Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam ainda quase dois milhões de escravos, enquanto que os seus filhos de menos de oito e todos os que viessem a nascer, apesar de ingênuos, estavam sujeitos até aos 21 anos a um regime praticamente igual ao cativeiro. Foi esse imenso bloco que atacamos em 1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhá-lo. No fim de dez anos não restava dele senão o pó. Tal resultado foi devido a muitas causas... Em primeiro lugar, à época em que foi lançada a idéia. A humanidade estava por demais adiantada para que se pudesse ainda defender em princípio a escravidão, como o haviam feito nos Estados Unidos. A raça latina não tem dessas coragens. O sentimento de ser a última nação de escravos humilhava a nossa altivez e emulação de país novo. Depois, à fraqueza e à doçura do caráter nacional, ao qual o escravo tinha comunicado sua bondade e a escravidão o seu relaxamento. Compare-se nesse ponto o que ela foi no Brasil com o que foi na América do Norte. No Brasil, a escravidão é uma fusão de raças; nos Estados Unidos, é a guerra entre elas. Nossos proprietários emancipavam aos centos os seus escravos, em vez de se unirem para linchar os abolicionistas, como fariam os criadores do Kentucky ou os plantadores da Luisiana. A causa abolicionista exercia sua sedução sobre a mocidade, a imprensa, a democracia; era um imperativo categórico para os magistrados e os padres; tinha afinidades profundas com o mundo operário e com o exército, recrutado de preferência entre os homens de cor; operava como um dissolvente sobre a massa dos partidos políticos, cujas rivalidades incitava com a honra que podia conferir aos estadistas que a empreendessem, e à própria dinastia inspirava de modo espontâneo o sacrifício indispensável para o sucesso.

Cinco ações ou concursos diferentes cooperaram para o resultado final: 1º a ação motora dos espíritos que criavam a opinião pela idéia, pela palavra, pelo sentimento, e que a faziam valer por meio do Parlamento, dos meetings, da imprensa, do ensino superior, do púlpito, dos tribunais; 2º a ação coerciva dos que se propunham a destruir materialmente o formidável aparelho da escravidão, arrebatando os escravos ao poder dos senhores; 3º a ação complementar dos próprios proprietários, que, à medida que o movimento se precipitava, diminuíam diante dele as resistências, libertando em massa as suas “fábricas”; 4º a ação política dos estadistas, representando as concessões do governo; 5º a ação dinástica.

As duas primeiras categorias formavam círculos concêntricos compostos como eram em grande parte dos mesmos elementos. É a eles que pertence o grosso do Partido Abolicionista, os líderes do movimento. Para colocar cada figura no plano que lhe convém, com seu tamanho relativo, seria preciso outro juiz. Tendo visto na luta e no esforço cada um dos veteranos dessa campanha, eu não me perdoaria a mim mesmo a menor injustiça involuntária que fizesse a qualquer deles. Dissentimentos profundos me separaram de muitos depois da vitória, mas o espírito de imparcialidade que me anima a respeito de cada um faz ainda parte da lealdade que acredito ter mantido perfeita durante a abolição para com todos os auxiliares dela, os da primeira como os da undécima hora. Não farei tampouco o livro de ouro da grande propriedade brasileira nessa quadra. Na categoria dos chefes políticos posso destacar, porém, três estadistas que prestaram ao movimento em épocas diferentes um concurso decisivo: Dantas, que primeiro colocou ao serviço dela um dos partidos constitucionais do país, o liberal, serviço da ordem do que Gladstone prestou à causa irlandesa; Antônio Prado, que retirou o veto de S. Paulo à abolição, quebrando assim a resistência até então compacta do Sul, a porção mais rica do país, e João Alfredo, que levou o Partido Conservador a apresentar a lei da extinção imediata, ato que mesmo nessa época foi uma grande audácia, e que pelo estado e disposição geral da política só podia ter sido obra dele mesmo. José Bonifácio, cuja adesão à idéia foi um contingente igual à libertação do Ceará, Cristiano Ottoni, Silveira da Motta, e outros, eu os constaria na primeira classe, a dos propagandistas.

É-me quase impossível falar hoje da abolição senão por incidentes e figuras destacadas... Tudo o que digo é sob a ressalva de que teria muito mais que dizer; quando pronuncio um nome está subentendido que é apenas um de seu extenso calendário, e que os díticos de um e outro lado estão cheios... Quem fará dentre os contemporâneos essa história com imparcialidade, justeza e penetração, sem deixar entrar nela a paixão política, o preço sectário, a fascinação ou sujeição pessoal? Ninguém, decerto, o que quer dizer que haverá no futuro diversas histórias. A minha contribuição para o assunto há de ser o meu arquivo, e alguns fragmentos a respeito de diversos fatos em que estive envolvido ou de que tive conhecimento direto... Esse trabalho, essa desobriga, ao mesmo tempo que depoimento pessoal, espero que Deus me dará tempo e modo de o fazer como planejo. Seria uma espécie de chave para o período que encerra a era monárquica.

Dentre aqueles com quem mais intimamente lidei em 1879 e 1880, e que formavam comigo um grupo homogêneo, a nossa pequena igreja, as principais figuras eram André Rebouças, Gusmão Lobo e Joaquim Serra... A igreja fronteira era a de José do Patrocínio, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Nicolau Moreira, depois João Clapp com a Confederação Abolicionista. Se eu estivesse escrevendo nesse momento um esforço do movimento abolicionista de 1879-1888, já teria citado Jerônimo Sodré, que foi quem pronunciou o fiat, e passaria a citar os meus companheiros de Câmara: Manoel Pedro, Correa Rabello, S. de Barros Pimentel, e outros, porque o movimento começou na Câmara em 1879, e não, como se têm dito, na Gazeta da Tarde de Ferreira de Menezes, que é de 1880, nem na Gazeta de Notícias, onde então José do Patrocínio, escrevendo a Semana Política, não fazia senão nos apoiar e ainda não adivinhava a sua missão. De certo pelos escravos já vinham trabalhando Luís Gama e outros, mesmo antes da lei de 1871, como trabalharam todos os colaboradores dessa lei; mas o movimento abolicionista de 1879 a 1888 é um movimento que tem o seu eixo próprio, sua formação distinta, e cujo princípio, marcha, velocidade, são fáceis de verificar; e um sistema fluvial do qual se conhecem as nascentes, o volume da água e o valor de cada tributário, as quedas, os rápidos, o estuário, e esse movimento começa, fora de toda dúvida, com o pronunciamento de Jerônimo Sodré em 1879 na Câmara... Esse pronunciamento vem resolvido da Bahia e rebenta na Câmara como uma manga d’água, repentinamente. Nada absolutamente o fazia suspeitar... Ao ato de Jerônimo Sodré filia-se cronologicamente a minha atitude dias depois... Mais tarde é que entram Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Menezes, Joaquim Serra... Isso não é apurar a data dos primeiros escritos abolicionistas de cada um; os meus, por exemplo, datavam da Academia... É reivindicar para a Câmara, para o Parlamento, a iniciativa que se lhe tem querido tirar nesta questão, dando-se-a ao elemento popular, republicano... É uma pura questão de datas, desde que se der a data certa a cada fato alegado, verificar-se-á o autem genuit acima... Reconheço que a minha inscrição vem na ordem do tempo depois de Jerônimo Sodré... As outras, porém, vieram depois da minha... Foi o movimento popular, talvez, que mais tarde incubou o germe parlamentar, não o deixando morrer nas sessões seguintes, mas que o germe foi parlamentar, que o liber generationis começou em 1879 com Jerônimo Sodré, é o que se pode demonstrar com os próprios documentos, mesmo com aqueles em que se pretenda o contrário, uma vez que sejam autênticos... A questão de iniciativa aliás tem um interesse todo secundário, sobretudo, quando a idéia está no ar e o espírito do tempo a agita por toda a parte. Não há nada mais difícil do que avaliar a importância relativa dos diversos fatores de um movimento que se torna nacional. O último dos apóstolos pode vir a ser o primeiro de todos, como S. Paulo, em serviços e em proselitismo. Tudo na abolição prende-se, não se pode escrever-lhe a história suprimindo qualquer dos seus elos... É um fato a reter: a compensação vai sempre além, muito além, dos prejuízos que ela sofre, e, desse modo, até eles a favorecem... Assim morre Ferreira de Menezes, mas Patrocínio toma a Gazeta da Tarde; a minoria abolicionista de 1879 não é reeleita, surge a Confederação Abolicionista; quando o Ceará conclui a sua obra, o Amazonas começa a dele; demitido um presidente de Província (Teodureto Souto), é nomeado um presidente do Conselho (Dantas); organizada a ação da polícia, aparece a agitação no Exército; às sevícias da Paraíba do Sul e de Cantagalo sucede o combate do Cubatão; morto José Bonifácio, toma o seu lugar em S. Paulo Antônio Prado; repelido pela Câmara José Marianno, o Recife derrota o ministro do Império; vacilando o Partido Liberal, move-se o Partido Conservador; parte o imperador, fica a princesa... Ninguém, afinal, sabe quem fez mais pela abolição: se a propaganda, se a resistência: se os que queriam tudo, se os que não queriam nada... Nada há mais ilusório que as distribuições de glória... As lendas hão de sempre viver, como raios de luz na treva amontoada do passado, mas a beleza delas não está em sua verdade, que é sempre pequena; está no esforço que a humanidade faz, para assim reter alguns episódios de uma vida tão extensa que, para abrangê-la, não há memória possível.

Não posso senão dar ao acaso algumas impressões, por isso deixo, não sem constrangimento, de referir-me a nomes que entrariam em qualquer resumo, por mais curto que fosse, note-se bem, do começo da propaganda... Os dois grupos de que falei encontravam-se, trabalhavam juntos, misturavam-se, mas a linha divisória era sensível: um representava a ação política, o outro a revolucionária, ainda que cada um refletisse, por vezes, a influência do outro. Isso no tempo em que a idéia está sendo lançada, pois dentro de pouco o movimento torna-se geral, e então há o influxo das Províncias, há o Ceará, o Amazonas, o Rio Grande do Sul, Pernambuco, a Bahia, S. Paulo, que surgem como grandes focos de propaganda... O movimento abolicionista teve com efeito duas fases bem acentuadamente divididas: a primeira, de 1879 a 1884, em que os abolicionistas combateram sós, entregues aos seus próprios recursos, e a segunda, de 1884 a 1888, em que eles viram sua causa adotada sucessivamente pelos dois grandes partidos do país. Em 1884, deu-se a conversão do Partido Liberal e, em 1888, a do Partido Conservador. A fase puramente abolicionista da campanha – por ocasião à fase política, que poderia entrar na história dos dois partidos rivais – foi a primeira.

De todos, aquele com quem mais intimamente vivi, com quem estabeleci uma verdadeira comunhão de sentimento, foi André Rebouças... Nossa amizade foi por muito tempo a fusão de duas vidas em um só pensamento: a emancipação. Rebouças encarnou, como nenhum outro de nós, o espírito antiesclavagista: o espírito inteiro, sistemático, absoluto, sacrificando tudo, sem exceção, que lhe fosse contrário ou suspeito, não se contentando de tomar a questão por um só lado olhando-a por todos, triangulando-a, por assim dizer – era uma de suas expressões favoritas – socialmente, moralmente, economicamente. Ele não tinha, para o público, nem a palavra, nem o estilo, nem a ação; dir-se-ia assim que em um movimento dirigido por oradores, jornalistas, agitadores populares, não lhe podia caber papel algum saliente, no entanto ele teve o mais belo de todos, e calculado por medidas estritamente interiores, psicológicas, o maior, o papel primário, ainda que oculto, do motor, da inspiração que se repartia com todos..., não se o via quase, de fora, mas cada um dos que eram vistos estava olhando para ele, sentia-o consigo, em si, regulava-se pelo gesto invisível à multidão..., sabia que a consciência capaz de resolver todos os problemas da causa só ele a tinha, que só ele entrava na sarça ardente e via o Eterno face a face...É-me tão impossível resumi-lo a ele em um traço como me seria impossível figurar uma trajetória infinita... Depois da abolição ele sempre teve o pressentimento de que a escravidão causaria uma grande desgraça à dinastia, como assassinara a Lincoln. Seu maior amor talvez tenha sido pelos seus alunos da Politécnica, mas como todas as suas recordações da “Escola” transformaram-se em outros tantos tormentos, quando os viu glorificando o 15 de novembro, que para ele era a desforra de 13 de maio!...

Do seu quarto no Hotel Bragança, em Petrópolis, onde durante anos notara no seu diário a nossa pulsação comum, até o despenhadeiro do Funchal, que linha a que descreveu André Rebouças! Ele foi o cortesão do “Alagoas”... Um republicano, a quem veio a tocar na hora da amargura o papel de discípulo amado do velho imperador banido... Foi um industrial, um engenheiro ousado e triunfante, que acabou praticando o tolstoísmo... Foi um gênio matemático, um sábio, que reduziu a sua ciência a uma serpentina em que de tudo distilava a abolição... Seu centro de gravidade foi verdadeiramente sublime... Não posso ainda falar dele em relação a mim, porque não o quisera fazer de modo incompleto... Prefiro mostrá-lo em relação ao imperador. Aqui está uma dessas provas rápidas, fotogênicas, que ele sabia tirar de si, e nas quais os que vieram com ele reconhecem-lhe a fisionomia, apanhada com toda a mobilidade da sua expressão e com a inalterabilidade do seu afeto humano. É por acaso que encontro esta carta dele:

“Cannes, 13 de maio de 1892.

Meu mestre e meu imperador – Não passará o 3º aniversário da libertação da raça africana no Brasil, sem que André Rebouças dê novo testemunho de filial gratidão ao mártir sublime da abolição.

Sinto-me feliz por ter sido escolhido pelo bom Deus para representar a devotação da raça africana a V. M. Imperial e à princesa redentora, e alegro-me repetindo-o incessantemente.

É hoje grato relembrar a síntese da nossa vida, como meu bom mestre disse no Alagoas, quando comemoramos seu 64º aniversário.

Principiou em Petrópolis, em 1850, há 41 anos, examinando-me em aritmética, ainda menino de colégio, e continuou, quase cotidianamente, nas lições e nos exames das Escolas Militar, Central e de Aplicação na fortaleza da praia Vermelha até dezembro de 1860.

Os anos de 1861 e 1862 foram de estudos práticos de caminho de ferro e de portos de mar na Europa. A primeira Memória, escrita com o Antônio, datada de Marselha, em 9 de junho de 1861, foi dedicada, como de justiça, ao nosso bom mestre e imperador... Quando Vossa Majestade encontrava meu pai, suas palavras primeiras eram: – ‘Como vão os meninos? – Onde estão agora? – Recomende-lhes sempre que estudem e que trabalhem’.

Voltamos ao Brasil em fins de 1862, e encetamos a vida prática nos trabalhos militares de Santa Catarina, motivados pelo conflito Christie.

A 28 de dezembro de 1863 separei-me, pela primeira vez, do meu irmão Antônio... Começava daí em diante o período industrial da minha vida.

Vossa Majestade e meu pai não queriam que eu tivesse uma orientação além da vida tranqüila da ciência e do professorado; mas o visconde de Itaboraí, que também me devotava afeição paternal, dizia: – ‘André!... Quero que você suceda ao Mauá!...’

Sabe, Vossa Majestade quanto sofri da oligarquia politicante e da plutocracia escravocrata nesses afanosos tempos... Só tenho hoje deles uma consolação: – Projetei e construía as docas de Pedro II, concebi e dirigi o caminho de ferro Conde d’Eu e sua bela estação marítima do Cabedelo.

Vossa Majestade gosta de recordar que, em Uruguaiana, salvamos juntos, pelo nosso horror ao sangue, 7 mil paraguaios e centenas de brasileiros... Na atual antipatia ao militarismo, apenas lembro-me dos trabalhos de Itapiru e Tuiuti.

Em 1880 começa a propaganda abolicionista. Nós, tribunos ardentes, só tínhamos uma certeza e uma esperança: – o imperador. Em 1871 havia Vossa Majestade concedido à filha predileta libertar o berço dos cativos com Paranhos, visconde do Rio Branco.

Em 1888 a iniciativa partiu daquela que não pode ver lágrimas nem ouvir soluços de pobres, de infelizes e de escravos, no amor santo de mártir do cristianismo inicial, aspirando menos à glória na Terra do que anelando a benemerência no céu, junto a Jesus, o redentor dos redentores.

Enfim... Creio que podemos esperar tranqüilos o juízo de Deus; porque havemos cumprido sua grande lei, trabalhando pelo progresso da humanidade.

Agora, só tenho a dizer-lhe que desde 15 de novembro de 1889 perdi a linha divisória entre meu pai e meu mestre e imperador, e que é na maior efusão de amor que me assino – Com todo o coração – André Rebouças.”

Ou este itinerário, que me traçara para a fuga de escravos de S. Paulo para o Norte, pura fantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade, de toques da sua generosa sensibilidade, quase impessoal:

CAMINHO DE FERRO SUBTERRÂNEO

do

ALTO S. FRANCISCO AO CEARÁ LIVRE

Estação Inicial... S. Paulo; junto ao túmulo de Luís Gama.

Segunda Estação... Pirassununga.

Terceira Estação... Cachoeira de Moji-Guaçu.

Quarta Estação... Em pleno sertão, com rumo de Nordeste; o sol deve amanhecer à direita e cair, à tarde, à esquerda.

Quinta Estação... Piumhy, nascente do rio S. Francisco, acompanhando sempre o belo rio, abundante de peixes e de frutos deliciosos.

Sexta Estação... De um lado Goiás livre; do outro o sertão da Bahia, onde não há capitães do mato.

Sétima Estação...Na Vila da Barra, onde começam as grandes cachoeiras do S. Francisco.

Oitava estação... No varadouro das águas do S. Francisco para as do Parnaíba.

Nona Estação... No Paraíso – no Ceará Livre.”

Matemático e astrônomo, botânico e geólogo, industrial e moralista, higienista e filantropo, poeta e filósofo, Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o único universal pelo espírito e pelo coração... Pelo espírito teremos alguns, pelo coração outros; mas somente ele foi capaz de refletir em si ao mesmo tempo a universalidade dos conhecimentos e a dos sentimentos humanos. Quem sabe se não foi a imagem que partiu o espelho! “Delirante ovação dos meus sonhos, escrevia ele em 15 de maio de 1888 no seu diário. Anuncio-lhes o projeto de Triangulação Moral e Cadastral do Brasil. Voto de louvor pela Congregação. Nova ovação. Carregado pelos alunos por todo o peristilo.” Da abolição ele foi o maior, não pela ação exterior, ou influência direta sobre o movimento, mas pela força e altura da projeção cerebral, pela rotação vertiginosa de idéias e sensações em torno do eixo consumidor e cadente, que era para ele o sofrimento do escravo. Era uma fornalha cósmica a que ardia nele. Se Rebouças ainda é visto no seu tempo como uma estrela de segunda grandeza, é porque estava mais longe do que todas... Dos evangelistas da nossa boa nova ele é que teria por atributo a águia... Há no seu estilo e nos seus moldes muita coisa que lembra S. João... Idealista todo ele é quase só por símbolos que escreve... A ilha da Madeira foi a Pathmos de um apocalipse infelizmente perdido, porque suas últimas páginas, voltado para o Sul, ele as escrevia tomando por letras as estrelas e as constelações. Sua lenda, porém, está feita, não há perigo para ele de esquecimento: a lenda do seu desterro e de sua amizade a d. Pedro II.

Outro com quem vivi, até sua morte em grande aproximação de idéias, foi Joaquim Serra. Desde 1880 até a abolição ele não deixou passar um dia sem a sua linha... Minado por uma doença que não perdoa, salvava cada manhã o que bastasse de alegria para sorrir à esperança dos escravos, a qual viu crescer dia por dia, durante esses dez anos, como uma planta delicada que ele mesmo tivesse feito nascer... Feita a abolição, desabrochada a flor, morria ele... E que morte! Que saudade da mulher e dos filhos, da filhinha adorada, que não se queria afastar um instante dele! Serra cumpriu a sua tarefa com uma constância e assiduidade a toda prova, sem dar uma falta, e com o mais perfeito espírito de abnegação e de lealdade... Renunciando os primeiros lugares, ele mostrava, entretanto, de mais em mais uma agudeza de vista e uma clareza de expressão dignas de um verdadeiro líder. Eu mesmo, que acreditava conhecê-lo, fui surpreendido pela ousadia da sua manobra, quando uma vez ele prometeu ao barão de Cotegipe todo o nosso apoio – nós respondíamos uns pelos outros – se fizesse concessões ao movimento. Ao contrário de Rebouças, Serra era um espírito político, mas acima do seu partido, do qual fora durante a oposição o mais serviçal dos auxiliares, colocava a nossa causa comum com uma sinceridade íntima que nunca foi suspeitada... “Passamento do grande Joaquim Serra, escreve Rebouças no seu diário, em 29 de outubro de 1888, companheiro de Academia em 1854 e de luta abolicionista de 1880-1888, o publicista que mais escreveu contra os escravocratas.” “Ninguém fez mais do que ele, escrevia Gusmão Lobo por sua morte... e quem fez tanto?”

Gusmão Lobo é outro nome do nosso círculo interior... Alguns dos que combateram juntos sem descanso, durante os primeiros cinco anos da propaganda, os quais foram os anos do ostracismo político e social da idéia, acreditaram sua tarefa, senão acabada, pelo menos grandemente aliviada no dia em que um grande partido no governo, com os seus quadros, sua influência, seu eleitorado, sua imprensa, adotou a causa de que eles eram até então os únicos arrimos... Entre esses está Gusmão Lobo, que não teria deixado a pena de combate, se não tivesse visto a bandeira que ela protegia, passar triunfantemente das mãos dos agitadores para as mãos de presidentes do Conselho. Na época decisiva do movimento, aquela em que se teve que criar o impulso e torná-lo mais forte do que a resistência, isto é, em que se venceu virtualmente a campanha, os seus serviços foram inapreciáveis... Ele sozinho enchia com a emancipação o Jornal do Comércio desde a coluna editorial, onde por toda a espécie de habilidades, artifícios e sutilezas, graças à boa vontade do dr. Luís de Castro, conseguia ter a questão sempre em evidência... Seu talento, seu estilo de escritor, airoso, perfeito, prismático, um dos mais belos e mais espontâneos do nosso tempo, era verdadeiramente inexaurível... Ele achava solução para tudo, tinha os expedientes e as finuras, como tinha a plástica da expressão... Todo o seu trabalho foi anônimo e poderia assim passar despercebido de outra geração, se não restasse o testemunho unânime dos que trabalharam com ele... Era um assombro a variedade dos papéis que ele desempenhava na imprensa, incalculável o valor da sua presença e conselho em nossas reuniões, e depois no íntimo do Gabinete Dantas. Seu nome está escrito, por toda a parte, nas paredes das catacumbas em que o abolicionismo nascente viveu os primeiros cinco anos como uma pequena igreja perseguida, mas aparece cada vez mais raro à medida que a nova fé se vai tornando religião oficial. É um dos enigmas do nosso tempo – enigma nacional, porque se prende à questão do emurchecimento rápido de toda flor do país – como semelhante talento renunciou mais tarde de repente a toda a ambição...

Não quero fazer a galeria da abolição, mas, como dei, vencido pela saudade, dois ou três perfis, tão imperfeitos, de amigos, pagarei também o meu tributo a José do Patrocínio... Este é o representante do espírito revolucionário que com o espírito liberal e o espírito de governo fez a abolição, mas que foi mais forte do que eles, e acabou por os absorver e dominar... Sem o espírito governamental de homens como Dantas, Antônio Prado e João Alfredo, não se teria chegado pacificamente ao fim, nem tão cedo; sem o espírito humanitário, extreme de ódios e tendências políticas, a abolição teria degenerado, em uma guerra de raças ou em um encontro de facções; sem o trabalho vário, inapreciável, de cada um dos grandes fatores provinciais, que conservarão sua autonomia na História, como o do Ceará, com João Cordeiro, o de S. Paulo com Antônio Bento, o de Pernambuco com João Ramos, tomando esses nomes como coletivos, o resultado teria sido diferente e talvez funesto. O que Patrocínio, porém, representa é o fatum, é o irresistível do movimento... Ele é uma mistura de Spartaco e de Camille Desmoulins... Os que lutavam somente contra a escravidão eram como os liberais de 1789, da raça dos cegos de boa vontade, senão voluntários, que as revoluções empregam para lhes abrirem a primeira brecha...Patrocínio é a própria revolução. Se o abolicionismo no dia seguinte ao seu triunfo dispersou-se e logo depois uma parte dele aliou-se à grande propriedade contra a dinastia que ele tinha induzido ao sacrifício, é que o espírito que mais profundamente o agitou e revolveu foi o espírito revolucionário que a sociedade abalada tinha deixado escapar pela primeira fenda dos seus alicerces... Patrocínio foi a expressão da sua época; em certo sentido, a figura representativa dela...