Desde a Academia a literatura e a política alternaram uma com a outra, ocupando a minha curiosidade e governando as minhas ambições. Nos primeiros anos a política teve o predomínio; com a viagem à Europa em 1873 passou este para a literatura, e esse meu período literário, começado então, dura até 1879, quando entro para a Câmara.
Eu tinha sempre lido muito e de tudo na época em que me sentia mais político do que homem de letras. Em filosofia tinha assimilado um pouco de Spinosa, Plotino, Kant e Hegel; a nota mais sonora e mais sustentada de cada um deles vibra a mesma em meu espírito ainda hoje que sinto a grandeza da filosofia e coloco Santo Tomás de Aquino entre Aristóteles e Platão. Em religião, eu estava sob a influência de Strauss, Renan, Havet, e formava, também eu, com os fragmentos de todos eles a minha lenda pessoal de Jesus. Pelo espírito, posso dizer que habitei longos anos, da Praia do Flamengo, as bordas solitárias e silenciosas do lago de Genezareth. Em crítica literária, achava-me todo imbuído de Sainte-Beuve, Taine, Scherer, ainda que deste último, de quem falarei, não tanto como depois que o conheci. Em poesia, tinha passado de Lamartine para Victor Hugo, o de Hernani quase exclusivamente, e de V. Hugo para Musset, como devia depois de passar de Musset para Shelley, de Shelley para Goethe, escala em que parei, mas onde não espero morrer, porque tenho diante de mim o Dante..., o que não quer dizer que não tenha nos ouvidos a ressonância das grandes rimas novas de um Banville, e não admire um cinzelado dos fortes relevos de José-Maria Heredia. Em prosa, Chateaubriand e Renan dividiam o império com Cícero, cujas cartas são talvez o livro mundano que eu levaria comigo, se tivesse que ficar encerrado em uma ilha deserta. A frase, a eloqüência, o retrato e a encenação histórica de Macaulay foi também uma influência permanente que se imprimiu em meu espírito; hoje eu teria que acrescentar Mommsen, Curtius, Ranke, Taine, Burkhardt. Quanto ao romance, que é a imaginação abrangendo e modelando a vida, eu ficaria sob a impressão de Jules Sandeau; vivia à sombra dos seus castelos antigos reconstruídos pela moderna burguesia entre as duas sociedades, a velha e a nova, que ele queria fundir pelo amor, é mais que a poesia d’alma de Sandeau, que foi muito grande a que ainda um dia a França há de voltar, era para mim indefinível a impressão, aristocrática e feminina a um tempo, dos últimos encantadores estudos de Cousin sobre a sociedade do século XVII.
Tudo isto formava o fundo do meu espírito, o húmus da minha inteligência, quando começou a fase literária, aquela em que senti uma impulsão interior irresistível para entrar na literatura. O período anterior de receptividade, de plantio, de assimilações; a impressão, o prazer maior era o de ler; agora, vinha a necessidade de produzir, de criar, e dava-se um fato singular, resultado desses anos de leituras francesas: eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês e desaprendera o alemão da Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira mágoa do meu velho mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês.
Um brilhante freqüentador da Revista Brasileira, que possui entre outras qualidades talvez a mais preciosa de todas, uma boa quantidade do fluido simpático, admira-se dessa minha afinidade francesa; com efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede. O que me admira é que o mesmo não aconteça a todos os que têm lido tanto em francês como eu, mais do que eu, e cuja vida intelectual tem sido assim em sua parte principal, isto é, em toda a sua função aquisitiva, francesa. E talvez que eles têm uma força de assimilação maior do que a minha – ou que eu tenho mais desenvolvida do que eles a faculdade imitativa? Não sei; mas essa suscetibilidade à influência francesa parece natural em espíritos que recebem quase tudo em francês e que têm horror à tradução; o purismo português, esse, sim, é que, até tornar-se uma segunda natureza literária, exige uma constante vigilância, a retificação exata de todo o trabalho de aquisição intelectual.
A verdade, para dizer tudo, é esta: admirando a força, o acabado, às vezes a grandeza desse estilo vernáculo em que há uma peneira de furos imperceptíveis para impedir qualquer imperfeição estranha, e em que a nossa língua modernizando-se parece conservar a tonalidade antiga, a minha fonografia cerebral adaptou-se contudo às leituras estrangeiras. Falta-me para reproduzir a sonoridade da grande prosa portuguesa o mesmo eco interior que repete e prolonga dentro de mim, em gradações curiosamente mais íntimas e profundas, à medida que se vão amortecendo, o sussurro indefinível, por exemplo, de uma página de Renan. Tem aí o dr. Graça Aranha a confissão da minha deficiência em relação à nossa língua, cuja fibra forte, resistente, primitivamente áspera, lastimo não possuir. Limito-me, talvez por isso mesmo, a escrever, como ele vê, com aqueles dos seus fios e dos seus matizes que se ajustam ao meu tear francês.
O momento em que me apareceu essa febre do verso francês – era em verso, ainda por cima, que eu me sentia forçado a compor –, foi caprichosamente mal escolhido, porquanto coincidiu com a minha primeira viagem à Europa. Não há dúvida também que foi um resultado dela. Da impressão d’arte, da impressão histórica, da impressão literária do Velho Mundo, jorrava em mim a fonte desconhecida das Musas, que em outros têm jorrado do amor e da mocidade. Eu trazia versos de tudo o que vira, como outros viajantes trazem pedras ou folhas de hera do Coliseu, do Fórum, de Posilipo, de Sorrento, de Pompéia, do lago de Genebra, de Versalhes. Esses versos, reuni-os em um volume – Amour et Dieu. Deus no título era tudo o que restava de um longo poema da Eternidade que eu tinha pensado em Ouchy, uma espécie de réplica teísta ao De Rerum Natura. Quando comecei a escrever esses versos, eu ignorava regras fundamentais da prosódia francesa, como a da alternação das rimas; em pouco tempo tinha-me familiarizado com os segredos dos hiatos e hemistíquios. Os meus versos de Amour et Dieu pareceram-me – a ilusão do autor é um dos mais finos estratagemas da Criação – não direi iguais, mas semelhantes aos melhores da decadência em que a França já tinha entrado. Esses versos valiam muito pouco. Não que fossem todos eles maus, mas, porque o que teria realmente valor neles, se fosse um novo caminho aberto por mim à imaginação, era de fato uma estrada já muito percorrida por ela, uma espécie de via sacra das procissões antigas, na qual muito maiores espíritos tinham levantado por toda a parte colunas votivas. Isso por um lado, e por outro, porque o que neles podia soar agradavelmente era declamação poética, e não poesia; pertenceria à retórica, ou à eloqüência, e não à arte, que em tudo é criação.
Desde que toquei na ilusão do autor, vou abrir um parêntesis para uma reminiscência, que talvez previna os jovens poetas contra uma das ciladas mais freqüentes no caminho da mocidade, e até da velhice, a do elogio que de qualquer modo forçamos ou mesmo somente desejamos.
Em 1872, quando Alexandre Dumas Filho escreveu a brochura L’Homme-Femme terminando pelo famoso Tue-la!, publiquei no Rio de Janeiro uma carta em francês a Ernesto Renan com o título Le Droit au Meurtre. Um amigo entregou de minha parte um exemplar dessa brochura ao grande escritor, a quem só me faltou tratar de divin maître. Hoje descubro, mesmo literariamente falando, os lados fracos da maneira renaniana; naquele tempo eu era o mais inteiramente sugestionado dos nossos renanistas. O meu emissário foi Artur de Carvalho Moreira, de quem já falei, e a carta que ele me escreveu dando conta da sua missão, podia ter a assinatura de Chamfort. L’Homme-Femme, segundo Renan, não era senão un méchant paradoxe que não valia a pena refutar; une plaisanterie, que não se devia tomar ao sério. Quando no ano seguinte fui a Paris, uma das minhas primeiras visitas foi a Renan. Ele lembrava-se do meu nome e não se demorou em responder ao pedido que lhe fiz de alguns momentos para apresentar-lhes as minhas homenagens. Ainda conservo esses curtos pequenos autógrafos: “C’est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. Votre très affectueux et dévoué – E. Renan. Rue Vanneau, 29.” Três dias depois, eu subia os quatro andares do nº 29 da rua Vanneau e penetrava no mesmíssimo modesto “apartamento” que Carvalho Moreira me havia fotografado em sua carta. Dentro de minutos me aparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de espírito e muito homem ilustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento; imagine-se um espetáculo incomparável de que eu fosse espectador único, eis aí a impressão. Eu me sentia na pequena biblioteca, diante dos deslumbramentos daquele espírito sem rival, prodigalizando-se diante de mim, literalmente como Luís II da Baviera na escuridão do camarote real, no teatro vazio, vendo representar os Niebelungen em uma cena iluminada para ele só.
Dessa entrevista não saí só fascinado, saí reconhecido. Renan deu-me cartas para os homens de letras que eu desejava conhecer: para Taine, Scherer, Littré, Laboulaye, Charles Edmond, que devia apresentar-me a George Sand, Barthélemy Saint-Hilaire, por intermédio de quem eu conheceria monsieur Thiers. As nossas relações tornaram-se desde o primeiro dia afetuosas, e, naturalmente, quando imprimi o meu Amour et Dieu, mandei-lhe um dos primeiros exemplares. Aqui está a carta que ele me escreveu:
“Sèvres, 15 août 1874. Cher Monsieur, J’ai tardé plus que je n’aurais dû à vous dire tout ce que je pense de vos excellents vers. Je voulais les relire et, puis, j’espérais quelque vendredi vous voir à Paris. Oui, vous êtes vraiment poète. Vous avez l’harmonie, le sentiment profond, la facilité pleine de grâce. Si vous voulez venir après demain, lundi, vers trois ou quatre heures, rue Vanneau, vous serez de me trouver; nous causerons. Je suis prêt à faire tout ce que vous voudrez pour la Revue et les Débats. Malheureusement ces recueils sont depuis longtemps brouillés avec la poésie. Ce sont des vers comme les vôtres qui pourraient les réconcilier. Croyez à mes sentiments les plus affectueux et les plus dévoués. – E. Renan.”
Não é verdade que, para um joven brasileiro que escrevia pela primeira vez o francez, uma carta assim devia ser uma sensação de fazer epocha na vida? Leiam agora esta traidora pagina dos Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse, que seguramente não fui o unico a inspirar. Vou commetter o crime de traduzir Renan:
“Desde 1851 acredito não ter praticado uma só mentira, excepto, naturalmente, as mentiras alegres de pura eutrapelia, as mentiras officiosas e de polidez, que todos os casuistas permittem, e tambem os pequenos subterfugios litterarios exigidos, em vista de uma verdade superior, pelas necessidades de uma phrase bem equilibrada ou para evitar um mal maior, como o de apunhalar um auctor. Um poeta, por exemplo, nos apresenta os seus versos. É preciso dizer que são admiraveis, porque sem isso seria dizer que elles não têm valor e fazer uma injuria mortal a um homem que teve a intenção de nos fazer uma civilidade.”
A meu respeito, si uma vaga lembrança dos meus versos lhe occorreu tanto tempo depois ao escrever essa graciosa ironia, o grande escritor enganou-se em um ponto: ele não me teria apunhalado dizendo que os meus versos não valiam nada, em vez de dizer-me que eram admiráveis. George Sand escreveu-me também a respeito do meu livro: “Il est d’une rare distinction et les nobles pensées y parlent une noble langue”, e curiosamente, Madame Caro igualmente se referia a “l’oeuvre qui exprime dans une noble style la plus noble sympathie pour notre malheureuse patrie.” Todos esses cumprimentos, toda essa nobreza, eu a recolhia e guardava preciosamente como provas de generosa amabilidade e cortesia do caráter francês. Quanto ao valor dos meus versos, porém, a impressão que me ficou e apagou todas as outras, foi o silêncio frio, impenetrável, entretanto polido, atencioso, simpático, de Edmond Scherer. Contei esse episódio para acautelar o talento que se estréia contra a perigosa sedução da eutrapelia literária. Conheço entre nós um mestre dessa arte do espírito, Machado de Assis, mas este, espero, não fará confissões. “Quem se não pode conformar à perda da própria honra, diz S. Filipe Néri, nunca avançará na vida espiritual.” O escritor juvenil que não se resignar ao sacrifício da rua “honra” literária, não fará progressos emliteratura.