Nesses anos de mocidade a que me estou referindo, a política era, de certo, para mim uma forte excitação; em qualquer cena do mundo o lance político interessava-me, prendia-me, agitava-me; por isso mesmo, eu não era, nunca fui, o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história, e ainda hoje vivo, é certo que muito menos. Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa.

Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo. Uma afeição maior, um interesse mais próximo, uma ligação mais íntima, faz com que a cena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importância especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intelectual; é um prazer ou uma dor, por assim dizer doméstica, que interessa o coração; não é um grande espetáculo, que prende e domina a inteligência. A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros fatos de que fui contemporâneo; a expulsão do imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de tronos ou catástrofes nacionais que acompanhei de longe; por último, não experimentei nenhuma sensação tão cheia, tão prolongada, tão viva, durante meses ininterrompidos, como a última revolta, quando se ouvia o canhão da guerra civil no mar e o silêncio ainda pior do terror em terra. Em tudo isto, porém, há muito pouca política; nesses três quadros, por exemplo, a política suspende-se; o que há é o drama humano universal de que falei, transportado para nossa terra. Não se poderia dizer isto da luta dos partidos, nem do que, exclusivamente, é considerado política pelos profissionais. Esta é uma absorção como a de qualquer hábito, circunscreve a curiosidade a um campo visual restrito: é uma espécie de oclusão das pálpebras. Esse gozo especial do político na luta dos partidos não o conheci; procurei na política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas; tive nela emoções de tribuna, por vezes de popularidade, mas não passei daí: do limiar; nunca o oficialismo me tentou, nunca a sua deleitação me foi revelada; nunca renunciei a imaginação, a curiosidade, o diletantismo, para prestar sequer os primeiros votos de obediência; só vi de muito longe o véu jacinto e púrpura do Sanctum Sanctorum – (tão de longe, que me pareceu um velho reposteiro verde e amarelo) –, por trás do qual o presidente do Conselho contemplava sozinho face a face a majestade do Poder Moderador.

Isto quer dizer que a minha ambição foi toda em política de ordem puramente intelectual, como a do orador, do poeta, do escritor, do reformador. Não há, sem dúvida, ambição mais alta do que a do estadista, e eu não pensaria em reduzir os homens eminentes que merecem aquele nome em nossa política ao papel de políticos de profissão; mas para ser um homem de governo é indispensável fixar, limitar, encerrar a imaginação nas coisas do país e ser capaz de partilhar, se não das paixões, de certo dos preconceitos dos partidos, ter com eles a mais perfeita comunhão de vida, individuae vitae consuedudinem. Assim, quando eu tivesse, que não tive, as qualidades precisas, estava impedido para a política pela incompressibilidade do meu interesse humano. Politicamente, receio ter nascido cosmopolita. Não me seria possível reduzir as minhas faculdades ao serviço de uma religião local, renunciar a qualidade que elas têm de voltar-se espontaneamente para fora.

Assim, por exemplo, desses anos de minha vida, a que me refiro: em 1870, o meu maior interesse não está na política do Brasil, está em Sedan. No começo de 1871, não está na formação do Gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris. Em 1871, durante meses, está na luta pela emancipação –, mas não será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus? Em 1872, o que me ocupa o espírito é o centenário d’Os Lusíadas; estou então imprimindo um livro sobre Camões, e a quem trabalha em um livro, apesar do seu nenhum valor literário, como o mostrou Teófilo Braga, não sobra muita atenção ou interesse para dar ao que acontece em redor de si. 1873 é o meu ano, como disse, de fixação monárquica, mas também – o que mostra que a razão amadurece por partes – o ano em que me atiro contra a Igreja com o furor iconoclasta da mocidade, supondo estar dizendo coisas novas, nunca ouvidas por ela em 19 séculos de luta, pensando que ela vai gemer sob os golpes das terríveis hipérboles que lhe arrojo em panfletos e artigos da Reforma: teocracia, invasão ultramontana, conquista jesuíta!... Apesar disso, o ano de 1873 é no meu registro o ano da primeira viagem à Europa, fato de metamorfose pessoal, que é em minha vida a passagem da crisálida para a borboleta.

Não posso mais – se feliz, se infelizmente, é uma questão que me levaria muito longe deslindar –, não posso mais sentir o que sentia aos 24 anos, quando pela primeira vez me fiz de vapor, hoje eu preferiria fazer-me de vela, para a Europa. Como já vi Leão XIII carregado na sedia gestatoria e tive a fortuna de falar longamente a sós com um papa, creio que não faria mais uma viagem para conhecer nenhum grande personagem, exceto, talvez, o imperador da China. Já que não vi um rei mouro em Granada, passo bem sem ter visto Abdul-Hamid no Bósforo. Mesmo o imperador da China talvez eu me contentasse em conhecê-lo pela imagem que me dariam dele, se eu o avistasse, dois rising men da alta diplomacia européia, de quem sou amigo, que tiveram ocasião de penetrar no recinto inviolável e de estudar a infantil figura do Incognoscível sob as aflições da guerra japonesa. O que me interessa nele, bem se pode imaginar, não é o seu trono de almofadas de seda, o seu porta-voz, os seus cachimbos, os seus perfumadores, os seus colares; é a originalidade que o envolve, maravilhosa como o próprio sobrenatural, é a psicologia acumulada de séculos.

Em 1873, porém, a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo. Do mesmo modo, com os lugares. O que eu queria, era ver todas as vistas do globo, tudo o que tem arrancado um grito de admiração a um viajante inteligente. Nessa qualidade de câmara fotográfica só lastimava não ter o dom da ubiqüidade. Esta febre itinerante passou-me também. Posso ler, sem perigo, qualquer geografia nova, o Elisée Reclus inteiro; é só uma boa página de Pausânias ou de Estrabão, com os seus nomes antigos, que me perturba ainda. Os mais preciosos livros da minha estante íntima são os meus Baedekers; diversos lugares aí estão marcados com um sinal, e se eu pudesse, tomaria ainda, para visitá-los, o bilhete (hoje não se diz mais o bastão) do peregrino; mas são os lugares somente a que está associada – há anos eu teria dito uma impressão de minha vida – uma das grandes impressões da humanidade, uma das suas revelações na arte, ou na religião.

O que em matéria de viagem, de paisagens me tentaria hoje – quem sabe se não é uma pura restituição de um atavismo longínquo? o meu avô materno, que se transplantou em 1530 para Pernambuco e fundou o morgado do Cabo, João Pais Barreto, era de Viana – seria, talvez, o Lima, se eu tivesse certeza de ter diante dele a mesma impressão dos soldados romanos que chamaram às suas margens Campos Elísios e lhe deram o belo nome de Letes. A verdade é que sinto cada dia mais forte o arrocho do berço: cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre.

Nesse tempo, porém, na minha era antes de Cristo, em pleno politeísmo da mocidade, o mundo inteiro me atraía por igual; cada nova fascinação da arte, da natureza, da literatura e, também, da política, era a mais forte; eu quisera conhecer as celebridades de todos os partidos. Depois do papa, a mais nobre figura da Europa era para mim o conde de Chambord, que acabava de rejeitar a coroa de França para não repudiar a bandeira branca; um Henrique V, bem pouco parecido com Henrique IV, e, no entanto, eu contava como uma boa fortuna à noite que passei no salão de monsieur Thiers [1].

A viagem à Europa em tais condições não podia deixar de ser para mim, como foi, o eterno impulso dado ao pêndulo imaginativo. Pelo sentimento, pela atitude, pelo emprego da vida, acredito ter sido, em meu plano inferior, uma das mais consistentes figuras de nossa política; acredito mesmo que passarei nela como um homem de uma só idéia persona unius dramatis, porquanto a minha fidelidade monárquica pode ser considerada, como a de André Rebouças, ainda um último compromisso, uma gratidão, um episódio da libertação dos escravos. Quanto às afinidades espontâneas, porém, às simpatias naturais, ao movimento interior do espírito, dificilmente se encontrará um pêndulo que descreva um raio de oscilação mais largo do que a minha imaginação e a minha curiosidade. O que é um homem político assim diletante, viajante, a quem tudo atrai igualmente, que admira as grandes construções sociais, qualquer que seja o sistema da arquitetura, convencido de que em todos há o mesmo espírito, porque o espírito criador é um só?

Nós, brasileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos, pertencemos à América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser européia, isto é, de ser humana; ela não pára na Primeira Missa no Brasil, para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade, como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica.

Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem européia. A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Ápia, uma volta da estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do Cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem.

Eu sei bem, para não sair do Rio de Janeiro, que não há nada mais encantador à vista do que, ao acaso, a escolha seria impossível, os parques de S. Clemente, o caminho que margeia o aqueduto de Paineiras na direção da Tijuca, a ponta de S. João, com o Pão de Açúcar, vista do Flamengo ao cair do sol. Mas tudo isto é ainda, por assim dizer, um trecho do planeta de que a humanidade não tomou posse; é como um Paraíso Terrestre antes das primeiras lágrimas do homem, uma espécie de jardim infantil. Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se renove um dia pelos seus galhos americanos; mas, no século em que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão, em que aquele espírito se sente tão longe das suas reminiscências, das suas associações de idéias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sobre o céu da Ática...

Em um soberbo livro espanhol, que faz honra à Sociedade de Jesus, Pequeñeces, romance de um padre jesuíta, que é um grande autor, L. Coloma, há um personagem que diz a cada instante – Usted me entiende. Todos nós temos algum conhecido que pontua as suas frases com esse fatigante entende? que os nervos de marquês de Paraná não podiam suportar. O entende? do indivíduo que quer forçar o ouvinte a nada perder do que ele diz, é muito diverso da fórmula habitual com que o imbecil marquês de Villamelon exprimia o que lhe faltava força para pensar. Há também pontos, idéias, modo de sentir que o escritor desejaria expressar por um lado Usted me entiende, levantando apenas a ele vagamente, sem nada precisar, de fato, sem nada dizer. Cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento, e, enquanto não se conhece a natureza desse raio, não se tem idéia do que o homem realmente é. Nesta confissão da minha formação política, devo, para não deixar ver somente a máscara, o personagem, dar uma espécie de fotografia dos símbolos que se imprimiram e reproduziram mais profundamente no meu cérebro. Assim se reconhecerá que a política não foi senão uma refração daquele filete luminoso que todos temos no espírito.

A instabilidade a que me estou referindo, está grandemente modificada; a dualidade desapareceu em parte, não tão perfeitamente como em meu amigo Taunay... Este, apesar de seu sangue de cruzado, apesar de ter escrito o seu livro clássico em francês, e apesar da sua brilhante propaganda contra o nativismo, é o mais genuíno nativista que eu conheço, porque não compreende sequer a vida em outra terra, em outra natureza. Brasileiro de uma só peça é aquele que não pode viver senão no Brasil. Na mocidade fui um errático, como o próprio imperador acabou na velhice... Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita forma em que estavam a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d’almas, Usted me entiendem, deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a religião e as letras.

Notas do autor

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  1. A respeito dessa visita, eis a nota que encontro no meu jornal de 1874: “10 de janeiro. Á noite fui com o Itajubá (o nosso árbitro em Genebra) à casa de monsieur Thiers, hotel Bragation, faubourg Saint-Honoré. Apresentado a monsieur Thiers, a madame Thiers, a mlle Dosne. Apresentado a Jules Simon. Itinerário que este me deu: ver Pierrefonds. Coucy, Reims, Tarascon, Arles e a Grande Chartreuse. Conversei com monsieur Thiers sobre o Brasil. Opinião dele sobre a desigualdade da raça negra, de que provém o direito não de escravizá-la, mas de forçá-la ao trabalho, como a Holanda faz com os javaneses.”