A queda do Império pusera fim à minha carreira... A causa monárquica devia ser o meu último contato com a política... De 1889 a 1890 estou todo sob a impressão do 15 de novembro, seguindo-se ao 13 de maio; escrevo então os meus solilóquios em uma Tebaida onde podia andar centenas de milhas sem deparar com o refúgio de outro praticante... Em 1891 minha maior impressão é a morte do imperador. De 1892 a 1893 há um intervalo: a religião afasta tudo mais, é o período da volta misteriosa, indefinível da fé, para mim verdadeira pomba do dilúvio universal, trazendo o ramo da vida renascente... De 1893 a 1895 sofro o abalo da Revolta, da morte de Saldanha, de que saem meus dois livros Balmaceda e a Intervenção... Desde 1893, porém, o assunto que devia ser a grande devoção literária da minha vida, a Vida de meu pai, tinha-se já apossado de mim e devia seguidamente durante seis anos ocupar-me até absorver-me...

Como escrevia algumas páginas atrás, o meu espírito adquirira em tudo a aspiração da forma e do repouso definitivo. A nossa dinastia tivera em 15 de novembro o que chamei uma assunção: vivera e acabara como uma encarnação nacional. O condão deixado pela fada no berço da nossa nacionalidade foi quebrado e lançado fora; quem nos diz que o desfecho não estava previsto por ela? A Independência, a unidade nacional, a Abolição: nenhuma dinastia jamais insculpiu na sua pirâmide um tão perfeito cartouche... Quando eu pensava no papel representado pela casa reinante brasileira, d. Pedro I, Pedro II, d. Isabel, e nas condições de unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional necessárias para ela o poder de novo desempenhar de acordo com a sua lenda, o problema excedia a minha imaginação, e parecia-me um atentado contra a História querer-se acrescentar, a não ser por mão de mestre, de uma segurança, de uma delicadeza, de uma felicidade a toda prova, um novo painel àquele tríptico...

Por outro lado, durante os anos que trabalhei na Vida de meu pai a minha atitude foi insensivelmente sendo afetada pelo espírito das antigas gerações que criaram e fundaram o regime liberal que a nossa deixou destruir... O que eu respirava naquela vasta documentação não era um espírito monárquico inconciliável, bastando como uma religião, como uma bem-aventurança, aos que por ela se destacavam do mundo... A monarquia para aquelas épocas de arquitetos, pedreiros e escultores políticos incomparáveis era uma bela e pura forma, mas que não podia existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriótico deles dirigia-se à substância nacional, o país; sua vassalagem ao princípio monárquico era apenas um preito rendido à primeira das conveniências sociais... Para tais homens, verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter as instituições, mas o Brasil existiria sempre, e à sua voz seria forçoso acudir, qualquer que fosse o vendaval em torno, e quanto mais ferido, mais mutilado, mais exausto, maior o dever de o não abandonar... Eles não estabeleceriam nunca o dilema entre a monarquia e a pátria, porque a pátria não podia ter rival.

A impressão desses sentimentos varonis, dessa antiga lealdade, foi grande em mim e à medida que eu a ia respirando, o desejo aumentava de não deixar pelo menos o meu túmulo murado do lado do futuro...Compreendo a carta de Berryer moribundo a Henrique V, como compreendo a carta de Chambord sobre a bandeira branca; a monarquia francesa gerara uma uma cavalaria, um ponto de honra aristocrático, um espírito de classe à parte, e mesmo assim era como o próprio Berryer, como Chateaubriand, como o duque de Aumale – “La France était toujours là!” – que os nossos antigos homens de Estado desde os tempos coloniais, e o imperador lhes refletia o sentimento patriótico absoluto, colocavam a pátria fora de competição com qualquer outra idéia ou sentimento... Eu, porém, não tinha uma parcela de legitimismo, de direito divino; minha caracterização, o acento tônico, era outra: liberal, não no sentido passageiro, político, da expressão, mas no seu sentido humano, eterno, e como liberal a aspiração sintética de minha vida tinha que ser a de não me dissociar, qualquer que fosse sua forma de governo, nos destinos do meu país.

Assim, mesmo como monarquista, me fui pouco a pouco distanciando da política. Meu espírito cristalizara sob faces que o fariam sempre rejeitar como antipolítico... Que podia eu mais tentar sozinho, por mim mesmo? Em 1879 eu me alistara para uma campanha que supunha havia de durar além de minha vida; fiz assim, posso dizer, voto perpétuo de servir uma grande causa nacional: o que devia mais de trinta anos, durou somente nove, mas nem por isso economizei forças, iniciativa, imaginação para outros empreendimentos... A abolição, além disso, pelo seu sopro universal, isolara-me dos partidos, afastara-me da sua esfera contencisa; por hábito eu agora aspirava a viver em regiões de ar mais dilatado, onde se respirasse a unanimidade moral, a fé, o otimismo humano, o oxigênio das grandes correntes de ideal...

Demais, eu me convenci de que os partidos, os homens, as instituições rivais em uma mesma sociedade hão de ter o mesmo nível, como líquidos em vasos que se comunicam; de que o pessoal político é um só, os idealistas, os ultra, de cada lado sendo imperceptíveis minorias; por último, de minha inaptidão para lidar com o elemento pessoal, de que dependem em política quase todos os resultados... Era-me de todo impossível encontrar de novo em mim o impulso, o movimento, o ímpeto das nossas antigas cargas da abolição... Lutas de partidos, meetings populares, sessões agitadas da Câmara, tiradas de oratória, tudo isso me parecia pertencer à idade da cavalaria... Agora o menor problema político causava-me uma timidez invencível, tornava-se nacional, internacional, e todos convertiam-se em casos de consciência. Uma série de reflexões, que tomavam a forma de máximas políticas, eram outros tantos avisos de perigo sobre qualquer superfície desconhecida que eu quisesse pisar... Eu desistia assim de lidar de ora em diante com partidos e com acontecimentos; minha esfera tornara-se toda subjetiva... “Há épocas em que o associar-se, ainda mesmo com outros melhores do que nós, é trair o ideal próprio que cada um tem em si e que lhe cumpre a seu modo lapidar polir ao infinito. » Esta minha phrase sobre o isolamento de André Rebouças, quando não imaginava o fim melancolico que elle havia de ter, exprime muito do meu proprio sentimento... É preciso roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor que seja a final, para dal-a aos pensamentos e ás aspirações que não queremos que morram comnosco.

Os ultimos dez annos são assim o periodo em que o interesse politico cederá gradualmente o logar ao interesse religioso e ao interesse litterario até ficar reduzido quasi somente ao que tem de commum com elles... Quando digo interesse politico, quero dizer o espirito politico, porquanto a emoção, a parte que tomo na sorte do paiz augmenta com as peripecias, as contingencias, os vortices dos novos dramas. O auctor e o actor desapparecem; o espectador, esse, porém, sente a sua anciedade crescer e tornar-se angustiosa... Posso portanto terminar aqui a historia de minha formação politica, e mesmo de toda a minha formação, porque das novas influencias que me vão dominar no resto da vida, a religiosa já se a encontrou na infancia e a das lettras na mocidade. As lettras luctaram em mim annos seguidos, como se viu, contra a politica, sempre com superioridade, até vir a abolição, que durante os dez annos as relegou, como tudo mais, a immensa distancia. Extincto este grande foco de atracção, nenhum outro teria o mesmo poder contra ellas... Ainda assim talvez tenha apenas havido entre ellas e a politica uma verdadeira fusão... A historia é com effeito o unico campo em que me seria dado ainda cultivar a politica, porque nelle não terei perigo de faltar á indulgencia, que é a caridade do espirito, nem á tolerancia, que é a forma de justiça a que eu posso attingir... São essas duas das faces, a que ha pouco alludi, sob que meu espirito crystallisou.

Dizendo as lettras, quero apenas dizer o que ellas pódem ser para mim :o lado bello, sensivel, humano das coisas que está ao meu alcance, a resonancia, a admiração, o estado d’alma que ellas me deixam... Foi a necessidade de cultivar interiormente a benevolencia o que, talvez, me dispoz a trocar definitivamente a politica pelas lettras, a dar a minha vida activa por encerrada, reservando, como vocação intellectual, — a politica não fôra outra coisa para mim, — o saldo de dias que me restasse para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quizera levar na alma..... Olhei a vida nas diversas epochas através de vidros differentes : primeiro, no ardor da mocidade, o prazer, a embriaguez de viver, a curiosidade do mundo; depois, a ambição, a popularidade, a emoção da scena, o esforço e a recompensa da lucta para fazer homens livres, (todos esses eram vidros de augmento)...; mais tarde, como contrastes, a nostalgia do nosso passado e a seducção crescente de nossa natureza, o retrahimento do mundo e a doçura do lar, os tumulos dos amigos e os berços dos filhos, (todos esses são ainda prismas); mas em despedida ao Creador, espero ainda olhal-a através dos vidros de Epicteto, do puro crystal sem refracção: a admiração e o reconhecimento...

 
FIM