisa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o Capitão Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o Rio da Prata. Era bom homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte do marido.
Infelizmente, o cunhado não era tão remediado como parecia à viúva, e além disso não tinha meios nem tino para fazer crescer os poucos cabedais que ajuntara durante longos anos no negócio de armarinho. O estabelecimento de Rodrigo, excelente e afreguesado em outros tempos, não podia competir com os muitos estabelecimentos modernos que outros comerciantes abriram no mesmo bairro. Rodrigo vendia de vez em quando algum rapé, lenços de chita, agulhas e linhas, e outras coisas assim; sem poder oferecer ao freguês outros gêneros que aquele ramo de negócio havia adotado. Quem lá ia procurar um corte de vestido, uma camisa feita, uma bolsa, um sabonete, uns brincos de vidrilho, tinha o desgosto de voltar com as mãos vazias. Rodrigo estava atrás do seu tempo; a roda começou a desandar-lhe.
Além deste inconveniente, Rodrigo era generoso e franco, como disse acima, de maneira que, se por um lado não lhe crescia a bolsa, por outro ele próprio a desfalcava.
D. Pulquéria resolveu ir viver com o cunhado e foi uma felicidade para este, que tinha uma filha e precisava de lhe dar uma mãe. Ninguém melhor para esse papel do que a viúva do capitão, que, além de parenta da menina, era um símbolo de ordem e austeridade.
Miloca tinha dezessete anos. Até os quinze ninguém diria que viria a ser bela; mas, dessa idade em diante enfeitou muito, como dizia D. Pulquéria. Era a mais formosa cara do bairro e a mais elegante figura da Cidade Nova. Não tinha porém a viveza das moças da sua idade; era séria e empertigada demais. Quando saía olhava para diante de si sem volver a cabeça para nenhum lado nem se preocupar com os olhares de admiração que os rapazes lhe deitavam. Parecia ignorar ou desdenhar a admiração dos outros.
Esta circunstância, não menos que a beleza, tinha dado à filha de Rodrigo uma celebridade real. Os rapazes chamavam-lhe Princesa; as moças puseram-lhe a alcunha de Pescoço de pau. A inveja das outras explorou o mais que pôde o orgulho de Miloca; mas se ela desdenhava a admiração, parecia também desdenhar a inveja.
D. Pulquéria reconhecia na sobrinha essa altivez singular e procurava persuadi-la de que a modéstia é a primeira virtude de uma moça; perdoava-lhe porém o defeito, por ver que em tudo mais a sobrinha era um modelo.
Havia já cinco anos que a viúva do capitão Lúcio morava com a família do cunhado, quando este foi procurado por um rapaz desconhecido que lhe pediu meia hora de conversa particular.
— Chamo-me Adolfo P***, disse o moço quando se achou a sós com Rodrigo, e sou empregado no Tesouro. Pode informar-se do meu comportamento. Quanto ao meu caráter, espero que com o tempo conhecerá. Pretendo...
Aqui estacou o rapaz. Rodrigo, que era homem sagaz, percebeu qual era a pretensão de Adolfo. Não o auxiliou entretanto; preferiu saborear-lhe a perplexidade.
— Pretendo, repetiu Adolfo ao cabo de alguns segundos de silêncio, pretendo... ouso pedir-lhe a mão de sua filha.
Rodrigo ficou alguns instantes calado. Adolfo continuou...
— Repito; pode informar-se a meu respeito...
— Como pai, reconheço que me cumpre velar pelo futuro de minha filha, disse Rodrigo, mas a primeira condição de um casamento é a afeição recíproca. Tem autorização dela para?...
— Nunca nos falamos, disse Adolfo.
— Então... escrevem-se? perguntou Rodrigo.
— Nem isso. Duvido até que ela me conheça.
Rodrigo deu um salto na cadeira.
— Mas então, disse ele, que vem o senhor fazer à minha casa?
— Eu lhe digo, respondeu o pretendente. Amo sua filha apaixonadamente, e não há dia em que não procure vê-la; infelizmente, ela parece ignorar que eu existo no mundo. Até hoje, nem por distração, recebi um olhar dela. Longe de me desagradar esta indiferença, dou-me por feliz em achar tamanha discrição numa idade em que geralmente as moças gostam de ser admiradas e requestadas. Sei que não sou amado, mas não acho impossível vir a sê-lo. Seria porém impossível se continuasse a situação em que ambos nos achamos. Como saberia ela que eu a adoro, se nem suspeita que eu existo? Depois de refletir muito neste assunto, tive a idéia de vir pedir-lhe a mão de sua filha, e no caso de que o senhor não me achasse indigno dela, pediria para ser apresentado à sua família, caso este em que eu poderia saber se realmente...
— Paremos aqui, interrompeu Rodrigo. O senhor pede-me uma coisa singular; pelo menos não conheço semelhantes usos. Estimaria muito que o senhor fosse feliz, mas não me presto a isso... por semelhante modo.
Adolfo insistiu no pedido; mas o pai de Miloca cortou a conversa levantando-se e estendendo a mão ao pretendente.
— Não lhe quero mal, disse ele; faça-se amado e volte. Nada mais lhe concedo.
Adolfo saiu de cabeça baixa.
Nesse mesmo dia procurou Rodrigo sondar o espírito da filha, a fim de saber se ela, ao contrário do que parecia a Adolfo, tinha dado fé do rapaz. Pareceu-lhe que não.
“Tanto pior para ele”, disse Rodrigo consigo.
No domingo seguinte estava ele à janela com a cunhada, quando viu passar Adolfo, que lhe tirou o chapéu.
— Quem é aquele moço? perguntou D. Pulquéria.
Um leve sorriso foi a resposta de Rodrigo, — quanto bastou para aguçar a curiosidade de D. Pulquéria.
— Você ri-se, disse ela. Que mistério é esse?
— Mistério nenhum, disse Rodrigo.
Insistiu a velha; e o cunhado não hesitou em lhe contar a conversa e o pedido do rapaz, acrescentando que, na sua opinião Adolfo era um palerma.
— E por quê? disse D. Pulquéria.
— Porque a um rapaz como ele não faltam meios de se fazer conhecido da dama de seus pensamentos. Eu vendo muito papel bordado e muita tinta azul, e onde a palavra não chega, chega uma carta.
— Não faltava mais nada! exclamou D. Pulquéria. Mandar cartas à rapariga e transtornar-lhe a cabeça... Seu irmão nunca se atreveu a tanto comigo...
— Meu irmão era um maricas em tempo de paz, observou Rodrigo sorvendo uma pitada.
D. Pulquéria protestou energicamente contra a opinião do cunhado, e este foi obrigado a confessar que o irmão era pelo menos um homem prudente. Passada essa questão incidente, voltou D. Pulquéria ao assunto principal e condenou a resposta que Rodrigo dera a Adolfo, dizendo que era talvez um excelente marido para Miloca.
— Miloca, acrescentou a velha, é uma rapariga muito metida consigo. Pode ser que não ache casamento tão cedo, e nós não havemos de viver sempre. Quer você que ela aí fique sem proteção no mundo?
— Não, decerto, retorquiu Rodrigo, mas que devia eu fazer?
— O que devia fazer era informar-se do rapaz, e se lhe parecesse digno dela, apresentá-lo cá. Eu aqui estou para velar por ela.
D. Pulquéria desenvolveu este tema com a autoridade de uma senhora convencida. Rodrigo não deixou de lhe achar alguma razão.
— Pois bem, disse ele, eu indagarei do procedimento do rapaz, e se vir que merece, cá o trago... Mas isso é impossível, agora reparo; não acho bonito, nem decente que eu vá agora buscá-lo; parecerá que lhe meto a rapariga à cara.
— Tem razão, concordou a cunhada. E a culpa da dificuldade é toda sua. Em suma, é bom indagar; depois veremos o que se há de fazer.
As informações foram excelentes. Adolfo gozava de excelente reputação; era econômico, morigerado, laborioso, a pérola da repartição, o beijinho dos superiores. Nem com uma lanterna se encontraria marido daquela qualidade, tão à mão.
— Bem me dizia o coração, ponderou D. Pulquéria, que este rapaz era cá enviado pela Providência Divina. E você estragou tudo. Mas Deus é grande; esperemos que ele nos favoreça.