Ao voltar ao sítio o feitor foi recebido por uma repreensão áspera de Motta Coqueiro.
É que, saindo precipitadamente, esquecera de que dispunha de horas de trabalho, consagradas a uma séria obrigação — fazer a revista.
À noitinha os pretos vindos da roça depuseram na cozinha os feixes de lenha, e encostando os machados e as enxadas da parte de fora, postaram-se em linha no terreiro.
Depois de esperar por largo tempo, a conselho de Fidélis, levantaram a saudação usual: — louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Só então Motta Coqueiro apareceu na janela, e admirando-se de não ver Manuel João, responderam-lhe que ainda não tinha chegado em casa.
— Ele não esteve assistindo ao serviço? perguntou Coqueiro.
— Já há muito, respondeu Fidélis, que quando o senhor vem embora, seu Manuel João acompanha o senhor.
— Está bom; podem ir.
A delação era grave e a censura foi-lhe proporcional, mas nem assim alterou o bom humor em que ficou o feitor depois da consulta ao astucioso violeiro.
Sentado à soleira da porta, cousa que não fazia havia tempo, Manuel João pôs-se a tocar viola, cantarolando quadras amorosas, até que veio interrompê-lo o moleque Carlos, que lhe trazia a ceia.
— Olé, exclamou o moleque, seu Manuel João está adivinhando passarinho verde.
— Mais respeito, seu vadio, nós não somos da mesma igualha.
— Já estou na moita, meu branco, disse o moleque e já se fazia de volta, quando o feitor agarrando-o por um braço inquiriu-lhe sobre novidades.
— Tudo velho, respondeu Carlos, hoje é que eu hei de ver cousa nova.
— Boa ou ruim?
— Eu quero ver para acreditar; tia Balbina diz que viu lá na baixada, quando foi procurar uma erva para Carolina...
Pelas palavras de Sebastião, ditas em segredo, e a última resposta do Viana, o feitor suspeitou qual seria a visão da Balbina, e como não lhe conviesse que o segredo fosse aos ouvidos do amo, tratou de dissuadir o moleque.
— Balbina é uma tonta, disse ele, pode ser peta e você perde o tempo.
— Qual peta, seu Manuel, ela diz que viu uma das filhas de seu Chico entrar.
— É que ela estava passeando.
— De noite? Sozinha? Al! que seu Manuel João é o meco, atinei!...
— Mau, mau! faça ponto na graça, e já lhe digo que estas cousas não são da sua conta.
— Mas foi vosmecê quem me mandou que espiasse...
— Mas é então o senhor? interrompeu o feitor sobressaltado.
— Qual senhor, nem meio senhor; pobre do velho.
— Está bom, Carlos, você está se adiantando demais; fica o dito por não dito.
Carlos nada respondeu, mas ao sair passou a mão pela cara e depois agitou-a brandamente no ar, voltando-lhe a palma para a casa do feitor.
É o sinal de que se servem os roceiros para dizer que vão tirar desforço da ofensa que lhe foi feita.
Simples mímica da vingança, ela é muitas vezes o começo de uma complicada trança de ardis, cada qual o mais temível, até chegar muitas vezes a um desenlace fatal.
Manuel João ficou visivelmente preocupado com as palavras do moleque; tinha certeza de que à comunicação deste fato a Motta Coqueiro, que sabia da sua amizade com a família do agregado e podia dar-lhe a autoria, seguiria como conseqüência a perda da feitoria, já iminente.
Depois da ceia, começou a medir a passos lentos a sala, andando de um para outro lado, e afinal saiu cautelosamente. Rodeou as senzalas aplicando-lhes o ouvido às paredes, principalmente na em que residia Balbina.
Reinava completo silêncio, ninguém podia vê-lo nem interrogá-lo, a não serem as minadas de estrelas que tremeluziam no céu, e os vivos e rápidos meteoros que se despenhavam de vez em quando, mudas interjeições de luz, que talvez Deus enviava dos céus aos arcanos daquele espírito.
Certo de que estava só, o feitor dirigiu-se para a baixada.
Quando estava perto, deitou-se na relva e, rastejando, chegou até o cajueiro, pelo qual trepou ligeiro, tomando entre a ramagem uma posição onde não podia ser visto.
Aboletado no seu escondrijo, não tardou muito que se visse obrigado a desalojar-se. Um vulto apareceu da parte oposta e para aproximar-se da baixada serviu-se do mesmo expediente posto em execução pelo feitor. Mas em vez de entrar no ponto da entrevista, o vulto arrastara-se até uma pequena moita próxima e conservara-se deitado.
— É ele, pensou o feitor, e chamou a meia voz. ó Sebastião, ó Sebastião!
Longe de obter resposta, reparou que o vulto tentava esconder-se cada vez mais entre os arbustos.
— Que patife, resmungou o leitor, até a mim quer enganar, finório! .
À proporção que falava, o feitor deixava-se escorregar pelo cajueiro, e, na firme convicção de que era o violeiro que por gracejo buscava esconder-se, rastilhou em direção à moita.
Dentre a moita o vulto surgiu arrastando-se imperceptivelmente e quando Manuel João chegou ao lugar em que ele se achava, não o encontrou mais, nem pôde descobri-lo quer no escondrijo, quer ao longe no campo.
A natureza supersticiosa do feitor acordou-se então em sobressalto, porquanto entendia ele que era impossível a quem estivesse oculto na moita desaparecer ante seus olhos.
Demais o ar há pouco inodoro impregnava-se agora de um intenso cheiro de arruda, a planta predileta do demônio.
Assoviando baixinho, para dissimular o susto, o feitor subiu a encosta da colina e tomou o caminho que costeava os fundos da casaria.
De espaço a espaço olhava para trás, impressionado com o som dos próprios passos, e por fim trocou o trilho pelo gramal, que lhe abafava o ruído do caminhar.
Só cobrou ânimo quando chegou ao casarão em que morava o Chico Benedito.
Encostando-se à parede, tirou do isqueiro e pôs-se a ferir fogo, e, uma vez aceso o cigarro, foi apalpar a porta dos fundos e depois a de uma janela, que olhava para a banda da baixada.
Com grande espanto seu, sentiu que a janela cedia ao leve impulso que lhe imprimira, e abria-se com o fino guincho das dobradiças sem óleo.
O feitor estremeceu como se o percorresse um calafrio. O que não se pode dizer é se ele atemorizara-se ou se relutava contra algum desejo de súbito incendido.
A qualidade do ofício que tinha no sítio impunha-lhe até como dever esse percurso no turno em volta da casaria, e o amo que saísse fora e o encontrasse ali, não podia censurá-lo, antes teria motivo para elogios.
A janela aberta explicava-se facilmente; para isto bastava dizer a verdade, e o resultado seria uma profusão de agradecimentos.
Mas nem por isso a posição do feitor era menos embaraçosa. O que havia de fazer? acordar a família? prender a janela por fora?
A notícia, dada a Francisco Benedito, seria motivo para uma explosão tremenda contra as filhas; subir ao peitoril para daí puxar a porta da janela e prendê-la, era demasiado arriscado.
Se passasse alguém e encontrasse-o em tal posição, não atribuiria por certo a uma idéia nobre o que visse, e a difamação corresponderia à expulsão do sítio.
O feitor recuou involuntariamente, mas como se obedecesse a uma força mágica de atração veio novamente colocar-se junto à janela.
Aí conservou-se a princípio em uma imobilidade de montanha, contendo a respiração, para depois exalá-la numa onda. Era a estátua da voluptuosidade profanando com o seu hálito o santuário do pudor.
O cicio do resfolegar das moças, que dormiam no quarto, derramava-se no ambiente numa cadência mágica, e, se pode dizer adesiva.
A mão aveludada e macia que se esmera numa carícia, o olhar meigo que se enlanguece numa súplica, ou se abandona num consentimento, o lábio que se entrega morno de amor, são fontes de delírios indizíveis, de sonhos inenarráveis. O respirar da mulher amada, ouvido pelo amante, fala primeiro à imaginação, penetra-o suavemente de uma sensação que tem alguma cousa de angélica e ao mesmo tempo de infernal. Como um condensador elétrico atrai e repele; é ao mesmo tempo um incentivo à afoiteza e um anteparo à resolução. Faz pensar ao mesmo tempo na profanação e no cavalheirismo, e envolve o espírito em uma rede incômoda onde se misturam, matizados pelo mesmo colorido, fios que nos guiariam ao crime, a outros que nos levam até a abnegação.
É que se imagina que o hálito exalado vem impregnado dos anseios do coração amado, das imagens que lhe povoam o cérebro, que desejamos se estreite para tudo mais que não seja o pensamento do nosso amor; e esse imaginar sobreexcita-nos o egoísmo, que conta com o perdão e atreve-se por ele, ao mesmo tempo que a consciência levanta-se tentando combatê-lo e vencê-lo.
A pouco e pouco o feitor foi movendo-se, a princípio tomou a posição de quem escuta, mas logo desejou mais do que ouvir. Colocou a cabeça sobre o peitoril e pôs-se a olhar.
A tíbia claridade da noite deixava apenas perceber a alvura dos lençóis aderidos às curvas formadas pelos corpos das adormecidas, mas a fantasia, esse clarão indiscreto que inunda os mais recônditos arcanos, esta divisou talvez mais, muito mais.
Gradativamente erguendo-se o feitor chegou a colocar até meio corpo dentro da janela, e a firmar-se nos pulsos, para realizar o salto dentro do quarto, mas o estalar das articulações obrigou-o a descer sobressaltado, e a recuar de novo.
Arrastou-o, porém, a vertigem do crime, e resoluto voltou ao lugar de onde saíra.
Apoiando-se então afoitamente sobre os punhos e erguendo-se vagarosamente, sentou-se no peitoril. Então levantou jeitosamente as pernas para passá-las pela janela. Mas a extrema cautela não pôde prevenir um desastre; as pernas bateram na porta da janela e esta foi, guinchando, esbarrar na parede. O miserável escalador conteve-se em meio do salto e atirou-se para fora precipitadamente.
Uma palavra, um grito podia perdê-lo aos olhos de Motta Coqueiro e este, se sabia relevar com brandura, sabia também punir com severidade.
Levantando-se de pronto, o feitor deitou a correr como se fora perseguido.
Entretanto só o perseguia a consciência da infâmia que tentou levar a efeito.
Meio acordadas pelo barulho, as moças apenas revolveram-se nos leitos, voltaram-se e continuaram a dormir.
Na carreira que levava, o feitor costeou sem tropeço o casarão e a casa grande, mas, ao sair do vão entre esta e a casa em que residia, foi obrigado a deter-se.
A luz que saía de uma das senzalas, cuja porta estava aberta, deixava ver um vulto de mulher.
O cansaço embargou por algum tempo a voz do corredor; demais, falar era no mesmo instante dar lugar a uma suspeita contra si, caso alguém da família de Chico Benedito houvesse acordado ao barulho que fizera na escalada.
Por outro lado a autoridade que exercia no sítio obrigava-o a falar, sob pena de ver perdida a sua força moral.
Depois de descansar um pouco, Manuel João caminhou ainda arquejante até à porta da senzala, e dissimulando o espanto com uma admiração, fingidamente benévola, perguntou:
— O que é que você faz aí, tia Balbina?
— A negra perdeu o sono, veio sentar na soleira da porta, para ver o céu de Deus.
— Mas por que é que você perdeu o sono? não trabalhou hoje, não é? amanhã há de ser dobrada a doze.
— A negra veio cansada, sim, e foi para a sua cama dormir. Mas o canto da coruja veio com seu agoiro tirar o sono de Balbina. A lembrança de Carolina, que foi quase morta parar nas mãos do doutor, veio apertar o coração da negra. A pobre da crioula devia ter um filho bonito, e o filho vai morrer também. Balbina, que sabe, tem pena de mãe e de filho, e a negra chorou e não pôde dormir.
— Está bom, tia Balbina; veja se vai dormir.
No timbre da voz de Manuel João traía-se uma profunda angústia; era um soluço do remorso articulado no tom da bonomia.
Balbina, porém, não apiedou-se do sofrimento que percebeu e replicou-lhe pela ferocidade de uma ironia cruel:
— Vosmecê pode dormir, porque nada tem com a crioula, nem com o filho dela; Balbina, não; ela estima Carolina como se fosse sua mãe.
Manuel João calou-se e seguiu para a sua morada. Quando a luz do candeeiro deixou verem-se-lhe as feições, havia nelas o cunho da extenuação e do sofrimento.
Os sucessos da noite enchiam-no de um pânico supersticioso; vigiava-se como se julgasse seguido e não ousava apagar o candeeiro.
Num contínuo vaivém, o desgraçado ora apertava a cabeça entre as mãos, ora segurava a larga faca polida, que lhe pendia da cintura, e brandia-a.
Adivinhava-se que aquele espírito nutava entre o suicídio e o remorso.
Num acesso de fúria o feitor, com os olhos injetados de sangue, os lábios e as mãos trêmulos, segurou, entretanto, resolutamente da faca, que parecia fasciná-lo.
Olhou para o teto e em seguida levantou o braço tendo a ponta da faca voltada contra o peito; mas o instrumento assassino caiu-lhe da mão e o desgraçado caiu sobre um mocho, colocado junto à mesa, e escondeu a cabeça entre os braços.
Entre o silêncio gemeram os pios agoureiros da coruja.
Sobre tamanha angústia a noite passou descuidosa, como a criança que brinca junto de um leito de moribundo. É que a natureza é surda e cega para a pequenez humana: carregada de sombras ou inundada de luz, a vida do soberano dos seres criados não desvia uma linha a prescrita ordem da criação.
Para recompensar-nos ou punir-nos só nos resta a serenidade do bem ou as torturas do mal que praticamos.
O céu ou o inferno edificamo-los nós mesmos diariamente a jorros de honesto heroísmo ou a golpes de infame covardia: para o primeiro a consciência, tranqüila, nebulosa, cria as constelações da paz e da virtude; para o segundo espessa-nos a memória as trevas relampeantes do remorso.
Ao romper do dia ninguém poderia dizer quão amargurosas tinham sido as horas da noite para o contraditório caráter do feitor.
Despertado ao torpor, que o avassalara, pelo barulho dos escravos, Manuel João acompanhou-os até o terreiro com aparente bom humor, levando o seu recalcar de sofrimentos ao ponto de sorrir benevolamente à repetição da censura, que na véspera lhe havia sido feita pelo amo.
Este ordenou-lhe que no mesmo instante desse providências para começar o carreto das madeiras, a fim de serem embalsadas por Francisco Benedito, seu filho e outros empregados que mais tarde contrataria.
Ao concluir a ordem, Motta Coqueiro, misturando a aspereza à longanimidade, disse para o feitor:
— Mas veja bem, Sr. Manuel João, é preciso não perder tempo; não faça como ontem.
— Um dia não são dias, respondeu-lhe Manuel João, e meu amo o verá.
Desde esta hora a gente do sítio pôs-se em atividade e quando o sol a pino elevava intensamente a temperatura do ambiente, os bois já não eram vistos, ruminando tranqüilamente à sombra das árvores anosas; ao contrário,
com os músculos distendidos, as grandes e roxas línguas pendentes, as grossas ventas desmesuradamente abertas, caminhavam a passo lento e regulado, arrastando após si imensas zorras, que sulcavam o campo ao peso de enormes toras falquejadas.
Na casa de Francisco Benedito o dia correu através de comentários acerca da janela aberta.
A maioria opinava por uma explicação muito natural aos espíritos educados na mais grosseira superstição.
— Isto, dizia a velha, há de ser aviso de algum conhecido que morreu ou não tarda muito a morrer.
Chiquinha, porém, conservou-se impressionada desde o amanhecer, e sendo naturalmente risonha, não tivera uma expansão durante o dia.
— É muito medrosa esta Chiquinha, diziam-lhe as irmãs, ficou com medo do tutu.
Nem o gracejo, nem os carinhos das irmãs conseguiram dissipar a tristeza da moça que, no isolamento, chegava até as lágrimas.
Numa das ocasiões em que achava-se só, Chiquinha depois de absorver-se em prolongada meditação, ao enxugar as lágrimas que lhe borbulhavam, exclamou resolutamente:
— Não quero mais enganar os meus; vou acabar com isto.
No dia seguinte devia começar a executar-se o contrato feito entre Motta Coqueiro e seu compadre, para o embalsamento da madeira, e o fazendeiro foi portanto lembrá-lo ao agregado.
— Amanhã não me falte, está ouvindo, compadre? eu tenho pressa do trabalho.
— O compadre está desejoso de matar saudades, mas olhe que não há tanto tempo assim que ficou sem a comadre.
— É isto, mas também outras razões, e eu quando for agora para Campos não torno cá tão cedo.
A família de Francisco Benedito, que assistia à conversa, interveio então para mostrar-se penalizada com a nova. Antonica levou, porém, a demonstração de pesar a tal exagero, que não passou despercebido a Motta Coqueiro.
Conhecedor dos seus agregados e do comum dos roceiros nas mesmas condições, Motta Coqueiro, reatando a conversa, dirigiu-a de modo que pusesse bem patente as suas intenções.
— Este trabalho que faz-me grande conta, disse ele, é também um adjutório que o compadre tem para fazer a sua casa. Eu vou-me embora, e o compadre bem sabe o que são negros; em eu voltando as costas pintam a manta por aqui.
— Lembra muito bem, compadre, eu tenho de ir hoje ao Viana e lá falarei com ele sobre o negócio.
Depois do jantar Francisco Benedito disse a sua mulher que ia à venda buscar provisões.
— Vamos agora para o serviço do compadre, e ele é amo com quem não se brinca; começada a obra não há arredar pé.
Pouco depois da saída do pai, Antonica pediu a sua mãe que a deixasse ir até a casa grande falar com a Isabel cozinheira, que lhe ficara de dar uma camisa, para fazer-lhe por ela uma gola de crivo.
— Eu quero ver se mando vir pela canoa um vestido para o Ano Bom, e quero segurar estes cobres, mamãe.
A velha mãe não opôs obstáculo ao pedido da filha.
Motta Coqueiro estava sentado na sala de jantar da casa grande, quando Antonica passou tão apressada como se não desejasse ser vista.
— Então vai fugida, perguntou ele; parece um pé-de-vento.
— Vim falar com a Isabel.
— Então não perca tempo; faz-se noite e por aí andam lobisomens.
— Que me importa, respondeu a moça; é cousa de que eu não tenho medo.
Antonica passou pelo fazendeiro e entrou pela primeira porta. Depois de algum tempo, quando talvez Motta Coqueiro já não pensasse nela, a moça apareceu na porta do corredor; e disse com voz suavemente modulada:
— Isabel foi buscar uma camisa para servir de molde à que ela quer que eu faça.
Motta Coqueiro, que estremecera ao ouvir as palavras de Antonica, voltou-se entretanto, disfarçando a comoção, exclamou com intimidade:
— Ah! você faz camisas para vender; eu hei de lhe mandar pano para você fazer-me também uma de peito bordado.
— Ora, seu capitão tem muito quem faça, não precisa de uma matuta feia.
— Não pregue mentiras que é o que é feio.
— Então eu não sou feia? E como é que ninguém gosta de mim?
— Ai! que você é uma grande mentirosa, Sra. Antonica. O seu pai já disse-me as cavalarias altas que lá vão por casa com o... o... Para que está ficando vermelha; levante os olhos, deixe o lenço sossegado... Ah! sonsinha.
Antonica experimentou, de feito, uma sensível mudança quando Motta Coqueiro revelou-lhe que sabia de seus esponsais com o vendeiro.
Com os olhos baixos, as faces em brasas, e as mãos a enrolarem as pontas do lenço, que lhe cingia o pescoço, a moça estremecia como se fora presa de renitentes calafrios.
Não querendo aumentar a perturbação de Antonica, o fazendeiro calou-se. Entre eles estendeu-se o silêncio elétrico que precede as grandes explosões do coração, como o relâmpago precede o fulminar do raio.
Juntava-se a este silêncio a solidão e melancolia do crepúsculo a cercarem esse encontro inesperado.
Como se copiasse o palpitar contido daqueles corações, um velho relógio de parede movia a pêndula, batendo compassadamente.
Antonica foi a primeira a romper o silêncio, e, dando à voz a brandura da pelúcia, ponderou:
— Mas se o seu capitão quiser eu não me caso.
— Eu, filha? Eu nada tenho com isto.
— Nada?! perguntou ela admirada.
Mas a compreensão de Motta Coqueiro não iluminou-se apesar de ouvir esta dolorosa interrogação, em que a moça parecia haver encarnado a alma inteira.
Nesta simplíssima palavra encerrava-se toda uma história de padecimentos indescritíveis, e expandia-se a confissão queixosa de um segredo, que ninguém jamais percebera, guardado pela mais refletida precaução, calculado hora a hora para coroar-se com a vitória.
Entretanto uma desilusão amarga, fria e acerbamente repreensiva vinha malograr todo o trabalho de longo tempo, e esvaecer a esperança que morosamente fecundara-se, e, crescendo dia a dia, olhava como certa a realidade.
Durante todo esse padecer o coração de Antonica, fugindo de exibir-se à luz, só uma vez não pôde conter-se e deu forma aos seus sentimentos.
Foi na noite festiva de Santo Antônio quando o violeiro pronunciou desatenciosamente o nome de Motta Coqueiro.
Nesta mesma ocasião, porém, mascarou com a gratidão o seu amor, e teve daí em diante força para não permitir nunca a mais leve franqueza a sua paixão, que para satisfazer-se não mediria conseqüência, não obstante procurar esmagar-se de encontro a um casamento de conveniência.
Para dissuadir-se e esquecer-se, aproveitava a ausência de Motta Coqueiro, as quebras temporárias do magnetismo do seu olhar, para dar ouvidos e provocar os galanteios de outrem.
Assim era que tinha animado os desejos de Viana, saindo-lhe ao encontro com uma lisonja, e favoneando-lhe a esperança com um medido abandono.
Mas esta resolução inconsistente e aérea desaparecia logo, e a moça recaía no tédio e na abstração.
Era tão zelosa do seu ideal, que percebia ao longe a mais imperceptível sombra que se dirigisse para ele; e só ela interpretou quanto havia de travoroso na ironia do violeiro, apreciando a demora de Chiquinha e do capitão.
Naquela alma tão trabalhada, e que de repente viu-se forçada a quebrar o sigilo que se impusera, o despeito chegou até a alucinação.
A princípio quedou imóvel com a cabeça encostada à ombreira da porta, mas em seguida caminhou para Motta Coqueiro.
Santificava-lhe o desalinho das feições a solenidade da tristeza e recatava-lhe a desenvoltura da frase a eloqüência da dor.
— Então, disse ela, não se importa que eu me case com outro; não vê que eu não quero, que eu não serei feliz? Não tem nada para me dizer; nada? nada?
Motta Coqueiro levantou-se estupefato; esta cena era tão inesperada que ele temeu que estivesse diante de uma louca, e só pôde dizer a Antonica:
— Pois se você tem tanta aversão a este casamento não ceda, minha filha; deixe estar que eu falarei com seu pai e hei de protegê-la.
Ao dizer as últimas palavras um dos braços do fazendeiro tinha cingido a moça que soluçava.
Antonica deixou pender a cabeça sobre o peito de Motta Coqueiro, e levantando para ele os grandes olhos negros, murmurou:
— Sim, sim, não deixe; eu lhe juro, não gosto dele.
— Descanse, filha, descanse, seu pai não há de obrigá-la; você há de casar com quem quiser.
— Se seu capitão soubesse, continuou Antonica, as dores que eu tenho passado, como tenho escondido de todos o que eu sofro! Ninguém pode desconfiar apenas. Eu tinha medo de lhe dizer; vosmecê me estima só como a uma criança, e não vê...
— O que é que eu não vejo, Antonica...
Como uma fera, que, sendo desapiedadamente fustigada, avança contra o agressor, mas é contida no ímpeto pelos ferros da jaula; assim enraivecida, Antonica, levantando os punhos cerrados e rangendo os dentes, fitou os olhos esgazeados na face pálida de Coqueiro, que recuara instintivamente.
A moça quis falar, mas não pôde; tentou avançar, e caiu arquejante e lívida.
Entre o susto e a piedade, o circunspecto fazendeiro tomou-a nos braços, e os lábios pousaram na fronte descorada de Antonica.
Depois conduziu-a para um canapé que estava próximo, e deitou-a, pousando-lhe a fronte sobre os seus joelhos. Era um pai velando uma filha doente.
— Não tem culpa do que faz, murmurou Coqueiro, depois de contemplá-la longamente; é a inexperiência que a impele.
— É a ingratidão que me mata, respondeu Antonica, e, levantando-se de chofre, saiu sem lançar sequer um olhar ao seu honrado guardador.
Apenas Antonica saiu, uma voz vinda do corredor que desembocava na sala perguntou humildemente:
— Senhor, quer que acenda o candeeiro?
— Deixa-me com mil demônios, patife; ninguém te chamou cá, respondeu Coqueiro.
A extemporânea pergunta, que dizia claramente que alguém tinha presenciado pelo menos o final da cena que procuramos descrever, era feita pelo malicioso Carlos.
O diabrete negro tinha visto Antonica entrar na casa grande e veio disfarçadamente colocar-se, a princípio, numa saleta próxima à sala de jantar, e em seguida pôde esconder-se por detrás da porta, que separava esta última sala do corredor, e daí espreitou quanto se passava.
A curiosidade guiara-lhe os passos e ele regozijou-se interiormente, certo de que a narração do que vira lhe reconquistaria a familiaridade rendosa do feitor.
— Moleque, gritou Coqueiro, depois de algum tempo de silêncio.
O moleque com os braços cruzados sobre o peito veio postar-se diante dele.
— Ouve bem, continuou o senhor, só vosmecê entrou aqui a esta hora; se uma palavra só, das que se disseram aqui, for sabida, eu mando-te surrar e atiro-te para a enxada; não serás mais meu pajem.
Carlos afastou-se silencioso.
Antonica entrou em casa fingindo-se extremamente contrariada com a escrava a quem acusava de tê-la feito esperar por muito tempo e finalmente adiar para o dia seguinte a solução do negócio.
O ardil produziu o desejado efeito, porque ninguém reparou na desfiguração que lhe causara a violência das paixões eruptas durante a malfadada entrevista.
A fortuna, que ainda havia pouco lhe fora tão adversa, protegia-a agora milagrosamente, proporcionando-lhe meios de esconder o seu sofrimento.
Chiquinha, dizendo-se indisposta, retirou-se para o quarto; Mariquinhas fora para o interior da casa preparar o trem para fazer o café para o seu pai, quando voltasse; o irmão era o companheiro obrigado do velho; e a religiosa mãe de Antonica, assentada a cochilar numa banquinha de costura, quitava-se com a Virgem, de quem era devota, desfiando em o seu louvor o rosário de grandes contas negras.
Para poder dar curso às lágrimas, que não se continham, a moça sentou-se a coser junto à velha mesa da sala.
Seriam oito horas da noite quando Francisco Benedito, empurrando estouvadamente a porta, entrou em casa, gritando com voz arrastada:
— Oh com seiscentos: já dormem por aqui, suas malandras?
Antonica e Mariquinhas, deixando os seus trabalhos, vieram beijar a mão ao pai, e a velha resmungou lá no seu canto:
— Ave Maria, que modos estes, seu Chico.
— A água é que já estava lá dentro ressonando de tanto ferver; ronca como peão dormindo, acrescentou Mariquinhas.
— Bico, sua poeta; não seja respondona; eu quando falo é porque sei; onde está Chiquinha?
— Está doente, papai.
— Diga-lhe que o Sebastião esteve comigo na venda e quer os enxovais prontos para o Natal, senão vai tudo raso.
As moças afastaram-se e Chico Benedito foi atirar-se sobre um mocho como um corpo inerte.
O abuso das bebidas alcoólicas tinha-o posto no lastimoso estado de não poder perfilar-se, e a língua trôpega mal podia prestar-se à fala, que era justamente o sestro do agregado, quando se embriagava.
— Oh! senhora, exclamou ele para sua mulher, isto por aqui não me está cheirando bem. Ainda agora o Viana pregou-me lá um sermão de quaresma por causa da Antonica, e disse-me que amanhã quer fechar o negócio; ou casa ou não casa!
A velha nada respondeu; continuava pachorrentamente a rolar entre os dedos as contas do seu rosário.
— Oh! rapariga? bradou Francisco Benedito, deixa lá esta costura e vem para o pé de mim.
Antonica obedeceu e colocou-se junto ao pai que, segurando-lhe das mãos, continuou:
— Olha bem para teu pai; amanhã há de vir cá o Viana, você não se ponha com piegas; trate-me bem ao rapaz, senão ponho-te pela porta fora, porque não estou para desaforos. Fica entendido; ponho-te os quartos na rua. Pode ir...
Estas últimas palavras foram acompanhadas por um safanão brutal e Antonica silenciosa voltou para a sua costura.
— O que foi? perguntou lá dentro a boa Mariquinhas ao seu irmão.
— Ora o que havia de ser, histórias do casamento. Papai falou com o Sebastião e o Viana para ajudarem a fazer a casa e Sebastião disse que sim, contanto que pelo Natal ele havia de estar com Chiquinha em seu poder, e o Viana fez uma cama de Antonica.
— Veja só este papai; então Antonica é que há de ir ver seu Viana lá na venda.
— Eu não sei, o que eu ouvi foi o Viana dizer que papai já deve na venda vinte mil réis de mantimentos e que, se Antonica não tem de ser dele, quer o seu dinheiro, porque não está para trabalhar para o bispo.
— Esse desavergonhado; e tem uma carinha de santo; eu se fosse papai não queria mais que ele casasse com a mana.
— Ainda você não sabe tudo; ele disse que, se Antonica não quiser casar com ele, haja o que houver, ele há de mandar citar papai e fazer penhora nas benfeitorias; do céu venha o remédio.
Mariquinhas, depois de ter servido a seu irmão, foi à sala levar o café a seu pai, que continuava a repreender severamente a mísera Antonica.
Então pôde confirmar a exatidão das palavras de seu irmão, porque ouviu a Francisco Benedito esta frase expressiva:
— E sabe o que mais, minha malandra, lá está uma conta de vinte mil réis, que vocês comeram; eu não tenho dinheiro agora; o que vou receber do compadre é para a casa; senão quiser casar com o Viana, você tem um remédio, pague-lhe os vinte mil réis.
— Vão para dentro, meninas! gritou a velha mãe, ao passo que tomava a xícara das mãos de Mariquinhas. Você também lembre-se que tem de trabalhar amanhã, seu Chico, ou eu mando chamar o compadre.
Depois de rogar inúmeras pragas, e romper nas mais torpes obscenidades, Francisco Benedito caminhou cambaleando para o seu quarto, e enfim a casa caiu em absoluto silêncio, à exceção do quarto em que dormiam as moças.
Aí ouviam-se soluços abafados, mas perenes; era a desditosa Antonica, que encostada ao braço da marquesa pranteava inconsolavelmente.
De manhã, ao levantarem-se, suas irmãs encontraram-na no mesmo lugar; dormindo o sono da extenuação.
Apesar do cuidado das moças para não acordarem-na, Antonica estava de pé dentro em pouco.
Cobria-lhe o rosto uma palidez mortal, mas os seus olhos não tinham lágrimas, nem uma queixa sequer escapava-lhe dos lábios.
Pelas dez horas da manhã só Antonica e sua mãe estavam em casa; o pai e os irmãos tinham saído todos para o porto; Chiquinha e Mariquinhas para lavar a roupa, Francisco Benedito e seu filho para a empreitada do embalsamento da madeira.
Antonica, que de vez em quando ia espiar à janela, viu no campo o sisudo fazendeiro, que vinha a cavalo, em direção à casa. Após ele corria o moleque Carlos, e caminhavam a passo os escravos, tocando os bois ajoujados.
Depois de amarrar o cavalo, do qual o senhor tinha apeado no terreiro, Carlos correu até o casarão e comunicou à Antonica que seu pai pedia para que lhe mandassem o almoço no porto.
Sob o sol ardente, a moça, com um cestinho à cabeça e um longo e fino caniço deitado sobre ele, atravessou o campo em direção ao porto, onde assentado à sombra de uma enorme figueira brava esperavam-na o pai e os irmãos.
Com um sorriso ela repreendeu as irmãs, lembrando-lhes que bem podiam ter ido almoçar em casa, para não a obrigarem a trazer tanto peso.
À proporção que falava, Antonica assentava sobre a grama os pratos que tirava do cestinho, e afinal, segurando no caniço, pôs-se a desenrolar-lhe a linha e a experimentar-lhe a estrova e o anzol.
— Eu como já almocei, disse Antonica, vou pescar um bocadinho.
— Eu logo vi que você falava de barriga cheia, interveio o irmão.
A moça foi assentar-se à margem do rio em frente a um lugar onde as águas negras e morosas remanseavam, abrindo em rodomoinho silenciosos sorvedoiros.
Estava a pouca distância dos seus, que em grupo riam e conversavam, ora menoscabando, ora elogiando a refeição e o aparelho.
— Como estão bem lavados os pratos!
— E as facas como estão amoladas; parecem navalhas.
— Este quitute foi temperado por Antonica.
— Vocês assim espantam-me os peixes, gritou Antonica.
— É gosto, observou Mariquinhas, não façam barulho que eu quero assar no dedo a pescaria.
— Pois, sim senhores; de criada vai o Viana bem arranjado; é papa fina.
Esta consideração, formulada por Francisco Benedito, foi recebida com uma longa risada dos filhos, que assim demonstravam aprovar o gracejo paterno. Quem estivesse ao pé de Antonica, veria, porém, que ela bem longe de acompanhar o acolhimento jovial ao gracejo, impressionara-se dolorosamente com ele.
Não sorriu mais os seus tardos sorrisos e a palidez como que se lhe aumentou nas faces.
Os olhos amortecidos e avermelhados prenderam-se-lhe como que fascinados na superfície da corrente, e, apesar das amigáveis provocações que lhe eram dirigidas, nada respondia.
A linha, cujo anzol boiava à flor das águas, deixava evidente que Antonica não prestava a mínima atenção à pesca. Outro cuidado a impressionava, e este brotou-lhe no soluçado de um canto:
— Moço fidalgo da corte
Se encantou de D. Branca;
A moça foge aos amores,
O seu pranto não se estanca.
Já tem véu, já tem grinalda,
Tem sapatos de cetim,
Da cor que tem a nebrina
E as asas do querubim.
Chega o dia do noivado
Branca triste inclina a fronte,
Mas pede para mirar-se
No claro espelho da fonte.
Ouve o canto da Mãe d'água
Dentre os lábios de coral,
E na harpa de fios de ouro
Sobre concha de cristal:
— "Vem a mim, filha querida
Vem findar as tuas dores;
Eu tenho ricos palácios
Para guardar teus amores".
Em casa todos procuram:
D. Branca onde estará?
O noivo já no seu carro
Na porta de casa está
Pobre pai, os teus rigores
Vão mudar-se em fundas mágoas,
Da tua filha só resta
O véu branco sobre as águas. —
Ao fim da última estrofe, Antonica, toda inclinada para o rio, olhou tristemente o céu e deixou-se precipitar na corrente.
Ao som do baque nas águas um grito de desespero respondeu no grupo:
— Socorro, Socorro! gritaram todos.
Francisco Benedito e seu filho, rápidos como um tufão, atravessaram a pequena distância que mediava entre o rio e o lugar em que se achavam, e precipitaram-se ao mesmo tempo, ao passo que as moças no auge da aflição gritavam a plenos pulmões:
— Socorro! Socorro!
Ao mesmo tempo vieram à tona os dois nadadores e a pálida Antonica, que se debatia quase sufocada.
Francisco Benedito, porém, já não tinha forças para resistir à correnteza e foi desviado pelo redomoinho das águas, e só o seu filho pôde aproximar-se de Antonica, no momento em que ela submergia-se de novo.
O corajoso rapaz mergulhou no mesmo ponto, e, quando subiu à flor do rio, trazia segura pelo corpinho do vestido a moça já sem sentidos.
A aflição cresceu nos espectadores; a pouca idade do mocinho não lhe fornecia a força necessária para levar à cabo a empresa; era um joguete da correnteza, prestes a ser esmagado por ela, que lucraria assim mais uma vítima.
O velho pai, agarrado ao galho de um ingazeiro, via, entre as torturas da impotência, esta dupla ameaça feita pela morte ao seu coração angustiado.
Mas de repente uma esperança consoladora luziu em todos os espíritos; a violência das águas cedeu diante da robustez de um nadador decidido.
Era o Motta Coqueiro.
Ouvindo os gritos de socorro, e vendo o grupo correr em direção ao porto, o prestativo fazendeiro sentiu atravessar-lhe o espírito a lembrança das palavras de Antonica: — é a ingratidão que me mata — e adivinhou logo o que se passava.
Montando no possante alazão em que sempre andava, e cravando-lhe desapiedadamente os acicates, Motta Coqueiro pôde em alguns minutos arriscar a sua vida para salvar a moça.
Nadou direto a ela e segurando-a com um dos braços, com o outro remou à mercê das águas até poder agarrar-se a um dos galhos da vegetação da margem.
Dentro em alguns minutos Motta Coqueiro deitava sobre a grama o corpo imóvel de Antonica.
A viveza encantadora de seu rosto fora substituída pela morte-cor de uma longa síncope; a luz suave e sedutora dos seus olhos fora trocada no brilho estagnado, próprio dos olhos dos cadáveres, e além de tudo isso os braços, quando eram levantados, caíam com o abandono da inércia.
— Está morta! está morta! minha irmã! minha filha! pobre moça! exclamavam todos chorando.
Só o fazendeiro não havia até então perdido o sangue frio entre a mó de parentes, escravos e agregados que cercavam Antonica.
Ajoelhando-se junto dela, pôs-lhe a mão sobre o coração, e sentiu que ele ainda batia.
Então como se fosse presa de uma loucura instantânea, tomou nos braços o corpo molhado da moça, apertou-o contra si, e cobriu-lhe de beijos a face lívida.
A vizinhança do túmulo santificava esta explosão indômita do coração e longe de provocar estranheza serviu apenas para aviventar uma esperança.
— Ela vive ainda, não é verdade, compadre; minha filha não morreu.
— Vive, sim, para nós, para o seu amor, para a sua felicidade; respondeu Motta Coqueiro, que não tinha mudado de posição.
Depois, como se acordasse de um sonho, levantou-se e gritou para os escravos e os circunstantes:
— Estamos aqui todos pasmados; vamos, levemo-la para casa; Deus a salvará.
Durante mais de uma hora de ansiedade e trabalho, ninguém, â exceção de Motta Coqueiro, alimentou a mais fugitiva esperança de ver salva a moça.
Todos abanavam a cabeça, exprimindo assim a certeza que tinham de que eram baldados os esforços feitos pelo fazendeiro, que sobreexcitado aconselhava e tomava ao mesmo tempo múltiplos expedientes.
Antonica jazia desacordada na imobilidade das estátuas, e apenas com um leve respirar correspondia à robustez da esperança do seu incansável salvador.
À proporção que desanimavam de todo, as pessoas da família retiravam-se para ir mais longe derramar as lágrimas, que Motta Coqueiro não queria ver correr.
Havia já largo espaço que, a sós, o fazendeiro velava junto à cabeceira de Antonica, quando esta pela primeira vez, depois da frustada tentativa de suicídio, abriu as pálpebras roxeadas.
Tudo quanto há de mais infantil e mais amoroso, de mais santo e louco passou pelo espírito e encarnou-se no olhar e nos gestos de Motta Coqueiro.
Veja se dorme, se descansa, murmurou ele; não deve falar, não deve fazer nenhum movimento. Oh! que susto que nos pregou!
O olhar de Antonica, misto de espanto e de pudor, continuou fixo a envolver o seu solícito velador, enquanto que no canto do lábio pairou-lhe na ironia de um sorriso toda a amargura da sua situação.
— Por que não me deixou morrer, por que não teve ânimo ao menos para passar em paz sobre a minha cova.
— Mas, minha filha, repare que esta exaltação lhe faz mal; descanse, isto há de passar; você verá, há de passar.
As pálpebras de Antonica cerraram-se de novo e pelos seus cantos as lágrimas começaram a deslizar.
Um incidente veio impedir, talvez, que uma involuntária quebra de resolução maculasse o papel digno que Motta Coqueiro desempenhava junto da moça.
Francisco Benedito, de pé na porta do quarto em que esta cena se passava, disse a meia voz:
— Oh! compadre, não será bom acordá-la e dizer que está aí o Viana; talvez...
Cedendo à comoção que lhe causaram estas palavras, o fazendeiro repetiu alto:
— Talvez...
— Neste caso eu vou chamar o rapaz. O compadre se o visse; está lá fora a chorar e a praguejar.
Logo que Francisco Benedito retirou-se o sorriso irônico de Antonica reapareceu-lhe nos lábios e as pálpebras descerraram-se-lhe para lançar um olhar penetrante ao já sereno Coqueiro.
— Quero mostrar que não sou ingrata, seu capitão, murmurou ela, hei de tratar muito bem ao meu noivo.
— E para ter mais franqueza, eu retiro-me, respondeu Coqueiro, levantando-se e dirigindo-se à porta.
Depois que o fazendeiro saiu, Antonica, que se assentara no leito, envolveu num sorriso um grito do coração:
— Vai; não és tão indiferente como finges.
— É cá, venha por cá, dizia lá fora Francisco Benedito, não façamos barulho.
A estas exclamações acrescentou logo uma pergunta e uma observação:
— Acordou-a sempre, compadre? São sempre assim, mesmo morrendo... Oh! meu Deus, foi um milagre.
A última exclamação foi feita à porta do quarto, e era motivada pela posição de Antonica.
Caprichoso no desempenho do seu papel o vendeiro entrou precipitadamente emitindo frases em aluvião:
— O que foi isto, sá Antonica? que diacho de cousa! quase que foi para a cova; vejam que brincadeira.
— Ora o que foi? um banho, respondeu Antonica.
Toda a família veio para o quarto a chamado de Francisco Benedito, que não podia conter-se de alegria.
Choveram comentários do perigo e manifestações de regozijo.
— Só você podia curá-la, seu Viana; abaixo de Deus, o compadre valeu-nos muito, mas não é o noivo.
A vaidade lisonjeada do vendeiro operou alguns requintes do estilo da modéstia forçada, a divindade universal que tem altares desde o sertão até os mais civilizados centros, e afinal caiu inanida do esforço no mais parvo mutismo.
Tendo dado franqueza às expansões, Motta Coqueiro assomou à porta no momento em que Antonica, para desafiar os enconjuros de sua mãe, dizia:
— Era bem bom que o banho fosse até o fim.
— Já não há perigo, disse o fazendeiro; agora parto para o meu trabalho.
Um coro de agradecimentos rompeu de toda a família; só Antonica fez exceção, e dirigindo-se ao fazendeiro, verteu todo o seu despeito numa pergunta:
— O que seria melhor para uma pessoa, seu capitão, morrer ou querer morrer por alguém que não merece?
— Conforme, respondeu ele; se a pessoa for moça, o melhor é casar-se com quem mereça.
A conversa continuou animada junto do leito de Antonica, mas já não colaborava nos ditos de alegria e espírito a voz da doente.
Concentrando-se a pouco e pouco, e respondendo ao acaso, Antonica terminou por dizer que se sentia pior, e pedir que falassem mais baixo.
Alguns minutos depois deitou-se queixando-se de dores na cabeça e calafrios.
— Parece que tenho febre, disse ela, e pediu às pessoas que estavam no quarto para que se retirassem.
Ficou apenas no aposento a velha mãe de Antonica, que para logo teve de pedir auxilio, porque a moça começou a convulsionar, como se fora morrer.
Esta recaída inopinada agravou-se assombrosamente e de novo a família julgou perdida irremediavelmente a enferma.
Ataques violentos obrigavam aos maiores cuidados e a quase contínuo excesso de força para impedir que durante eles a doente não se magoasse ainda mais, ou fosse vítima de algum dos seus bruscos movimentos.
Neste honroso empenho, durante dois dias e duas noites, velou a família de Francisco Benedito à cabeceira da Antonica, mas o cansaço diminuiu por fim a boa vontade e dedicação.
Estavam todos extenuados.
Dois oferecimentos espontâneos apressaram-se em pedir à família o encargo dos quartos à enferma, Motta Coqueiro mandou uma de suas escravas, e Manuel João ofereceu-se para velar com ela.
Por hora adiantada da noite um acesso violento obrigou os bons serviços de Manuel João e da escrava, e além deles apareceu no quarto a bondosa Mariquinhas.
Apesar do baralho, que foi feito pelas vascas da doente, ninguém mais acordou, o que provava quão pesado era o sono dormido pela família.
Passado o acesso, a escrava foi sentar-se a um canto do quarto, Mariquinhas sentou-se para os pés do leito e Manuel João à cabeceira.
A escrava não velou por muito tempo; em breve ouviu-se o seu franco ressonar.
Estavam, pois, sós Mariquinhas e o feitor.
Os seus olhares embebiam-se reciprocamente na mais expressiva ternura, trocando as frases que o respeito à enferma impediam de pronunciar-se.
Pelos lábios de Mariquinhas serpeavam esses sorrisos indefiníveis da mulher que se crê amada, quando vê-se contemplada pelo seu amante; sorriso feito de um tom de vaidade sobre esplêndido colorido de gratidão e que é o melhor coroamento do amor.
Para se deixar fitar mais à vontade, em toda a franqueza e sedução dos seus encantos, a moça colocou o braço no da marquesa e na concha da mão pequenina deitou a face morena.
Contrastando com a imobilidade do busto, Mariquinhas balançava distraidamente uma das pernas, com um movimento compassado e lânguido.
Talvez para mais encantar o contemplativo feitor, a moça de quando em quando cerrava as pálpebras nacaradas, para suspendê-las depois no raio úmido e amplo do seu olhar aveludado.
— Por que não vai dormir, sá Mariquinhas; eu e a rapariga bastamos para qualquer cousa.
— Estou bem aqui, respondeu Mariquinhas.
Fizeram ambos silêncio em seguida, porque a doente revolvera-se no leito. Foi este um pretexto para que Manuel João se levantasse e logo inclinado sobre a face de Mariquinhas, com os lábios quase a roçarem-lhe o delicado pavilhão das orelhas, lhe segredasse:
— Vá dormir, sim? olha que me está fazendo mal.
Quanta felicidade não devia ter derramado nalma ingênua da amante de quinze anos esta solicitude respeitosa e acariciante.
— Está bom, respondeu Mariquinhas; eu vou aqui para a sala, se precisar de alguma cousa, chame.
Mais de um longo quarto de hora tinha-se já escoado após a saída da fascinadora amante do feitor, quando este depois de observar de perto o rosto de Antonica, levantou-se com precaução.
Com menos ruído não desliza a lágrima de resina pelo córtex do pessegueiro.
A passos lentos caminhou até junto da escrava adormecida e chamou-a por três vezes; a preta não deu o mínimo sinal de ter acordado.
Manuel João caminhou então para a sala com a mesma cautela.
Deitando um braço sobre a mesa e a cabeça sobre ele, Mariquinhas ressonava brandamente através dos lábios virgíneos o sono do cansaço e da f confiança.
O lencinho branco, que diariamente trazia ao pescoço, havia-se desatado, e o corpinho, formando pela posição contrafeita da moça uma abertura côncava, deixava ver o colo moreno. Assim as pétalas da rosa superpõem-se de modo que não só deixam entrever-se mutuamente, mas flanqueiam ainda à vista a dourada região dos estames.
Um tosco e mal limpo candeeiro bruxuleava ao lado de Mariquinhas, como se tentasse apagar-se para não dar lugar a que um olhar profano se atrevesse a devassar tamanhas perfeições.
Pé ante pé o feitor aproximou-se e parou junto da adormecida. Contemplou-a com avidez; correu-lhe de leve a mão desde o alto da cabeça até a meio de uma das tranças que acompanhava o arfar do colo imaculado, e finalmente ajoelhando-se, roçou nos lábios entreabertos da moça um beijo, que alava-se no temor.
O sonho de Mariquinhas era profundo como soem ser os da fadiga; a profanação pôde continuar.
Ao primeiro beijo, seguiu outro e ainda outro, até que menos pela grosseria do atentado do que pela suscetibilidade do pudor, a moça despertou sobressaltada.
Ao ver de joelhos o seu amante, ela que não podia adivinhar a torpeza de que ele era capaz, não teve uma queixa a vibrar-lhe, mas antes uma carícia para perdoá-lo.
— Eu não sabia que era santa, está fazendo oração? Olhe o oratório está aqui, eu abro-o.
O crime espojou-se diante de tão graciosa impunidade; e à semelhança de um forçado que, evadindo-se da prisão, encontra diante dos seus instintos maus, não a mão pesada do carcereiro, mas um dia límpido como o éter, um céu sereno e uma tranqüila floresta suspirando a bafagem farfalheira de um vento sem rancores, e ecoando o gazeado mavioso de milhares de passarinhos; e então ri aos planos sombrios de novas empresas; o feitor encontrando, ao retrair-se da sua baixeza e olhar velutino de Mariquinhas e a suavidade da sua palavra, riu interiormente a uma esperança lasciva.
— Não fale alto, que podem ouvir. Deixe que ao menos hoje eu esteja junto de você; é tão difícil isto.
— Deveras? pois você não vem sempre aqui.
— Mas nunca tive uma vaza de dizer-lhe que lhe estimo muito, muito, como a ninguém neste mundo.
— Pois agora já disse; o que quer mais?
— Quero que você diga que também paga-me essa amizade com a mesma força; que é capaz de fazer tudo por ela, sem medo, nem de Deus, nem do mundo.
— Ai! ai! você está a dizer pecados, vá fazer o quarto e deixe-se de partes.
— Não brinque, sá Mariquinhas; eu não saio hoje daqui sem saber se devo viver ou morrer. Eu não vim cá por sá Antonica; eu vim para certificar-me de que você me estima. Quero que jure-me, que repita uma, cem vezes: eu só serei tua, só tua...
Estas palavras seguiu-as o feitor com os movimentos precipitados da paixão, e quando pedia à moça que jurasse já a tinha cingido e beijava-a apesar do esforço que ela fazia para libertar-se do assalto.
— Deixe-me, deixe-me, exclamou Mariquinhas, você está abusando, eu chamo a rapariga.
Dita a meia voz, mas com o acento imponente do pudor e da dignidade, a frase de Mariquinhas repeliu para longe o feitor, não amedrontado, mas alucinado.
O seu plano de sedução malogrou-se, era mister levar a cabo o segundo: o da violência.
Levou a mão a cinta; estava desarmado; voltou então para junto de Mariquinhas e, travando-lhe do punho, disse-lhe com um acento que a fez tremer:
— Uma palavra mais, e eu que te estimo como um doido, arranco-te a língua como um malvado. Olha que já há noites que eu penso nisto; enforquem-me depois, mas eu hei de chamar-te minha hoje, já... Uma palavra mais e... esta casa tem armas e no meu pulso há força.
— Para que há de ser mau pra mim; murmurou Mariquinhas, que esperava abrandá-lo pela humildade.
Foi porém um novo incitamento. De chofre Manuel João apertou sobre os lábios de Mariquinhas a sua mão vigorosa, enquanto com o braço, que lhe passara à cinta e um esforço brutal, fazia vergar-lhe o corpo delicado.
O candeeiro, talvez pela agitação do ar durante a luta, deixou de iluminar a sala.