Eu não podia, entretanto, ter vivido quase dois anos nos Estados Unidos sem em algum ponto ser modificado pela influência norte-americana. Uma coisa é a Europa, outra a América do Norte. Entre os americanos, o metal do caráter, o fundo de experiência humana, o tato da vida é, falando do país como uma só pessoa moral, anglo-saxônia. Os Estados Unidos, como a Austrália e o Canadá, não podem esconder a sua procedência. O fundo anglo-saxônio revela-se, aumentando ou diminuído, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espírito de empresa e de independência da raça, também na brutalidade e crueldade do instinto popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos linchamentos, na sede insaciável de dinheiro, e também, outras traços, na necessidade de limpeza física e moral, no espírito de conservação, na emulação e amor-próprio nacionais, na religião, no respeito à mulher, na capacidade para o governo livre.
Que homem diferente, porém, é o americano do inglês! Os moldes são tão diversos que, para explicar a diferença, é preciso admitir uma influência modificadora mais forte do que a de instituições sociais, uma influência de região, – cada grande região do globo produzindo como o tempo uma raça sua, diferente das outras. As instituições modificam o caráter de um povo, mas não se provou ainda que lhe modificassem o tipo e o temperamento físico. Qual seria a diferença entre o grego do tempo de Milcíades e do tempo de Alexandre ou de Trajano? Qual a diferença do napolitano do tempo de Afonso o Grande para o rei Umberto, ou do português manuelino para o de hoje?
A comparação do maquinismo político-social entre a América do Norte e a Inglaterra é, em quase tudo, favorável a esta. As instituições inglesas, tanto as políticas quanto as judiciárias, tanto as públicas quanto as privadas, têm mais dignidade, mais seriedade, mais respeitabilidade. Na Câmara dos Comuns não se imagina o processo do lobbying, não há na administração inglesa o spoils system, ninguém pensaria em squaring um tribunal inglês, não há na Inglaterra um trecho de território em que os cidadãos só tenham confiança na justiça que fazem por suas mãos, como nos lynchings americanos. A todos os que têm que tratar com a administração, que estão na dependência da justiça, a organização americana oferece muito menos garantias de eqüidade e menor proteção do que a inglesa.
Isto, por um lado; por outro, quem entra na vida pública tem que procurar nos Estados Unidos as boas graças de indivíduos muito diferentes dos que na Inglaterra abrem aos principiantes as portas da política; além disso, tem que aprender por um catecismo muito mais relaxado. A intervenção do grande pensador, do grande escritor, do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais do que nos Estados Unidos, onde as massas obedecem a influências que não têm nada de intelectual e não tem apreço por nenhuma espécie de elaboração mental. Tudo o que é superior tem, com efeito, o cunho da individualidade, envolve, portanto, desdém pela sabedoria das massas. O gênio político, qualquer que seja, está para elas eivado de rebeldia. Singularmente, o cidadão vale menos nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Para ser uma unidade na política americana, é preciso que o indivíduo se matricule em um partido, e, desde esse dia, renuncie à sua personalidade. Na Inglaterra não há semelhante escravidão do partido. O país é governado, como os estados Unidos, por dois partidos que se alternam e se equilibram, mas os partidos ingleses são partidos de opinião, não são machines, como os americanos, das quais certo número de bosses governam e dirigem os movimentos.
Tomando-se, porém, o indivíduo sem relação ao maquinismo político, o homem que não tem dependências da administração nem da justiça e que denuncia o direito de desgovernar ele também os seus concidadãos, os Estados Unidos são o país livre por excelência. Os americanos são uma nação que quisera viver sem governo e agradece aos seus governantes suspeitarem-lhe a intenção. Daí a popularidade de seus presidentes: eles não fazem sombra ao país, não pesam sobre a nação. A pressão de cima para baixo, do governo sobre a sociedade, a que a humanidade se habituou de tempos imemoriais, de forma a não poder viver sem ela, faz-se sentir nos Estados Unidos menos do que em outra qualquer parte, menos do que na Inglaterra, onde a proteção governamental está sempre presente. A coluna da autoridade é menor sobre os ombros do americano do que sobre os de qualquer outro povo; a sua respiração é a mais franca, a mais larga, a mais profunda de todas. O governo pode ser melhor, mais perfeito na Inglaterra: que lhe importa isso, se o que ele quer é mesmo que a ação do governo se vá cada dia restringindo e ele a sinta menos e tenha menos que ver com ela? A questão é saber se a coluna de autoridade, que é hoje tão leve nos Estados Unidos, não virá um dia a ser a mais pesada de todas. O sistema americano pode bem corresponder, dada a diferença de época e adiantamento, à liberdade pessoal de que gozaram sempre mais ou menos as raças que tinham espaço ilimitado para se estenderem a escassa vizinhança em país novo. No fundo, essa extrema liberdade é uma forma de individualismo, de isolamento, de vida à parte, de responsabilidade ainda não formada, do homem na sociedade. Isoladamente, o americano será, como eu disse, o mais livre de todos os homens; como cidadão, porém, não se pode dizer que o seu contrato de sociedade esteja revestido das mesmas garantias que o do inglês, por exemplo. A autoridade é menor sobre os seus ombros, mas a solidariedade humana é também mais frouxa em sua consciência.
Uma coisa o governo americano não é: não é o governo do melhor homem, como pretendiam ser as democracias antigas. Governo pessoal, as presidências podem ser, pelo menos foram algumas acusadas de o ser; não se pode, porém, apontar neste século o homem de influência nos Estados Unidos, o Gladstone ou o Gambeta americano. A nação dispensa tutores, diretores, conselheiros, rejeita tudo o que pareça patronizing, ares de proteção e condescendência para com ela. Aos seus olhos, o que faz um estadista considerável é a soma de confiança que ele lhe merece, é o reflexo da satisfação que causa o Uncle Sam.
A idéia de que o seu governo é o mais forte do mundo e o que mais economiza e oculta a sua força, é o orgulho por excelência do americano. Entre o militarismo europeu e a democracia desarmada dos Estados Unidos pode um dia rebentar um conflito que hoje parece quase um paradoxo figurar, mas, até se experimentar em uma grande guerra estrangeira, como se provou em uma grande rebelião, a solidez e a elasticidade da americana, não se a pode considerar superior à velha textura européia.
O que se pode dizer é que os Estados Unidos não tiveram ainda os mesmos perigos de que se acautelar do que a Europa. Esse governo que muda todos os quatro anos, pode ser o mais forte do mundo, mas não foi experimentado nas mesmas condições que os outros, e que para estes, que são governos armados e em constante vigia pelo risco das coalizões estrangeiras, como os magníficos transatlânticos, de vastos salões iluminados, cobertas altas, camarotes espaçados e arejados, verdadeiras cidades flutuantes, estão como habitação para os navios de combate.
A União, comparada com a Inglaterra, é como a prairie americana comparada ao pátio interior de um castelo normando. Em uma, há de todos os lados o espaço descortinado, a planície sem fim; em outro, o espectador está fechado por altas paredes, que lhe contam sempre a história de outras épocas. O passado pesa sobre o presente na Inglaterra e o limita; na América, não há vista retrospectiva. De tudo isto resulta para o americano um sentimento de independência, que o faria, como fazia o grego, sentir-se metade escravo, se lhe dessem um rei, mesmo quando efeito da realeza fosse aumentar a sua parte efetiva de direitos e de influência na comunhão. É nisto que consiste a maior “liberdade” americana: no sentimento de igualdade hierárquica entre governantes e governados.
Não havia perigo de que eu adquirisse essa idiossincrasia americana: era evidente para mim que ela era o resultado das condições em que o país crescera e que, se a independência tivesse sido feita com um príncipe inglês, como a nossa foi feita com o herdeiro do trono, os Estados Unidos. em um século de progresso e de adiantamento, teriam desenvolvido para com a sua casa reinante o mesmo sentimento de loyalty dos ingleses. Se a realeza, na Inglaterra, passou, no nosso tempo, pela metamorfose que se observa do reinado de Jorge IV para o reinado de Vitória, teria passado na América do Norte por uma transformação ainda maior. Mr. King ou mrs. Queen seria uma pessoa muito mais popular do que mr. President, e diariamente receberia mais esmagadores shake-hands ou mais familiares cartões postais. No Brasil a Monarquia foi o que vimos, uma pura magistratura popular; como não seria nos Estados Unidos, onde o princípio ativo, a força corrosiva da democracia é ainda mais enérgica? A Monarquia na Nova Inglaterra, teria, provavelmente, exercido maior influência sobre as velhas Monarquias européias do que exerceu a grande República, e outra espécie de influência sobre o resto da América.
Depois da recepção e do acolhimento que d. Pedro II teve nos Estados Unidos em 1876, não era mais lícito duvidar de que para a inteligência culta do país a Monarquia constitucional, representada por uma dinastia como a brasileira, era um governo muito superior às chamadas repúblicas da América Latina. Perante multidões americanas nem sempre conviria, talvez, ao orador dizer isso; ele poderia às vezes declamar que a pior das repúblicas é um progresso sobre a melhor das monarquias, mas eu sentia que falar assim era o privilégio do demagogo irresponsável, e que esse não fora o sentimento dos Washingtons, dos Hamiltons, dos Jeffersons, nem é o dos que procuram seguir-lhes as tradições. O efeito do republicanismo norte-americano só podia ser para mim o de corrigir o que houve de supersticioso no meu monarquismo, tirar-lhe tudo o que parecesse direito divino, consagração super-humana. Entre os dois espíritos, o inglês e o norte-americano, eu não via oposição, como não há oposição entre as duas raças e as duas sociedades; não havia nada mais fácil de compreender e conciliar do que a admiração com que Gladstone fala dos Estados Unidos e a admiração dos escritores mais respeitáveis da América pela Constituição inglesa.
Nenhuma das minhas idéias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve, mais elástico do que os outros saturados de tradição e autoridade, de convencionanismo e cerimonial. Essa impressão não se apaga na vida. Aquele ar, quem o aspirou uma vez, prolongadamente, não o confundirá com o de nenhuma outra parte; sua composição é diferente da de todos.
Quanto a mim, fui tratado com tanta benevolência, encontrei tão generoso acolhimento nos Estados Unidos, que ainda hoje me reconforto nessas doces recordações. A impressão geral que me deixou o que vi na América do Norte, é uma impressão de nitidez; tudo é nítido, de contorno perfeito e incisivo, como uma medalha antiga. O inglês fará tudo sólido; o francês elegante; o americano procura fazer nítido, clear cut. Isso reconhece-se logo em qualquer estampa americana. Há uma perfeição à parte, que é a perfeição americana, distinta do último toque que o inglês ou o francês dá as coisas, perfeição real, incontestável, como é a japonesa. Pode-se preferir o modo de ver, ou, antes, o modo de olhar – a arte não é no fundo senão um modo de olhar, uma questão de ângulo visual – ,do europeu ao do americano, é também isso em grande parte uma questão de raça, mas não há dúvida que o traço americano é um traço que alcançou, por sua vez, a perfeição. Tudo o que vi me pareceu feito, desenhado com esse traço, que eu não confundiria com outro. O que o distingue é que ele não exprime, como os outros, um estado de espírito ou aspiração de ordem puramente estética; que não exprime uma resolução, uma vontade, um caráter. Se não fosse a aspiração histórica, de que eu não poderia, nem quisera, desfazer-me, nenhuma residência, nenhuma vida, nenhum espetáculo me teria nunca parecido tão encantador como o de Nova York. Não sei se o céu de Nova York não me pareceu o mais belo do mundo; o que sei é que ele derrama em ondas de luz a alegria, a vida, a coragem, sobra a mais admirável procissão de mocidade e de beleza humana que jamais passou diante dos meus olhos, a que flui e reflui todas as tardes e manhãs da Quinta Avenida para o Central Park.
Ao americano, ao homem, não à mulher, e ao homem que não pertence à elite do país, faltará o que se tem convencionado chamar maneiras, os toques ou sinais, desconhecidos dos profanos, pelos quais os iniciados nos segredos mundanos se reconhecem entre si; isto quer dizer somente que a americana é uma raça que ainda está crescendo na mais perfeita igualdade e ganhando a vida em desenfreada competição× Não há, porém, no mundo uma escola igual a essa para se aprender o que, de hora em diante pelo menos, é o mais importante dos preparatórios da vida, – a arte de contar consigo só. O menino americano, e quando se diz o menino nos Estados Unidos entende-se a menina também, é metido desde quase a primeira infância em um banho químico que lhe dá a cada fibra da vontade e rijeza e a elasticidade do aço× Qualquer que seja o valor da cultura, nenhum pai preferirá deixar ao filho mais um sentido intelectual a deixar-lhe o poderoso pick-me-up americano, o cordial que impede a enervação nos grandes transes morais× E que o jogo da vida nos tempos modernos, – muito mais nos séculos que vão vir, em que a concorrência será ainda mais numerosa e implacável, – não se parece com figuras de minuete ou com divertimentos campestres do século passado, como os vemos em um Boucher ou em um Goya; parece-se com as chamadas montanhas russas: é um incessante despenhar a toda a velocidade, montanha abaixo, de trens que com o impulso da descida transpõem as escarpas fronteiras para se precipitarem de novo e de novo reaparecerem mais longe, e para essa contínua sensação de vertigem é principalmente o coração que precisa ser robustecido. Segundo toda probabilidade, os Estados Unidos hão de um dia parar, e então terão tempo para produzir a sua sociedade culta, como os velhos países da Europa. Já nos Estados Unidos porções da sociedade que param e querem permanecer em repouso; essas formam o primeiro indício de uma aristocracia, que um dia será um grande poder na União, uma grande influência ou conservadora ou artística.
Em uma entrevista que concedeu há anos a um repórter americano, Herbert Spencer concluiu com esta previsão sobre o futuro dos Estados Unidos: “De verdades biológicas deve-se inferir que a mistura eventual das variedades aliadas da raça Ariana que formam a população hão de produzir um mais poderoso tipo de homem do que tem existido até hoje, e um tipo de homem mais plástico, mais adaptável, mais capaz de suportar as modificações necessárias para a completa vida social. Por maiores que sejam as dificuldades que os americanos tenham que vencer e as tribulações por que tenham que passar, eles podem razoavelmente contar com uma época em que hão de produzir uma civilização mais grandiosa do que qualquer que o mundo tenha visto”.
É possível que seja aquela a lei biológica da mistura ariana, mas até hoje ainda nenhum galho americano de tronco europeu mostrou poder dar a mesma flor de civilização que a da velha estirpe. É possível que a civilização americana venha um dia a ser mais grandiosa do que qualquer que o mundo conheceu, mas eu consideraria perigoso, por enquanto, renunciar a Europa nos Estados Unidos a tarefa de levar a cabo a obra da humanidade. Reduzida esta aos atuais elementos americanos, muita nobre inspiração talvez nunca mais se pudesse renovar e o gênio da raça humana não viesse nunca a reflorir. A educação americana parece a única que não é convencional, que não é uma pura galvanização de estados de espírito de outras épocas, de ideais clássicos e literários, que homens que vivem entre livros insinuam aos que não têm tempo para ler. A idéia tem na América do Norte muito menor papel na vida do que nos outros países, onde tudo está escrito e convertido em regra, e dos quais se pode dizer, invertendo a célebre frase, que nada lhes cai sob os sentidos que não tenha estado primeiro na inteligência. Os americanos, em grande escala, estão inventando a vida, como se nada existisse feito até hoje. Tudo isto sugere grandes inovações futuras, mas não existe ainda o menor sinal de que a elaboração do destino humano ou a revelação superior feita ao homem tenha um dia que passar para os Estados Unidos× A sua missão na história é ainda a mais absoluta incógnita. Se ele desaparecesse de repente, não se pode dizer o que é que a humanidade perderia de essencial, que raio se apagaria do espírito humano; não é ainda como se tivesse desaparecido a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália, a Espanha.