Macaé, pequena cidade do litoral da província do Rio de Janeiro, não conhece a vida ativa e estrepitosa das grandes cidades populosas.
Olhando ao longe o oceano que vem, às vezes acovardado e murmurando apenas, às vezes espumando e bramindo estender-se ou arremessar-se na praia donde ela surge, o aspecto da cidade e o do oceano contrastam singularmente.
É que enfrentam o movimento das vagas, quase sempre brusco e violento, e a mais tranqüila quietação; o ruído que por horas de tempestade assoberba-se, avoluma-se e prorrompe em escarcéus medonhos, e o silêncio que de contínuo reina nas ruas e praças pouco transitadas.
Para ligar a vida da cidade e a do oceano só há os navios ancorados, que ficam silenciosos, oscilando ao tom das ondas, de maneira que os seus extensos mastros como que fingem pontes movediças interpostas a ambos.
No dia 26 de agosto de 1855 dir-se-ia que uma inesperada mudança se havia efetuado, trocando-se repentinamente os papéis entre si.
Ao passo que as vagas erguiam os colos azulados a rosear-lhes a orla branquicenta no colorido de uma serena madrugada, a cidade já acordada enchia-se dos sussurros próprios de uma reunião popular.
De toda a parte afluíam cavaleiros e carros de bois, conduzindo famílias, que presto apeavam e seguiam em direção ao mesmo lugar.
Irisavam as ruas as roupas variegadas e vivas dos moradores do interior, e os transeuntes apenas cortejavam-se, sem que nenhum deles reparasse que o outro, quebrando os estilos da boa camaradagem e sociabilidade sertaneja, não fizesse uma longa parada para informar-se por miúdo da saúde e negócios do seu conhecido.
Essa atividade insólita denunciava que toda aquela gente reunia-se para assistir a alguma cena extraordinária, algum desses acontecimentos memoráveis que se gravam indelevelmente na memória dos povos, desinteressada arquivista dos fatos que mais tarde terão de ser julgados pela imparcialidade da história.
Os pontos mais concorridos eram a praça Municipal e a rua que, atravessando-a, vai terminar na praça do Rossio.
No primeiro largo a população afluía, estacionava, engrossava-se agora e para logo rareava, escoando-se para sul e norte pela rua secante.
Contrapondo-se a tamanha atividade, à serenidade expansiva das fisionomias, onde havia o reflexo de um sentimento honesto, o sino da Matriz começava a dobrar por morto.
Esse fato, que destoa dos sentimentos religiosos das populações do interior, ficaria, porém, cabalmente explicado para aqueles que se. acercassem dos grupos, que estadiavam pelas praças citadas e a rua, que na parte norte passava pela cadeia da cidade.
— Homem! eu se vim aqui não foi para regozijar-me com a morte do infeliz; tenho certeza de que ele entrou nisso como Pilatos no Credo.
— O Sr. está falando sério, Sr. Martins?
— Se estou, era até capaz de jurar que ele não mandou matar.
— Ora isto é que é vontade de teimar. Todas as testemunhas foram concordes em dizer que foi ele.
— Então, Sr. Luís de Sousa, se eu for dizer aqui ao Sr. Cerqueira, e este a outro, e a outro que o senhor mandou matar uma família, isto, por si só, é uma prova contra o senhor?
— Valha-me Deus, isto não vem a pêlo. O Motta Coqueiro não está neste caso; era um homem tido e havido por mau em todo o Macabu; malquisto com seus vizinhos sérios e só cercado de homens iguais ao Faustino, um fugido das galés, e o Florentino, o tal Flor, bem conhecido por perverso.
— Os senhores dizem só, mas não apontam os males que ele fez. O próprio Francisco Benedito foi por ele acolhido em sua casa, quando, tendo sido corrido pelo Dr. Manhães, não tinha onde cair morto.
— Agora é que o senhor disse tudo; para o desgraçado cair morto era preciso mesmo ir agregar-se para a casa do facínora, que não só lhe desmoralizou uma filha, mas ainda lhe queria roubar as benfeitorias do Sítio.
— E o que me diz o Sr. Martins acerca da mulher de Motta Coqueiro? interrompeu um novo interlocutor.
— Eu sou da opinião do Sr. Luís de Sousa; para mim, Motta Coqueiro era capaz de fazer ainda mais, principalmente porque era açulado pela mulher, a qual dizia que, para despicar o seu marido, venderia até o seu cordão de ouro.
— Por Deus ou pelos diabos; os senhores falam só e não me deixam falar. Com os diabos, Motta Coqueiro já foi condenado; dentro de uma hora há de ser pendurado pelo carrasco; que eu diga que sim, que os Srs. digam que não, nada lhe aproveita; mas a verdade antes de tudo. Eu não falo por mim. O Conceição é homem à-toa?
— Eu vou com ele até o inferno.
— Pelo menos nunca ouvi dizer que ele não fosse um homem sério.
— Pois o Conceição diz que Motta Coqueiro é inocente no assassinato da família de Francisco Benedito.
— Ora essa! ...
— E então por que não foi ser testemunha da defesa, se ele sabia do fato?
— Não foi, e fez muito bem; eram capazes de dizer que ele também era um dos co-réus, porque o Conceição, como sabem, estava na casa de Motta Coqueiro na noite em que se deu o crime.
— Ponhamos as cousas nos seus lugares, Sr. Martins, interrompeu Luís de Sousa. Ninguém diz que o Coqueiro foi o matador, o que se diz é que ele foi mandante, e não havia de dar as ordens à vista de Conceição. Já vê que este nada pode saber com certeza.
— Sr. Luís de Sousa, eu não quero brigar com você, e por isso o melhor é cortar questões. O Sr. fica com a sua opinião e eu fico com a minha, o tempo dirá qual de nós tinha razão. Eu digo que é falso, é falso, é falso; o Coqueiro não mandou fazer tais mortes; esse desgraçado morre inocente.
Pela conversação a que acabamos de assistir é fácil saber que achamo-nos no dia em que a justiça pública, para desafrontar-se, ou melhor, desafrontar a indignação pública, ia levar ao cadafalso Manuel da Motta Coqueiro, que era geralmente acusado como mandante do assassinato execrando, que exterminou toda uma família à exceção de uma moça, que não se achava no lugar do crime.
A notícia lutuosa correu veloz por todo o Brasil, e todo o povo ergueu um brado de maldição contra os assassinos.
Pedia-se em altos brados, nas reuniões e na imprensa, uma punição famosa, que passasse de geração em geração, atestando que ao menos os contemporâneos, impotentes para reparar o crime, tinham sido inexoráveis num castigo tremendo.
O nome de Motta Coqueiro era proferido com horror e bem assim os dos seus cúmplices, e as mães, ao verem-nos passar, ensinavam às criancinhas a maldizê-los.
O governo provincial e as autoridades locais uniram-se em solícito esforço para a captura dos réus, oferecendo especialmente ao que prendesse o mandante uma quantia com que nunca sonharam os pobres moradores das matas, por onde Coqueiro vagava refugiado; — dois contos de réis.
Entretanto do meio do ódio geral que cercava mais estreitamente o nome de Motta Coqueiro, alguns ânimos benévolos, concordes em amaldiçoar os criminosos, afastavam todavia o seu veredicto da cabeça do principal acusado.
Era desse número o ardente Sr. Martins, que, sempre protestando não aceitar discussões a respeito do assunto geral da conversação, não podia entretanto resistir a não chegar-se aos grupos para lhes ouvir as opiniões.
Homem tão honrado e bondoso, quanto gárrulo, o Sr. Martins naquela manhã discutiu com quase toda a população de Macaé, e o maior número das vezes concluiu repetindo a frase final da sua conversação com Luís de Sousa: É falso, é falso; o desgraçado morre inocente.
Desanimado e entristecido por não encontrar na compacta massa de povo uma pessoa só que concordasse consigo, plenamente, na inocentação de Coqueiro, Martins atravessava rapidamente o beco do Caneca, quando foi detido por uma vigorosa mão.
— Com que o Sr. Martins veio também assistir ao enforcamento da Fera de Macabu?
Estas últimas palavras foram, porém, proferidas com acento tão repassado de tristeza, que o Sr. Martins, sorrindo, abriu os braços e neles estreitou o seu interlocutor, exclamando:
— Até que, enfim, encontro um homem que pensa comigo!
E os peitos daqueles dois homens deixaram que perto batessem por longo espaço os corações, que palpitavam por um sentimento bem diverso do que animava à maioria da cidade.
Quando separaram-se ambos tinham os olhos rasos de lágrimas, e por um movimento acorde correram o olhar em redor.
Aquele olhar na sua tímida expressão traía o temor que ambos, mas principalmente o novo personagem, tinham de ser vistos por alguém; tão grande era a exaltação dos espíritos que atemorizava até a livre manifestação de sentimentos benévolos para com o sentenciado, sem logo incorrer em censura.
— Não é verdade, Sr. João Seberg? O Coqueiro morre inocente.
— É verdade, meu amigo, e ainda agora mesmo acabo de conversar ali com a D. Maria; respondeu Seberg, apontando para uma casa que tinha a porta e as janelas fechadas.
— E a D. Maria é também do número das que se arrebicaram para ver a execução.
— Não é, felizmente. Acaba de contar-me que as suas duas filhas lhe vieram pedir para virem, em companhia das vizinhas, ver este novo assassinato. Negou-lhes a licença e até repreendeu-as fortemente. Ainda agora quando o sino dobrou pela vez, que será penúltima, antes de separarmo-nos para sempre do desgraçado, ela, que estava conversando comigo, empalideceu, mandou que acendessem as velas do oratório, e chamou as filhas para que ao último dobre peçam a Deus que perdoe-nos a cegueira da nossa justiça.
Faz pena a pobre senhora; nem que fosse parenta dele. Só ouvindo-a; ela narra diferentes obras caridosas feitas pelo infeliz Coqueiro, e só interrompe-se para chorar.
— Isto revolta mesmo a gente, Sr. Seberg: ver morrer um amigo inocente e não ter força para salvá-lo.
— E ele que resistia sempre que se lhe queria dar meios para fugir ou... suicidar-se, o que era muito melhor do que ir parar às mãos do carrasco.
— Desgraçado.
— E nem ao menos ver na hora de morrer a esposa, e os filhos, que não se ativeram a estar aqui, temendo que os... enforcassem também.
— É um escândalo!
— É uma requintada infâmia. Obstaram a defesa, dificultaram as provas, andaram com ele de Herodes para Pilatos, e afinal chamaram requintado desavergonhamento aquele grito de desespero, com que ele acabou de responder ao último interrogatório.
Não viram nas barbas e nos cabelos que de todo embranqueceram, na macilenta cor de seu rosto, nas pálpebras sempre entrecerradas, a expressão de um generoso coração, que, talvez conhecendo o culpado, não condenava ninguém.
Adeus, Sr. Martins, rezemos por ele, e que Deus perdoe a quem o faz morrer.
Separaram-se, e o Sr. Seberg, com a cabeça baixa e vagaroso passo, tomou para a banda da praça Municipal. A sua longa barba grisalha caía-lhe na sobrecasaca preta toda abotoada, o seu porte, o seu ar, como que se iluminavam com as cintilações da justiça.
Naquela hora, esse homem severo, completamente vestido de preto, e com o semblante embaciado pela mais sincera tristeza, parecia o latente remorso de uma população inteira, que vinha assistir à tragédia judiciária para mais tarde lavar a nódoa que manchava as vítimas da lei.
De repente Seberg estacou, como que detido por um braço de ferro.
O sino da Matriz dobrava e, na outra extremidade da praça, o povo que se apinhava, encontroando-se, bradava:
Lá vem ele; lá vem ele!
Os gritos que, avassalando o sussurrar perene da multidão, como que chumbaram os pés de Seberg ao chão da praça, sobreexcitavam cada vez mais os espíritos.
Os vários grupos dispersos puseram-se em desordenado movimento. Cada qual queria chegar primeiro ao ponto donde os gritos partiram. Os mais moços corriam rapidamente, e as senhoras idosas, cambaleando aqui e acolá, e praguejando no puro estilo do beatério, aproximavam-se como um bando de gansos espantados.
Os pais e mães, no intuito de darem desde a infância um exemplo à sua progênie, levavam consigo os filhos, e na velocidade de que precisavam dispor, quase que os arrastavam, ao som de ralhos impertinentes.
Toda essa gente apressava-se, corria, aglomerava-se, encontrava-se, e alguns mais imprudentes, querendo a todo o transe romper caminho no mais denso do ajuntamento, provocavam, da parte dos desalojados, violentos empurrões e frases duras, a ponto de ser necessária a intervenção da autoridade para evitar conflitos.
Não foi um rebate falso o que se espalhara.
Já a campainha, tangida por um dos irmãos da Misericórdia, badalejava lugubremente à porta da cadeia.
Pedia-se silêncio e repetiam-se insistentes psius por toda a multidão.
— Ouçamos o pregoeiro! ouçamos o pregoeiro! bradava-se por toda a parte. Esse novo fermento lançado à sôfrega curiosidade de todos, fez com que alguns se destacassem, porque, temendo não poder ver daí o espetáculo, queriam buscar em outro lugar melhor ponto de observação.
O Sr. Luís de Sousa muito interessado em coadjuvar a justiça, quanto estivesse em suas forças, elegeu-se capitão dos retirantes e, suando em bica, bufando e abanando-se com o chapéu, gritava a bons pulmões:
— Vamos para o Rossio, lá o bicho não nos escapara.
Dentro em pouco o Rossio recebia mais um numeroso contingente de espectadores, ansiosos por verem o epilogo desse rosário de horrores, do qual durante três anos esteve pendente a atenção pública.
A praça do Rossio, em que devia ter lugar a execução, estava quase literalmente cheia, e, soturnamente sonora, transbordava esse zunido abafado que derrama o vento atravessando um túnel.
Reinava aí a alegria e o dia esplêndido, todo luz e céu azul, aqui e acolá sarapintado de nuvens alvadias, como que santificava esse regozijo, a não ser que na opulência de brilho um poder oculto tentasse ver se era possível que um raio ao menos penetrasse naquelas consciências.
Abertos os guarda-sóis e reunidos em grupos, os curiosos matavam o tempo comentando as peripécias do crime e do processo, louvando a maioria o bom andamento da justiça.
Um desses grupos chamava a atenção pelo ar de misteriosa intimidade que o envolvia.
Tinha a palavra um moço alto, de compleição fraca, elegantemente vestido, e em tudo diferente dos habitantes do lugar.
— Se eu tivesse influência, dizia ele, obstaria por hoje a execução do Coqueiro.
— Era violar a lei, doutor; o código ordena que a execução se efetue no dia imediato ao da intimação da sentença ao réu.
— Sim, senhor; mas se o réu estiver tão doente que nem se possa levantar, se o réu estiver moribundo?
— Mas eu vi o Coqueiro quando chegou da corte e não me consta ainda hoje que ele esteja em tal estado.
— Pois esteve bem mal esta noite. Cedendo à vergonha ou ao desespero tentou suicidar-se, e para isso serviu-se de um pedaço de vidro com o qual fez um ferimento no pulso.
— E o que faziam os guardas?
— Não será uma fábula inventada pelos amigos?
— Não, senhor, fomos vê-lo, eu e o Dr. Silva, e ambos ligamos-lhe as veias.
— Embora, doutor, ele pode ser conduzido em uma padiola; e eu tenho de que não sairei hoje daqui sem vê-lo pendurado acolá.
Na direção indicada pelo interlocutor estava levantada a máquina sombria da justiça social.
A sua fealdade comovente, brutal encarnação dos sentimentos da população, pavoneava-se, entretanto, com o epíteto honroso de instrumento da desafronta pública.
Todos fitavam-na com simpatia, com estremecimento mesmo, e cada um buscava tomar posição apropriada a tê-la de frente.
Talvez pela imaginação exaltada do povo passassem as imagens das vítimas imoladas à sanha facinorosa dos seus matadores.
Diante da horrorosa construção, a memória popular avivava recordações de outros tempos, ouvidas em serões de família aos pais já finados.
— Ainda hoje isto é bom. Contava-me meu pai, que ouviu ao meu avô, que, no tempo de D. João VI, primeiro o carrasco desmunhecava com um golpe as mãos do padecente e só depois é que ele era levado à forca.
— Era o que esse precisava; eu sigo a letra do evangelho; quem com ferro fere com ferro seja ferido.
O gracejo por sua vez vinha pagar tributo à reunião piedosa de tantos corações justiceiros, que naquele momento se expandiam folgadamente numa espontânea conformidade de sentimentos.
De vez em quando toda a massa popular ondulava, afluía para um ponto e refluía depois.
Era uma voz que se levantava para apregoar que estavam rufando os tambores e que, portanto, em breve se desdobraria o painel ansiosamente esperado.
Serenava o sussurro; as mãos arqueavam-se em torno dos pavilhões das orelhas, e todos tomavam a atitude de quem escuta.
Tamanha ansiedade denunciava bem que, em meio de toda essa gente, não havia quem refletisse no que há de iniqüidade nessa desafronta do crime pelo crime.
A justiça, dinamizando a barbaridade, folga e jacta-se de dar aos descendentes dos ofendidos uma reparação, mas não vê que não será multiplicando a orfandade e o desamparo que ela chegará um dia a trancar as prisões.
A baba do sentenciado cai como indelével mancha negra sobre todos os seus; e não pode haver maior torpeza do que condenar a quem não mereceu a condenação.
Os magistrados e os que mandam executar essas bárbaras sentenças dormem tranqüilamente na paz de uma consciência honesta, porque entregam às mãos do carrasco as pontas da corda ou o cabo do alfanje.
A sociedade por sua vez aplaude, na magistradura e em si mesma, a segurança dos lares e o amor da justiça, no dia em que das alturas da forca pende mais um cadáver.
E todavia parece que há menos torpeza em um homem matar outro, do que em reunirem-se milhares para matar um só.
Não pensavam, porém, deste modo os grupos que estacionavam no Rossio no dia em que se devia executar os acusados pelo assassinato da família de Francisco Benedito.
Ao contrário: havia quase duas horas que do Rossio à cadeia andavam ansiosos à espera de ver consumar-se a execução.
Todas as janelas estavam cheias, e as mulheres, coradas pelo sol e excitadas pelo desejo de emoções, debruçavam-se nos peitoris espiando para o lugar de onde devia vir o préstito.
Um incidente inesperado veio pôr bem patente a aprovação pública ao decreto dos tribunais.
Espalharam-se dois boatos ao mesmo tempo.
Propalou-se que a munificência do poder moderador reservara-se para ir no alto do cadafalso tirar do pescoço dos padecentes o baraço infamante, e assim restitui-los à vida, ao remorso e ao arrependimento.
Ninguém quis dar crédito aparentemente, mas, em consciência, cada um sentiu-se profundamente despeitado e denunciava o despeito repetindo entre um sorriso: não é possível!
Daí a pouco, porém, ajuntava-se um complemento ao boato, e a população alarmou-se seriamente.
Divulgou-se que pessoas fidedignas tinham visto chegar a toda a brida um cavaleiro. Acrescentava-se que o recém-chegado era campista e desconhecido no lugar.
Podia bem ser mais um curioso, mas também podia ser o portador do perdão, visto que o segundo defensor de Motta Coqueiro era residente em Campos e prometera salvar o seu cliente a todo o custo. A notícia inspirou geral desagrado e ouvia-se em todos os grupos unissonamente dizer-se:
— Se fizerem isto, fica estabelecido que podemos de hoje em diante matar a quem nos aprouver, sem que possamos ser punidos. Quem perdoa Motta Coqueiro não pode condenar a mais ninguém.
Ainda os ânimos não tinham sequer contido o choque produzido pelo boato, e já um outro corria de ouvido em ouvido.
Este era ainda mais grave e mais próprio para irritar os justos instintos dos curiosos.
Afirmava-se o primeiro boato, e caso ele se não realizasse, nem por isso o principal sentenciado deixaria de burlar a sentença.
O meio empregado era simples. A corda fora embebida em aguarrás e portanto não poderia resistir ao peso do padecente.
Logo que ela arrebentasse, a bandeira da Misericórdia seria colocada sobre Coqueiro e os seus amigos impediriam a que a execução se renovasse.
— É um atentado sem nome, exclamava colérico o Sr. Luís de Sousa. Mas enquanto eu for vivo, veremos se faz-se ou não se faz justiça.
A última palavra de Luís de Sousa era a que pairava em todos os lábios, e a idéia que motivava a satisfação do povo.
Não se riam, não se alegravam por desumanidade; regozijavam-se crendo que se efetuava uma justa vingança.
Luís de Sousa era a imagem da indignação profunda e dos desejos da multidão, a que acabava de reunir-se mais um espectador.
Era Seberg que, sem saber por que, dirigira-se para o lugar onde lhe estava reservado um golpe tremendo.
Numa das continuas viravoltas que dava, Luís de Sousa esbarrou com Seberg, e comunicava-lhe o ocorrido, quando uma circunstância pôs-lhe ponto à narração.
Os ecos do clarim da força pública anunciavam o saimento do préstito.
A tropa, que estava postada na frente da cadeia, manobrou e dividiu-se em dois pelotões, formando alas à porta da prisão; e alguns soldados de cavalaria, andando a passo lento, começaram a abrir um claro por entre os espectadores.
 porta do malseguro e abarracado edifício, — que desempenhava as funções de calabouço, com exalações insalubres de enxovias sórdidas e compartimentos abafados e sem luz, — um irmão da Misericórdia movia compassadamente uma enorme campa, cujas badaladas tristes como que acordavam a comiseração nas almas dos circunstantes.
Semelhante a um bando de aves agoureiras, tendo pendentes dos ombros os seus balandraus negros, a irmandade da Misericórdia assomou na porta da cadeia e distribuiu-se em paralelas às alas dos soldados.
Alguns dos irmãos, segurando em uma das mãos uma vara de prata e na outra uma sacola negra, lá se foram pelo povo dentro a esmolar para os sufrágios do que ia morrer.
E aqueles mesmos homens, que ainda há pouco indignavam-se com a só idéia da possibilidade de um perdão, concorriam com o seu óbolo para que a religião se incumbisse de redimir na eternidade a alma daquele a quem atribuíam um crime, que justamente revoltava a todos os espíritos bem-formados.
Sublime contradição entre o homem religioso e o cidadão: este consente que a cabeça de um irmão vá ter às mãos do carrasco, aquele dá sinceramente o seu óbolo para que da ignomínia social passe o supliciado às felicidades sonhadas pela crença.
Tanto é verdade que, em consciência, o povo não quer as penas irreparáveis!
Após a confraria apareceu a bandeira santa, outrora símbolo de esperança, a que se dirigiam os olhares do condenado, que ao vê-la, através da memória afogueada pelas saudades da família, dos amigos, do trabalho e da pátria, contrapunha à imagem horrorosa do cadafalso o sonho consolador do perdão.
Mas a lei inexorável condenou desapiedadamente esta esperança, de maneira que é hoje um aparato vão o painel em que a pálida Maria, num abraço estreitado ao cadáver de Jesus, consorcia-se com o filho adorado para a conquista da redenção humana.
A religião no seu painel mostra que possui para as supremas desgraças o supremo perdão; a sociedade com o seu carrasco, alimentado com a lama das enxovias, diz-nos que para as acusações formidáveis ela só conhece o castigo iníquo e irreparável.
Seguia-se imediatamente ao painel um sacerdote tendo nas mãos uma grande cruz, na qual abriam-se os braços e confrangia-se o corpo lívido de um Cristo ensangüentado, cuja face voltava-se para o lado do padecente.
A poucos passos da cruz e lateralmente a ela, vinha o porteiro tendo nas mãos um papel, em que estava exarada a sentença lavrada pelo tribunal contra o réu.
Quando esta parte do préstito passou o limiar da prisão, o enorme derramamento popular, que assemelhava-se a um lago estagnado, tamanho era o seu silêncio e quietação — agitou-se inopinadamente, brotando num surdo murmúrio.
O murmúrio fez-se sussurro e o sussurro intenso rumor e ouviram-se gritos e choros de crianças.
E que na porta do calabouço, vestido com a alva funerária e acompanhado por um sacerdote, acabava de assomar o réu.
O seu nome era Manuel da Motta Coqueiro. Fora, havia três anos, um homem abastado, influência política de um município, um dos convidados indispensáveis nas melhores reuniões; agora não era mais do que um padecente resignado mas tido por perigoso e por isso espionado e guardado solicitamente pela força pública, enquanto que, olhado como um ente repulsivo, servia de pasto à curiosidade vingativa de uma sociedade inteira.
Com o andar vagaroso, porém firme, veio colocar-se no meio da clareira. Acompanhou-o o sacerdote, que em uma das mãos tinha um livro aberto e na outra um pequeno crucifixo.
Aos lados desses dois homens inermes viam-se o carrasco e oito soldados, com as baionetas caladas.
Pairava sobre este grupo a solenidade da morte.
Alto, magro, com as faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande mancha arroxeada, as pálpebras entrecerradas, completamente brancos os compridos cabelos, as sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e as barbas longas de sob as quais pendia-lhe de volta do pescoço até a cinta, em torno da qual se enroscava, o baraço infamante; Motta Coqueiro tinha mais a aparência de um mártir do que a de um celerado.
Cruzados sobre o peito os braços algemados, a cabeça inclinada, os olhos fitos no chão, imóvel no meio daquela multidão agitada, que se colocava nas pontas dos pés para melhor fitá-lo; o seu porte solene, a compostura evangélica do seu semblante, fazia pensar ou na mais requintada hipocrisia, ou no mais inexplicável dos infortúnios.
Ao lado desse rosto, cuja expressão fora amortecida pela desventura, contraste enorme, aparecia o carão negro, estúpido e truculento do carrasco, surgindo de sob o gorro vermelho como um vômito fuliginoso da garganta de uma fornalha.
Fuzilava-lhe nas feições o garbo bestial do crime.
Com a mão esquerda colocada à ilharga e arqueado o braço seminu, espraiava pela mó de basbaques meio aterrorada, o olhar sanhudo, coado através de umas pupilas negras, borradas numa córnea injetada de sangue.
Pelas narinas carnudas e achatadas a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos seus instintos de fera.
Após eles vinham o juiz municipal, revestido com a toga de magistrado, e o escrivão, trajado de preto.
Uma linha de praças fechava o préstito funerário.
O silêncio, instantes quebrado, foi para logo restabelecido e dentre ele só partia o soar agoureiro da campa, tangida em badaladas espaçadas, quando o porteiro começou a apregoar em voz alta a sentença pela qual Manuel da Motta Coqueiro era condenado a sofrer a pena capital, por ser mandante dos assassinatos de Francisco Benedito, sua mulher e seis filhos.
Ao termo da leitura, soaram os tambores e as cometas uníssonos com o badalejar lúgubre da campa, e o préstito desfilou.
Então, à semelhança de uma floresta que é tomada de assalto por um tufão e ao passo que se retorce e anseia, desfaz-se em sussurros e farfalhos prolongados, o povo, movendo-se para acompanhar os personagens da medonha tragédia, enchia o espaço de um ruído confuso.
Era como ouvir-se ao longe o roncar de uma cachoeira.
Contidos por algum tempo pela comiseração, as exclamações, os comentários, as pragas jorravam agora de todos os lados.
Alguns mais exaltados negavam-se à súplica que lhes era dirigida pelos caridosos irmãos da Misericórdia.
Desse número era uma velha, que tendo um dos braços passado ao redor da cintura de uma rapariguinha morena, de olhos esbugalhados e boquiaberta, via passar o préstito, parada a um dos cantos da praça Municipal.
A darmos crédito aos muxoxos que provocava aos vizinhos, a feia da velha era uma dessas beatas impertinentes que não se importam de incomodar aos mais contanto que elas não sejam ao de leve prejudicadas nos seus cômodos.
Quando Coqueiro passava-lhe defronte, a velha enrugando ainda mais as enregelhadas pelancas, que outrora tinham sido faces, taramelou para a companheira:
— Olha aquele pedaço de malvado; vai ali que parece um santinho. Credo! que mal-encarado.
— Oh! nhanhã, coitado, vai tão triste.
— Cala a boca, tola, resmungou a velha, ao passo que apertava um pouco mais o polegar e o indicador na cinta da pequena. — Ter dó dele, te arrenego, tinhoso; é pena que o malvado não tenha no pescoço tantas vidas quantas arrancou, para espirrarem-lhe todas nas unhas do carrasco. Deus lhe perdoe, mas está se vendo mesmo que foi ele.
— Ui! exclamaram noutro grupo, que carrasco tão feio, meu Deus!
— Oito mortes, oito, entre velhos e crianças, a vida dele só não paga. Eu, cá no meu pensar, entendo que se devia fazer o mesmo à família dele, para que ele soubesse se era bom!
— Deus te perdoe, Deus te perdoe! escapava mais adiante ao anônimo popular.
E o préstito caminhava, parando, porém, a todas as esquinas para dar lugar à leitura da sentença.
De cada vez que o préstito parava ouvia-se um como cicio partido dos lábios dos sacerdotes e do condenado.
Uma dessas vezes, pode-se distinguir algumas das palavras segredadas pelo ministro de Deus:
— Confesse toda a verdade, irmão, purifique a sua consciência na hora de comparecer perante Deus.
— Repito, meu padre; não mandei fazer tais assassinatos.
E duas lágrimas tardas e volumosas, dessas que só os hipócritas confessos ou os desgraçados sabem chorar, escorregaram pelas faces cadaverosas do padecente.
Ora envolvido no rufo rouco dos tambores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das cornetas, o préstito seguiu vagarosamente pelas ruas mais concorridas da cidade, até parar em frente à igreja, onde o pregoeiro em alta voz leu ainda uma vez a sentença irrevogável, que devia manchar na cabeça de um homem o nome de toda a sua família.
Parte do préstito já estava dentro do templo; algumas das sentinelas, que custodiavam mais de perto o réu, já transpunham o limiar, quando um incidente inesperado veio pôr em alarma a todos os circunstantes.
Um homem desconhecido, com as faces macilentas, o olhar esgazeado, os vestidos em desordem, e entretanto revelando pelo seu traje, pelo próprio desespero, ser um cavalheiro, rompera à força uma das alas de praças e viera colocar-se em meio do préstito.
Agarrado pelos soldados, debatia-se nas suas mãos, exclamando:
— Deixem-me falar; deixem-me falar!
Os pulsos vigorosos dos agentes puseram-no fora; mas ele, sem conter-se, prosseguia, dizendo:
— Deixem-me falar ao Sr. juiz. Deixem-me! Eu sei...
É fácil imaginar a confusão que nesse instante reinou no interior do templo.
Os espectadores redemoinhavam, gesticulavam, apertavam-se em estreito em torno do desconhecido.
Este, vencendo a onda popular, pode de novo aproximar-se da ala, e caminhava em direção ao magistrado, quando parou repentinamente.
O sentenciado com os cabelos eriçados, a pele pergaminhada do rosto e os lábios contraídos, meio erguidos os braços algemados, fitava no desconhecido um olhar profundo, em que se misturava a súplica e a repreensão.
Todos pasmavam. O desconhecido, como se fosse instantaneamente petrificado, não deu mais um passo; a cabeça pendeu-lhe como que humilhada, ao passo que as lágrimas corriam-lhe em fios.
O juiz ia talvez ouvir o desconhecido mas ao passar pelo sentenciado, este, dirigindo-se ao sacerdote, murmurou:
— Peça que o deixem ir. É um homem de bem; estima-me; queria talvez dizer-me na hora da desgraça algumas palavras de consolo.
O préstito continuou a entrar no templo. Ninguém buscou interrogar aquele homem que soluçava, encostado à porta principal da igreja. Respeitou-se-lhe a dor, porque ela mostrava ser bem profunda e filha de um sentimento generoso.
A tropa descansou as espingardas enchendo o recinto sagrado do barulho produzido pelo choque das coronhas no assoalho.
O sentenciado ajoelhou-se, e os seus lábios começaram a ciciar uma prece, e o sacerdote que desde o incidente empalidecera ainda mais, e tomara um ar ainda mais contrito, ajoelhou-se também.
Ao mesmo tempo o povo que enchia o recinto começou a separar-se abrindo fileiras. Era o desconhecido que, trôpego e banhado em lágrimas, deixara a porta e caminhava em direção à capela-mor.
Chegado junto do altar curvou os joelhos e deixou pender a cabeça sobre os seus frios degraus.
Comovido por esta cena, o sacerdote, inclinando-se para o padecente, disse-lhe: como se desejasse não ser ouvido por mais ninguém:
— Há entre vós ambos um segredo sagrado; eu não o quero perscrutar. Resta-me apenas absolver-vos, meu irmão, em nome de Deus.
— Oh! obrigado, exclamou o sentenciado, que não pôde mais conter as lágrimas, e fitou os olhos amortecidos na imagem silenciosa do Cristo.
As seis luzes da banqueta do altar-mor, meio ofuscadas pela claridade do templo, cobriam de tons sangrentos a lividez do Homem do Calvário.
Dir-se-ia que se trocava um misterioso olhar de inteligência entre os dois sentenciados, e que os seus corações conversavam na lutuosa intimidade de um inaudito sacrifício: tamanha era a expressão do semblante do réu e tão animadora a atitude do divino mártir.
Entre eles estava baqueada a coragem do desconhecido, completando a desolada trindade de um martírio inenarrável.
Cousa singular, desses sofrimentos o que parecia mais sereno era o do moribundo, que de vez em quando levantava os braços algemados para embeber o pano da alva nas lágrimas perenes.
A impressão produzida por este quadro sombrio parecia ter apiedado a multidão, que se mantinha em sincero recolhimento.
Algumas pessoas visivelmente comovidas diziam já:
— Há uma voz que me diz que o Coqueiro não foi o autor dos assassinatos.
A isto objetavam outros, mas a maneira pela qual o faziam: as palavras de que se serviam eram muito mais comedidas.
Para o desventurado estava, porém, marcado o destino e apesar das inocentações de uns, das acusações de outros, dentro em pouco ele devia desaparecer do número dos vivos.
Teriam decorrido dez minutos após a entrada do préstito, quando um prolongado tilintar de campainhas, vindo do lado da sacristia, anunciou que o sacrifício da missa ia principiar.
Logo depois o sacerdote, paramentado com uma casula negra, orlada e listrada de largos galões amarelos, aproximou-se do altar-mor, e, em seguida á genuflexão, exordiou em alta voz o sacrifício pelo introibo in altare Dei.
Os sons enternecedores do órgão espalharam-se como um sopro de melancolia pelo âmbito sagrado.
E o celebrante, acompanhado pelos altos amens e et cum spiritu tuo do sacristão e os soluços angustiosos do desconhecido, prosseguiu resmuninhando o latim do missal.
A educação religiosa dos assistentes tinha neste momento extinguido quaisquer outros pensamentos que não fossem os de respeito pelo ato, que se efetuava.
Havia, porém, um homem em quem a solenidade singela do ofício divino não produzia a menor impressão. Era o carrasco, o monstro negro, que brincava distraidamente com o seu barrete, revolvendo-o entre as mãos.
Estátua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asfalto do calabouço, argamassado com o sangue que os açoutes lhe tiraram do corpo, o desgraçado folgava talvez na sua brutalidade de fera.
Os brancos fizeram dele uma vítima; proibiram-lhe que afinasse os sentimentos pela compreensão exata da família, da religião e da pátria; devia ser-lhe grato poder vingar-se de um dos seus opressores.
Revolvendo nas mãos o gorro vermelho iludia porventura a impaciência que lhe causava a demora da execução.
Negaças de tigre antes de dar o bote à presa.
O sacerdote acabava de rezar o prefacio, e a campainha do ajudante acompanhava a invocação dos santos, quando a campa funerária do irmão da Misericórdia apregoou a retirada do préstito.
O barulho dos que se levantavam para sair perturbou o recolhimento devido ao ato da celebração, e grande parte do povo já estava de pé e de costas, quando a Hóstia, levantada pelo celebrante, alvejou por cima do altar como uma estrela de amor, perdida na escuridão do ódio.
Lá fora rufaram as caixas os runruns contristadores, com que a justiça enluta ainda mais a perspectiva do túmulo; depois o pregoeiro declamou ainda ama vez a sentença, e o préstito seguiu o seu caminho.
A serenidade, que desde a saída da prisão não deixara de iluminar a fisionomia do condenado, persistia inalterada, porém a fraqueza do corpo desdizia a fortaleza do ânimo.
O desventurado quase não andava, arrastava-se; e algumas vezes o sacerdote teve de ir-lhe em auxilio, para que não desse em terra. Outras vezes o carrasco, impacientado pela morosidade do passo, impelia a vitima, que nem sequer dava mostras de censurá-lo por isso.
Já os irmãos da Misericórdia, no desempenho da sua caridosa missão, embarafustavam pelo meio dos curiosos que estacionavam no Rossio, e os soldados abriam caminho para a entrada do préstito.
Motta Coqueiro, desfigurado e trêmulo, ao ouvir os gritos que anunciavam a sua chegada, com a voz entrecortada disse ao sacerdote:
— Aconselhe-lhes, meu padre, que não zombem de quem vai morrer.
— Perdoa-lhes, irmão, eles não sabem o que fazem.
Na embocadura do largo o pregoeiro cumpriu pela penúltima vez o seu dever, e as caixas expandiram-se em rufos prolongados.
Pela cara angulosa do carrasco passou um vago estremecimento, semelhante aos frêmitos elétricos que percorrem os lombos dos tigres, e ao mesmo tempo tomou o aspecto metálico de uma camada de mercúrio.
— Coragem, coragem, meu irmão; é chegado o transe derradeiro; exclamou o sacerdote para o sentenciado.
— Peça a Deus por nós, meu padre.
E caminhou, seguro no braço pela calosa e rude mão do carrasco.
A poucos passos levantavam-se os dois esteios negros que sustentavam a máquina monstruosa da justiça humana.
Se a máquina tivesse alma devia estar bem desvanecida de ver a curiosidade que despertava a sua brutalidade, e procurar atitudes especiais para relevar ainda mais os seus toscos e hediondos contornos.
A parte superior dos esteios era ligada por uma grossa trave, e abaixo, mediando pouco mais da maior altura de um homem, corria um tablado, terminando, de um lado, rente com a face dos esteios.
Do tablado até o chão corria uma escada de degraus estreitos e roliços. Tudo tosco, brutal, como o fim a que era destinado.
Para aí conduziu o carrasco o homem aferretado pela condenação pública.
Ia enfim desdobrar-se a última cena do assassinato legal, esse que, mais digno de reprovação do que os outros, é feito a sangue frio, premeditado nos cômodos de uma cadeira de juiz de fato, de uma poltrona de desembargador, e confirmado pela irresponsabilidade do poder moderador.
Os juizes chegam ao tribunal com os estômagos cheios e os corações afagados pelos carinhos da família; riram ao almoço satisfeitos com a graciosidade dos brincos dos seus caçulas; riram à entrada do tribunal, alegrados pela jocosidade dos amigos; aplaudiram os tropos ardentes da acusação e da defesa e entusiasmaram-se com a arte revelada pelos juristas na elaboração do libelo e do contralibelo, e depois retirados para a saia secreta, submetem os quesitos, não ao critério formado pela sensata apreciação do entrecho do processo, mas aos preconceitos que em suas mentes de burgueses honestos foram arraigados pelos comentários e legendas abortados da ignorância popular, tão oficiosa em cooperar para o mal do próximo, quanto remissa para fazer-lhe bem.
O sentenciado chegara junto ao patíbulo.
Para juntar a ironia à malvadeza, uma bandeja com alguns pratos cheios de confeituras, um cálice e uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso, como símbolo da solicitude social, e da máxima e indizível piedade que vem cevar a vítima antes de imolá-la.
O réu voltou nobremente o rosto à injúria açucarada dos seus matadores, e, ou fosse pela dor que esta afronta lhe causasse, ou fosse pelo terror inspirado pela vizinhança do patíbulo, os joelhos vergaram-lhe, e teria baqueado se não fosse arrimado pelo sacerdote.
Não longe deste grupo uma face negra de mulher banhava-se em pranto copioso. Era o protesto de uma raça contra o procedimento de um de seus membros, por que ao passo que a boa da preta chorava, o carrasco esvaziava um cálice do vinho rejeitado pelo condenado, e apreciava-lhe o sabor dando estalinhos com a língua.
Despertado da prostação, revivido do desânimo pelos soluços da comiseração espontânea daquela mulher, o réu cobrou de novo forças, e voltou-se para a lacrimosa, dizendo-lhe:
— Chora, minha filha, porque eu morro inocente.
Para abafar a voz do condenado as caixas marciais rufaram prolongadamente, e fez-se sinal ao carrasco para começar a sua missão.
O monstro apertou então ainda mais o braço do lívido padecente; puxou-o para si em direção à escada, e colocando-se depois por detrás dele, fê-lo subir os degraus da forca.
Embaixo, os irmãos da Misericórdia e os sacerdotes, reunidos em torno da cruz, puseram o seu estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso arrebentasse a corda.
Era uma vá esperança: a corda fora especialmente mandada por uma autoridade elevada da província, e os abusos da própria confraria inutilizavam a sua intervenção a favor dos infelizes, votados à morte infamante.
O carrasco e o réu tinham chegado ao tablado. O pregoeiro leu pela ultima vez a íntegra da sentença que condenava à morte e às multas da lei o réu Motta Coqueiro, mandante dos assassinatos de Francisco Benedito da Silva, sua mulher, um filho de dezoito para dezenove anos, duas filhas maiores de quatorze, duas maiores de sete e uma de dois para três anos, e finda a leitura, o magistrado ordenou ao carrasco o cumprimento de seu dever.
O negro instrumento da morte, depois de conchegar à cabeça encarapinhada o gorro vermelho, e experimentar com violentos puxões a segurança das algemas do preso, tomou-lhe o capuz, que lhe pendia nas costas, e com ele cobriu-lhe o rosto.
Passou a desenroscar a corda da cintura do padecente e ajustar-lhe o baraço ao pescoço. Feito isto, conduziu o desventurado para uma pequena escada posta entre o tablado e a trave; assentou-o em um dos degraus, e foi prender a corda em dois ganchos de ferro pregados no alto do patíbulo.
Escarranchando-se na trave, ágil inclinou-se e segurando-se nela com um braço, com o outro empurrou violentamente o padecente, tirando de improviso a escada de sob ele.
O sentenciado ficou suspenso pela corda, esperneando, agitando os braços amarrados e balouçando como enorme pêndula.
Deixando então a primitiva posição, o carrasco, voltado para a multidão segurou-se com as mãos robustas na trave e pendurou-se no ar.
Em um dos vaivéns dados pelo corpo do sentenciado, os pés do carrasco alcançaram os ombros daquele.
Colado um pé sobre cada ombro, o monstro carregava sobre o moribundo e impelia-o em largos balanços.
Durante toda esta cena que aterrorava os mais exaltados, o negro executor ria a sua fereza através de uns lábios grossos e roixos.
Talvez sentisse nesse momento a satisfação de Quasímodo quando bambaleava-se no espaço, agarrado às orelhas do sino grande da Notre Dame.
Esta cena durou o tempo imenso que duram sempre as cenas horrorosas; minutos que parecem horas.
A um golpe dado na corda o cadáver do sentenciado bateu em cheio no tablado e o carrasco veio, de um salto, colocar-se sobre ele, carregando-lhe com a mão sobre a boca.
Estava desafrontada a sociedade. Rufaram os tambores, clangoraram as cornetas e o carrasco desceu para recolher-se de novo à fermentação silenciosa dos seus ruins instintos.
A confraria desfilou precedida pela sua bandeira e fechada pela cruz, onde a cabeça descorada do Cristo parecia ter-se inclinado ainda mais.
E que, desfeando-a, na história da humanidade redimida negrejava mais uma iniqüidade.
Uma hora depois, a praça do Rossio e as ruas principais de Macaé estavam completamente vazias e a cidade recaía no seu silêncio habitual.
No tablado do patíbulo viam-se, porém, quatro homens vestidos de luto, e com um sincero recolhimento colocavam dentro de um caixão mortuário o cadáver do justiçado.
Eram os amigos de Motta Coqueiro que tinham obtido da justiça, para dar a uma cova, os restos que ela condenaria à vala comum.
O desconhecido, que era um dos quatro que seguravam nas argolas do caixão, ao pousá-lo na beira da cova, disse para Seberg, que chorava: — Foi um homem de bem às direitas; e se alguns erros cometeu, o último ato de sua vida paga-os de sobra.