Até 1878 foi propriamente o período da minha formação política; o que se segue, de 1879 a 1889, é o do papel que me tocou representar; o final – já agora devo esperar todo ele assim – será o do amortecimento do interesse político e de sua substituição por outros, talvez ainda mais irreais e quiméricos, porém, que de algum modo quadram melhor com o crepúsculo da vida, quando o espírito começa a ouvir ao longe o toque de recolher. Durante aqueles dez anos a que me tenho referido, não fui senão um curioso, atraído pelas viagens, pelo caráter dos diferentes países, pelos livros novos, pelo teatro, pela sociedade. Uma vida invejável para mim teria sido então o assistir dos bastidores aos grandes fatos contemporâneos, conviver com os personagens, e, como distração do presente, ter direito de entrada nas escavações de Atenas ou de Roma. No fim desta fase de lazaronismo intelectual, quando sou pela primeira vez eleito para o Parlamento, eu tinha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso, não mais o diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; aproveitar a minha vida em qualquer obra de misericórdia nacional; ajudar o meu país, prestar os ombros à minha época, para algum nobre empreendimento. Nenhuma causa política, dados os elementos que descrevi, poderia causar-me esse entusiasmo, inspirar-me esses arroubos; a política seria sempre a emoção partidária, incerta, negativa, o temor de edificar desconfiado da solidez dos materiais e dos terrenos. Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caráter de finalidade, a certeza, a inerrância do absoluto, do divino, como tem as grandes redenções, as revoluções de caridade ou da justiça, as auroras da verdade e da consciência sobre o mundo. No Brasil havia ainda, no ano em que comecei minha vida pública, um interesse daquela ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de criaturas isoladas, quer do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação, e por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo, – o bolbo que devia dar a única flor da minha carreira...
O fato que me lançou na política foi a morte de meu pai, em março de 1878, ano em que serei eleito pela primeira vez deputado... Ele morreu em tempo ainda de assegurar a minha eleição que tinha ficado resolvida entre ele e o barão de Vila-Bela, chefe político de Pernambuco. Souza Carvalho, que muito impugnou, depois de morto meu pai, a minha candidatura, foi a Vila-Bela e referindo-se àquela morte, disse-lhe: – “sublata causa, tollitur effectus”. Domingos de Souza Leão, porém, tinha a religião da amizade e da lealdade, e a morte de Nabuco, em vez de delir o seu compromisso, tornara-o de honra... Meu desejo íntimo era então continuar na diplomacia... Minha mãe, porém, conservava a ambição de meu pai, de me ver entrar na política, para um dia substituí-lo, sentar-me na sua cadeira de senador, como ele se sentara na de meu avô, que já não fora o primeiro senador Nabuco, porque encontrara no Senado seu tio José Joaquim Nabuco de Araújo, o primeiro barão de Itapoã. Eu representaria assim no Parlamento a Quarta geração da mesma família, o que não aconteceu, suponho, a nenhum outro. Como Martim Francisco Júnior, neto e bisneto de parlamentares, as gerações políticas foram três, por serem irmãos o avô e o bisavô, Martim Francisco e José Bonifácio.
Não me custou nada essa eleição... Custou sim a Vila-Bela na corte e na província a Adolfo de Barros, que passou pela política como um perfeito gentleman, seu presidente, incluírem-me na lista... Meu nome afastava o de outros que eram antigos lutadores, como o dr. Aprígio Guimarães, popular na academia pelo seu liberalismo republicano e sua eloqüência tribunícia. Eu não tinha que ter remorso disso, fata viam invenient... Não era só meu nome que postergava o direito de antigüidade; a chapa estava cheia de nomes novos; eu representava uma tradição de serviços ao partido, os de meu pai, que valiam bem os de qualquer outro, e tinha confiança de que justificaria na Câmara a minha promoção rápida. Se não me deu trabalho algum essa eleição, que foi feita pelo partido, dispondo de todos os elementos oficiais, não deixou de ter para mim o seu episódio... Numa sessão acadêmica de 2 de agosto, no teatro Santa Isabel, quando eu proferia, do camarote do presidente, as primeiras palavras, fui acolhido pelos protestos e vozerias de um grupo numeroso, que se tornou dominante, e que depois transferia para uma praça da cidade o seu meeting de indignação contra mim... O tema do meu improviso, em resposta aos epigramas e diatribes contra S. Cristóvão que tinham soado no palco, fora este: a grande questão para a democracia brasileira, não é a monarquia, é a escravidão. Posso dizer que experimentei por vezes a doçura da popularidade; nada, porém, iguala o prazer de uma dessas tempestades levantadas contra si pelo orador que se sente de posse da verdade e ao serviço da justiça, quando antevê que esses que o injuriam naquele momento, estarão com ele no dia seguinte... Eu deixava passar aquela onda raivosa e espumante, que a democracia pernambucana, as reminiscências praieiras, e com imperfeito conhecimento do indivíduo, do papel que ele ia representar, impeliam contra a minha candidatura... Eu sabia que a palinódia havia de ser completa, que se desfaria o mal-entendu criado entre mim e o povo do Recife, desde que ele visse o fim para o qual eu aspirava ao seu mandato... Na verdade, a opinião do Partido Popular, ciumento dos seus foros e tradições, mudou a meu respeito logo na primeira sessão em que tomei a palavra na Câmara... Desde esse dia estabeleceu-se entre mim e o Recife uma afinidade que nunca se interrompeu e que ainda hoje, em que estou quanto à política retirado de tudo, estou certo, será a mesma, porque foi como que o encontro de duas opiniões que se miraram uma na outra até às fontes do sentimento e reconheceram na transparência do seu fundo a sinceridade de cada uma.
Foi um ano de atividade e de expansão único em minha vida, esse de 1879, em que fiz a minha estréia parlamentar. Posso dizer que ocupei a tribuna todos os dias, tomando parte em todos os debates, em todas as questões... O favor com que era acolhido, os aplausos da Câmara e das galerias, a atenção que me prestavam, eram para embriagar facilmente um estreante... Como hoje seria diverso, e quanto tudo aquilo está desvalorizado para mim como prazer do espírito! Hoje é a gota cristalina que mana da rocha do ideal – fonte oculta que todos temos em nós – e não os grandes chafarizes e aquedutos da praça pública, que única me desaltera. Então tudo me servia para assunto do discurso; eu falava sobre Marinha e Imigração, como sobre a iluminação ou o Imposto de Renda, sobre o arrendamento do vale do Xingu ou a eleição direta... Tinha o calor, o movimento, o impulso do orador; não conhecia o valerá a pena? do observador que se restringe cada vez mais... O público, os grandes auditórios eram para mim o que é hoje a minha cesta de papel, ou a labareda que dá conta da exuberância supérfula do pensamento. Só muito tarde compreendi por que os que vieram antes de mim se retraíam, quando eu me expandia: em muitos era a saciedade, o enojo que começava; em alguns a troca da aspiração por outra ordem de interesses mais utilitária; em outros, porém, era a consciência que chegava à madureza, o amor da perfeição... Desses discursos sem exceção que figuram em meu nome nos Anais de 1879 e 1880 eu não quisera salvar nada senão a nota íntima, pessoal. a parte de mim mesmo que se encontre em algum. Não assim com os que proferi na Câmara na semana de maio de 1888, nem como os do Recife em 1884-1885, pronunciados no Teatro Santa Isabel. Esses são o melhor da minha vida.
Quando disse que o período que vai até 1879 é o de minha formação política, quis somente dizer que é o período em que adquiro a ferramenta com que hei de trabalhar em política: ainda assim a limitação do tempo não é precisamente exata, porque é na própria política, na Câmara, sob o influxo e determinismo do papel que escolho, que a verdadeira formação se opera, isto é, que as contradições se conciliam, a subordinação dos impulsos e das tendências se dão, as afinidades essenciais se pronunciam, os atritos interiores, as vacilações, as atrações ou repulsões prejudiciais se eliminam, e o destino uma vez conhecido cria a vocação, a tarefa mesma perfaz o instrumento.
Com efeito, quando entro para a Câmara, estou tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone; esse é em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês – com afinidades radicais, mas com aderências whigs – no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês, gladstoniano, macaulayano, perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu temperamento ou sensibilidade política; no entanto, depois do primeiro ensaio, a feição política tornar-se-á secundária, subalterna, será substituída pela identificação humana com os escravos e esta é que ficará sendo a característica pessoal, tudo se fundirá nela e por ela. Nesse sentido é a emancipação a verdadeira ação formadora para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os extremos da curiosidade ou da simpatia intelectual, os contrastes, os antagonismos, as variações de faculdades sensíveis à verdade, à beleza, que os sistemas mais opostos refletem uns contra os outros, e constrói o molde em que a aspiração política é vazada, e não ela somente, a inteligência, a imaginação, os próprios sonhos e quimeras do homem.
Como eu disse, porém, há pouco, eu trazia da infância o interesse pelo escravo... Esse episódio não será talvez descabido nestas recordações.