Na verdade foi alumiado por uma boa estrela, quando fugia miseravelmente, sem reagir sequer pela palavra contra o castigo que recebeu.
Uns minutos mais de demora ser-lhe-iam mais desastrosos, senão de todo fatais, porquanto fora mister haver-se com o amo possante e justiceiro e agora quase alucinado ao saber do repugnante atentado.
Chegando ao lugar em que Mariquinhas tinha sido duplamente desacatada por Manuel João, Motta Coqueiro, ao ver a moça com o rosto sumido entre as mãos e a soluçar inconsolavelmente, acendeu-se em uma cólera turbilhonante, indômita, assombrosa e querendo punir o agressor, que fugira, ordenou, com gritos frenéticos, que lhe trouxessem o alazão.
A circunstância da hora impediu o pronto cumprimento da ordem; ainda o valente animal de largo fôlego e carreira tempestuosa pastava namorando com relinchos galanteadores o lote que o cercava.
Em vão daí a pouco aos repetidos upas do cavaleiro, o alazão, quase cosido com a grama, mediu à brida solta o campo do sítio e depois em rápida andadura o caminho que ia ter à venda do Viana.
O brutal agressor tinha podido ocultar-se em lugar seguro e daí observar sem ser visto todo o movimento dos escravos e de Motta Coqueiro para capturarem-no.
Entretanto Manuel João não tinha corrido até grande distância; achava-se a meio caminho da venda e daí podia iludir todas as pesquisas.
Quando estas afrouxaram, Manuel João, deixando seu esconderijo, caminhou cautelosamente até o lugar onde o pressentimento conduzira também, havia poucas horas, o fazendeiro.
Como uma aranha enorme no centro de imensa teia, Viana estava no meio da vendola sentado num caixão e com o tronco recostado em um saco de milho.
A ociosidade zumbia-lhe em tomo a desafiar-lhe bocejos e pairava-lhe já nas pálpebras, que pestanejavam morosamente.
Fora chilravam as cigarras e estalava ao calor um pano de frutos de mamona estendido ao sol.
Manuel João penetrou de um salto no interior da taberna e antes que o vendeiro tivesse tido tempo de espairecer o susto, já o hóspede tinha entrado para uma saleta que se abria sobre a sala da venda.
— Veio alguém procurar-me aqui? perguntou o ex-feitor.
— Temos novas artes, brejeiro? quem é que havia de vir procurá-lo? Tu andas procurando uma farda para estas costas.
A alegria hospitaleira do prudente vendeiro foi logo obrigada a retrair-se. Manuel João tomara a palavra e, depois de narrar todos os seus sofrimentos e torpezas, acabou por interessar vivamente o vendeiro:
— Agora escute bem, seu Viana, eu ao menos tenho uma glória, é que hei de vingar-me daquele demônio. Deixe-me pensar e verá. Ele me fez uma; há de pagar-me com juros, ou não estou falando com você.
O vendeiro, vivamente impressionado com o que acabava de ouvir, ficou meditando por largo espaço. Tinham-se-lhe extinguido os bocejos, e as pálpebras como que se lhe paralisaram. Temia que fosse descoberta a sua familiaridade com Manuel João de quem fora até certo ponto o instigador.
Diversas vezes o vendeiro levantou os olhos e cravou-os no rosto do ex-feitor, mas, encontrando as feições decompostas do amigo, desviou o olhar. Visivelmente o Viana temia emitir a sua opinião.
— Quer dizer-me alguma cousa, seu Viana; fale porque eu tenho ouvidos.
— Você não se zanga?
— Pode dizer para ai.
— Falando verdade, Manuel João, você foi um desastrado, e a cousa pode custar caro.
— Pois sim; se não fosse por isso era por aquilo; o diabo andava-me com sede.
— Mas se você não provocasse.
— Deixe passar o tempo; você não há de falar mais deste modo, pode ir pondo as barbas de molho. Lembra-se do dia em que sá Antonica ia-se afogando?
— Tenho de cor.
— Nesse dia foi que se descobriu qual das três era a que ele estimava; beijou sá Antonica à vista de todos.
A testa do vendeiro enrugou-se.
— Depois, continuou Manuel João, com estes olhos que a terra há de comer eu vi muitas vezes sá Antonica entrar na casa grande, sozinha e de noite.
— Ora ele é como pai delas; interrompeu o vendeiro profundamente despeitado; não estranho que ela o procure.
— Mandou uma negra fazer quartos a sá Antonica e, quando esta piorou, mandou para lá a Balbina, o estupor da feiticeira.
— Tudo isso não prova nada.
— É verdade; mas o que prova é que há muito tempo que você pediu sá Antonica, e o pai não ata nem desata, e ela mesma não faz caso de você.
Manuel João tinha tocado a chaga que sangrava o fingido vendeiro. Viana sentiu-se mordido pelas presas afiladas do despeito, quando Antonica maltratou-o positivamente, e desde então ruminava no isolamento a desforra ao desabrimento da moça.
Fechava-se com esta idéia e não queria vê-la transpirar ainda à custa da própria vida, pensava que ninguém tinha ainda percebido a frieza de Antonica para consigo e por isso contemporizava. Agora porém sabia de improviso que outros olhos, outra perspicácia devassaram a causa das suas meditações de vingança.
— E o que tem você com isso? exclamou o vendeiro. Cuide de si e olhe que não lhe sobra tempo.
— Eu já sabia que havia de ficar sozinho, atalhou Manuel João; mas não sou eu quem é o noivo de sá Antonica e portanto não sou também eu quem mais raiva mete ao capitão. Não tome tento não e eu lhe mostro.
Certo do efeito das suas palavras, Manuel João retirou-se da taberna, deixando Viana entregue às mais assustadoras conjeturas acerca do seu destino.
No sítio de Motta Coqueiro duas pessoas padeciam horrivelmente; eram Antonica e o fazendeiro.
O acaso parecia divertir-se em aglomerar contrariedades em torno de Motta Coqueiro e esbarrá-lo de encontro a elas.
A canoa que levara a família para a cidade tinha voltado e uma carta escrita pela esposa de Coqueiro veio colocá-lo em posição embaraçosa.
Na carta, a Sra. D. Maria, depois das expansões peculiares a uma ausência de consorte, ocupava-se com a moléstia de Carolina, nestes termos:
— A rapariga está salva, graças aos cuidados do médico, mas ainda está muito abatida. Vou, porém, comunicar-lhe uma cousa curiosa a respeito:
O médico, admirado do desvelo com que tratava-se Carolina, disse-me que ela não o merecia, porque a doença não era natural, mas sim provocada pela escrava.
Como era de meu dever interroguei-a e, depois de muito negar, confessou por fim que era verdade o que o médico revelou-me, e contou-me o seguinte:
- "No dia em que adoeceu, acordou-se mais cedo do que devia e, para não ser enganada pelo sono e assim faltar à revista, resolveu-se a não tornar a deitar-se.
- Como o luar era claro como o dia, diz ela que, para matar o tempo, saiu e pôs-se a passear por perto das casas da fazenda. Assim foi andando até a casa do compadre.
- Aí tomou um violento susto porque inesperadamente estacou diante de dois vultos.
- Estes, percebendo a sua chegada, correram e ela pôde reconhecer Manuel João e uma das filhas do compadre, que lhe pareceu ser a Mariquinhas, aquela Mariquinhas, que nós tínhamos por uma santa.
- O choque sofrido por Carolina fez-lhe mal e quando voltou para casa sentiu já os primeiros sintomas da moléstia, que quase matou-a.
- Não querendo dar parte de doente, porque se envergonhava de dizer o que tinha, decidiu-se a tratar-se por si mesma, tomando um chá que lhe disseram que era bom.
- O remédio, porém, longe de fazê-la melhorar, deu em resultado o trabalho que temos tido para curá-la, e o susto que tivemos de perdê-la.
- Vim depois a saber por uma das mucamas que Manuel João era amante de Carolina e ela confirmou-mo.
- Avalie quanto estes fatos devem ter-me incomodado. Eu sempre tive escrúpulos das relações com a família do compadre, e agora impressiona-me extraordinariamente a lembrança das suas familiaridades com essa gente.
- Há por força um fundo de verdade na confissão de Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores."
Depois destas considerações e de recomendações familiares, havia na carta este post scriptum:
— O embalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo.
Da primeira leitura Motta Coqueiro compreendeu apenas que havia esperdiçado os seus sentimentos generosos, quando encarregou-se espontaneamente de punir o que ele chamava um miserável abuso do ex-feitor.
Também da sua memória varreu-se a lembrança de Manuel João, por isso que o seu ato apareceu-lhe então ante a memória revestido com as rudes mas justificáveis asperezas de uma cena violenta de arrufos.
Nasceu-lhe, porém, uma repugnância invencível para com a família do compadre, a quem por piedade dias antes recomeçara a tratar brandamente.
Um incidente veio ainda agravar esta aversão.
Vizinho às terras do sítio morava Lúcio Ribeiro, alcunhado o capadócio. Era um mulatinho de vinte e dois anos, franzino, de modos bruscos e palavras atrevidas. Desde longa data entre a família de Lúcio e Motta Coqueiro reinava a mais irreconciliável desavença.
Lúcio vivia de ser votante, uma profissão muito rendosa e uma posição muito respeitável na roça. Somente é preciso saber fazer o oficio de votante, que tem calos bem doloridos.
O votante é o guarda-costas da autoridade e da influência do lugar; deve expor por eles a própria vida, como os antigos germanos expunham a sua pelos seus chefes.
Quando algum indivíduo incomoda de qualquer forma a influência ou a autoridade, estas esmeram-se em acobertar o seu ressentimento e impelem contra o indivíduo votante — espécie de cão de fila que dorme-lhes à porta.
A diferença entre os dois animais é que — um ataca de frente, corajosamente, navalhando e dilacerando com os dentes amolados; — o outro assalta traiçoeiramente e maneja a espingarda ou a faca, pelas costas da vítima.
Lúcio, havia algum tempo, tinha servido para significar a Coqueiro o desagrado em que tinha incorrido para com o subdelegado de Macabu, honrado conservador que dominava o lugar, e que, para avigorar-lhe a dedicação, ameaçava constantemente o fiel Lúcio com um espectro horrendo — a praça.
O resultado obtido pelo rapaz foi ganhar uma inimizade, e esta demonstrava-a claramente o fazendeiro negando a Lúcio e a todos os seus parentes passagem pelo seu sítio.
A proibição tinha sido respeitada por muito tempo, mas agora acontecia o contrário; Lúcio, a pretexto de visitar Francisco Benedito, fazia do sítio o seu caminho.
Conhecida por Motta Coqueiro a quebra da pena que tinha imposto a Lúcio, e informado de suas relações com Francisco Benedito, o fazendeiro fez disso um motivo para renovar, mas já em tom de intimação, o pedido ao compadre para que fizesse a sua casa.
— Ouça, compadre, disse ele a Francisco Benedito; você pensa que é por lhe querer mal que eu insisto em querer que você faça a sua casa; e no entanto quero apenas evitar questões. Ainda hoje disseram-me que o Lúcio faz caminho pelo sítio e desculpa-se com visitas à sua família. Eu não posso proibir que você se dê com este ou aquele, mas não posso consentir que entre pela minha casa dentro um indivíduo que insultou-me gratuitamente. Em todo caso, quando voltar ao sítio, desejo achá-lo mudado.
Francisco Benedito nada objetou.
O silêncio de Francisco Benedito foi apreciado por Motta Coqueiro a boa parte, e o fazendeiro entendeu que estava resolvida a grande questão da mudança.
Por esse lado creu estar descansado e continuou a cuidar nos seus trabalhos para terminá-los o mais prontamente possível e deixar o sitio que tanto incomodava-o agora.
Pensava em Antonica maldizendo a fatalidade que arraigara tão intensa paixão para a qual nem por um fugitivo pensamento ele quisera contribuir, e no entanto colaborara com a esperança.
A moça vingava-se do desabrimento com que foi tratada na última vez que tinham falado, deixando delir a sua formosura por uma consumpção rápida e fatal.
Como a nuvem negra que, embora carregada de aguaceiro, desliza sem ruído pela face do céu, Antonica, embora avergada ao sofrimento, vivia sem um ai ao lado do eleito dos seus sonhos.
Procurava evitá-lo sem afetação, sem uma só aspereza de despeito, mas, às vezes vencida pelas necessidades do coração e ao mesmo tempo contida pelo orgulho do amor desprezado, guardava um meio-termo que aliciava-lhe os olhos e sopitava-lhe o tormento.
Quando à tardinha o fazendeiro se sentava no terreiro da casa grande ora a ler, ora a fumar distraidamente, ela colocava-se junto da moita que ficava ao lado do casarão e, pelas malhas do trançado dos arbustos, contemplava-o extática. Só a noite tirava-a do seu observatório.
Uma tarde esta contemplação foi percebida por Motta Coqueiro, que se apiedou do desditoso afeto a que ele, por sua honra, não podia bafejar.
Teve sinceramente piedade de Antonica e duas vezes agitou o lenço chamando-a para junto de si.
Uma recordação proibitiva interpôs-se-lhe, porém, aos sentimentos compassivos, lembrou-se da carta de sua esposa, e uma força invencível impeliu-o a relê-la.
O só contato do papel fê-lo estremecer; parecia ter entre mãos uma sentença cruel. O pressentimento tornou-lhe maior a avidez da leitura, que antemão assim abalava-o.
Os primeiros períodos desfizeram quase totalmente o estado moral que o abatia, e Motta pôde sorrir às veladas insinuações da sua esposa. Para o fim da carta a impressão foi bem diversa e o fazendeiro chegou a repetir alto os dois períodos.
- "Avalie quanto estes fatos devem ter me incomodado. Eu sempre tive escrúpulos das relações com a família do compadre, e agora impressiona-me extraordinariamente a lembrança das suas familiaridades com essa gente.
- Há por força um fundo de verdade na confissão de Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores."
A odiosidade de que vivia cercado em Macabu, as provocações de que era alvo para que desorientassem-no dos caminhos da prudência e perdessem-no numa precipitação; as calúnias que arrebentavam do anônimo, à semelhança de uma nuvem de mosquitos de um pântano, assediavam-no entre zunidos importunos e mordidelas incômodas; as ciladas que a todo o momento enredavam-lhe os passos; o seu viver de isolamento que, averbado de misantropia, abria largo e atraente campo às intrigas as mais abstrusas, tudo isso borbulhou da memória do fazendeiro e, escoando-se pelos raciocínios exaltados, alagou-lhe o coração de uma inundação de fel.
A carta caiu-lhe com as mãos sobre os joelhos, ao passo que o olhar se fixava no céu.
A pouco e pouco, porém, as rugas da testa e a saliência exagerada das sobrancelhas, que lhe davam uma aparência de intratabilidade antipática, foram esvaendo-se e o semblante retomou a simpática seriedade habitual.
É que a paz da consciência asserenava-lhe os temores, e a ingênua confiança da honestidade espancava com os seus clarões os fantasmas evocados pelo receio.
Via-se-lhe na fisionomia, misterioso livro onde a consciência nos escreve dia a dia, hora a hora, a história de nossos atos; lia-se-lhe na fisionomia uma série de interrogações e respostas, no passar repentino da serenidade para a perturbação.
Ninguém, salvo má vontade extrema, poderia encontrar nos seus atos para com a família do agregado uma nódoa sequer, tinha sabido repelir a princípio com brandura e depois virtuosa rudeza, o coração que lhe oferecia, e se alguma culpa tinha na pertinácia do afeto de Antonica, devia ser lançada à conta da compaixão.
— Não há um só coração bem formado que possa por um momento fazer-me semelhante injustiça, disse convictamente o fazendeiro.
Os olhos abaixaram-se-lhe de novo, sobre o papel, que parecia magnetizá-lo, e, tomando-o maquinalmente, Motta Coqueiro continuou a leitura.
Agora encontrava ai um bálsamo para a ferida que daí mesmo tinha partido.
As letras ameigavam-se combinando-se em palavras de amor e carícias; recordações sagradas das alegrias e saudades de seus filhos e além delas gravavam o nome da esposa, o querido nome da companheira de infelicidades e de venturas.
Entretanto, como uma cascavel oculta sob flores, negrejava sob a assinatura o maldoso post scriptum: O embalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo.
Apesar da aparente despretensão da frase, Motta Coqueiro surpreendeu a suspeita que nela delicadamente se envolvia.
De feito, a moléstia de Antonica tinha ocasionado uma demora no trabalho, por isso que era impossível exigir de Francisco Benedito que abandonasse a filha gravemente enferma e se consagrasse aos interesses do fazendeiro. Demais o próprio Motta Coqueiro não zelou tais interesses, porque maior cuidado o absorvia.
A crise moral reapareceu no espírito já abonançado do homem que se infelicitava pelo bem alheio.
Havia pouco descansara na confiança de que ninguém de boa fé poderia julgá-lo mal, e agora via diante de si, representando este juízo, a pessoa por quem devia ser mais conhecido, a sua consorte.
Como explicar-lhe a demora pela moléstia de Antonica? A explicação, que era bastante para justificar Francisco Benedito, era inteiramente desarrazoada para si e serviria apenas para agravar as suspeitas.
Assoberbado pela dificuldade da sua posição, Motta Coqueiro perdeu-se num pélago de soluções, as quais repelia logo por improcedentes e comprometedoras.
A noite veio encontrá-lo no mesmo lugar e longo tempo correu sobre ele, profanando com a indiferença da aragem e do luzir das estrelas aquele padecer injusto.
Havia bem perto alguém que padecia igualmente, alguém que, pela presciência do amor, adivinhava que o fazendeiro sofria.
Era Antonica. Postada no seu ponto de observação, ela via sempre Motta Coqueiro retirar-se do terreiro logo ao cair da noite. Hoje, porém, o fazendeiro parecia nem sequer aperceber-se de que havia muito que a melancolia do crepúsculo tinha dado lugar ao mortiço tremeluzir das estrelas.
Sem saber como nem por que, Antonica veio insensivelmente aproximando-se do fazendeiro, e, quando já perto dele, teve a dolorosa certeza de que uma dor profunda o acabrunhava e absorvia.
Com os braços cruzados sobre o peito e as pálpebras fechadas, a cabeça descaída para trás, Motta Coqueiro jazia em imobilidade de cadáver.
É fácil descobrir qual o fio dos pensamentos da amante diante do homem que fascinou-a. O amor leva seu egoísmo a atribuir-se todas as felicidades e desventuras do ente amado; imagina que o riso ou a lágrima só ele tem força para provocá-los, só ele tem o condão de metamorfosear a existência em bulcões ou luares, em abismos trevosos ou em firmamento constelado.
Uma injustiça pungente sangrava ainda o coração de Antonica; ela, que se abandonava somente à correnteza de uma fascinação, ao deslumbramento de uma paixão, tinha sido acusada como instrumento ignóbil manejado por seu pai.
Não seria o arrependimento de tão amarga injúria a causa do abatimento do homem que involuntariamente havia monopolizado a tranqüilidade do seu existir?
Tal pensamento atravessou talvez o cérebro da moça, e, como ainda mais do que as próprias, torturavam-lhe as dores do fazendeiro, Antonica aproximou-se para levar-lhe o perdão.
Faltaram-lhe, porém, por muito tempo as forças; a voz sumia-se-lhe, enquanto que os lábios eram atraídos pela palidez da fronte do pensativo.
Afinal, derramando uma ternura infinita, Antonica murmurou timidamente
Sofre muito, seu capitão? Quem lhe faz mal!
A voz da moça repassava-se de um filtro irresistível de paixão; era o perdão dando-se espontâneo, sem ao menos uma súplica; era o consolo a implorar que o recebessem as mágoas sobranceiras que se fechavam no próprio travor, como se nisto se receassem.
Também o fazendeiro, como se já esperasse a inopinada consolação, respondeu-lhe sem sobressalto.
— Sim, padeço muito.
A resposta foi recolhida na tepidez de um suspiro, ao passo que a ansiedade apressava-se em ouvir uma confissão lisonjeira.
E sou eu a causa! eu que não tenho juízo! Meu Deus, para que me fez tão má!
As exclamações de Antonica, se é possível dizê-lo, eram feitas de lágrimas volatilizadas; cunhavam-nas uma imploração suave e uma piedade indizível. E como não ser de outro modo se ela, que daria, para que o fazendeiro tivesse um sorriso bom, a sua mocidade brunida pela formosura, os seus sonhos que ainda não tinham voado ao limiar dos vinte anos; se ela, amante apaixonada, tinha-o ante os seus olhos... sofrendo.
As palavras da moça não foram respondidas e Motta Coqueiro ensurdecia-se na letargia da dor.
E eu que, há tanto tempo, estou a vê-lo dali, continuou Antonica, e que não descobri logo que sofria. Não estava como nos outros dias, e eu não vim. Pensei que estava zangado comigo. Só fiquei certa de que seu capitão estava triste, porque já tão noite e ainda está aqui fora.
Como quem desperta por uma sacudidela brutal, o fazendeiro levantou-se e correu os olhos em torno de si, e depois para as mãos, em uma das quais tinha a carta amarrotada.
Antonica, assustada por esses movimentos, ficou imóvel, como se os pés se lhe tivessem grudado ao solo, e já começava a repreender-se da nova imprudência, esperando uma das explosões de gênio, tão fáceis em Motta Coqueiro.
Mas em vez de censura temida, encontrou a benevolência e se as mãos, se os gestos não se aveludaram em afagos, a voz transudou uma compaixão grata e amiga.
— Você faz-me pena, disse Motta Coqueiro; não conhece a vida, e vai até o precipício, querendo arrastar consigo aqueles a quem estima. Deixa-me em paz, Antonica. Ninguém melhor do que eu pode avaliar o seu sofrimento, mas tenho necessidade de ser cruel. O contrário era a minha desonra, o desassossego de toda a minha vida e a sua desgraça, Antonica. Hoje você ficaria satisfeita com as minhas carícias; porém amanhã, quando os seus pais lhe fechassem as portas, quando todos apontassem-na entre mofas e escárnios, teria de amaldiçoar-me. Nem você imagina quanto algumas palavras que lhe tenho dito custam-me em arrependimento. Julgo-me criminoso ante os meus filhos e minha mulher, e entretanto a minha estima por si não é senão a de um pai. Tenho dó de si.
— Mas, meu Deus, que desgraça é a minha que não posso nem estar ao pé de vosmecê um instante, sem que logo me mande embora; seu capitão pode ficar horas inteiras a olhar para um papel e não pode me ver nem um instantinho.
Buscando comover, a moça não fez mais do que avivar ainda mais na mente de Coqueiro a responsabilidade que lhe cabia na cena que se passava.
O papel preferido era a carta em que estava gravada a suspeita da consorte do fazendeiro, e lembrá-lo importava justificar a delicada repreensão que no papel ocultava.
— Não deve consentir, continuou o fazendeiro, porque tenho família, porque tenho dignidade. Basta já de comprometimentos; é a sua e minha perdição. Se alguém aparecesse agora, este papel que você vê teria toda a razão, e minha mulher poderia com justiça acusar-me.
— E que tem sua mulher e seus filhos com a minha amizade? Pois que me matem.
— Louquinha, faz-me pena.
— Paciência, mas é assim; matem-me se quiserem, mas hei de estimá-lo sempre.
O silêncio permeou a tristeza desses dois corações.
Passado algum tempo, Motta Coqueiro, como se houvesse encontrado uma solução decisiva para a sua situação, pegou da mão de Antonica e perguntou-lhe com voz comovida.
— Então estima-me muito, Antonica.
A moça respondeu movendo afirmativamente a cabeça.
— E é capaz de fazer tudo quanto eu lhe peça.
— Sim, respondeu alegremente Antonica.
— É o maior sacrifício da tua vida, mas será tua tranqüilidade mais tarde, e o sossego dos meus. Promete fazer-me?
— Diga, diga já.
— Eu juro que hei de velar por si, como se fosse seu pai, mas você há de fazer a vontade à sua família, aceitando o casamento com o Viana.
— Ah! meu Deus; isto é demais.
Enquanto Motta Coqueiro assim dedicava-se ao zelo pela reputação de Antonica e pela tranqüilidade do lar, três homens tratavam de minar sem ruído o edifício de paz que ele tentava construir em roda de si.
Um juramento de mútua defesa vinculava a recíproca dedicação coligando-lhes os esforços. Esses homens eram Manuel João, Sebastião Batista ou melhor Sebastião Pereira — apelido que o violeiro herdou a um seu antigo amo; e o Viana, o mais conhecido dos vendeiros da vizinhança.
O ex-feitor do sítio de Macabu, o covarde Manuel João, e o violeiro conspiravam por uma causa razoável; tinham levado a infâmia à casa do agregado e temiam a punição desse ato, punição que eles imaginavam tremenda, porque esperavam-na fulminada por Motta Coqueiro.
A situação do violeiro agravara-se de forma que para qualquer parte que ele olhasse não descortinava senão trevas e perigos.
Em uma das entrevistas com Chiquinha o ânimo destemido do violeiro havia enfraquecido e baqueado mesmo.
Sustando-lhe intempestivamente as expansões, cortando-lhe de um golpe o fio dos galanteios sedutores, a moça perguntou-lhe um dia:
— Você pensa que é muito feliz?
Sebastião riu-se com a boa vontade de quem tem por horizonte o gozo desassombrado de uma afeição que se dá, sem pedir, como retribuição mais do que uma hora de bom humor, e algumas condescendências amigas.
— Boa pergunta esta, Chiquinha, respondeu Sebastião; nem eu tenho razão para pensar de outra maneira.
O semblante tristonho de Chiquinha inundou-se da tristeza comovente da desesperação represa. Era mister entrar em uma revelação dolorosa que perturbaria necessariamente a felicidade alardeada alacremente pelo seu amante.
A delicadeza do amor pedia-lhe que se calasse, o melindre do pudor acovardava-a, mas o perigo da sua posição de filha-família exigia que ela fizesse o sacrifício e desvendasse aos olhos de Sebastião o futuro que a esperava.
— Você vive feliz, não é verdade? gemeu a voz da moça; pois eu vivo bem triste.
— Ora essa agora, sá Chiquinha; e quem foi que matou as suas pucas?
Esta nova resposta de Sebastião convencia pungentemente à moça de que bem longe estava do pensamento do seu amante aquilatar a extensão da desgraça que exauria-lhe a pouco e pouco a existência.
As lágrimas denunciaram-lhe o sofrimento que por muito tempo se refolhara na esperança, à semelhança de um besouro negro no cálice de uma açucena.
Aquelas grossas e tardas lágrimas eram a série dessorada das ardentes ilusões de outrora, hoje frios cadáveres; corriam estriadas pelo sangue de um coração ulcerado; impunham respeito, e testemunhavam a sinceridade da dor de quem as chorava.
Sebastião foi compassivo ao encontro da tortura que tanto alquebrava a moça.
Conchegou amorosamente ao seu o tronco emagrecido de Chiquinha, e deitou-lhe a cabeça sobre o seu ombro.
— Vejam só isto, disse ele ternamente; está aflita assim e não me disse nada. Diga quem é a causa de seu choro? eu fiz-lhe alguma cousa? alguém lhe ofendeu?
Prorrompendo em soluços angustiosos, que entrecortavam-lhe as palavras, Chiquinha arrancou do íntimo de sua alma este grito desolado, que lhe maltratava o coração, como se fosse uma bala encravada.
— Não é isto; é uma desgraça; há já dois meses talvez que eu sou mãe.
A dor de Chiquinha repercutiu intensa no coração do violeiro; era a erupção vulcânica que, ao passo que esbraseia a cratera, cobre o espaço de filmo, clarões e vômitos vermelhos e faz estremecer todo o solo em derredor.
Depois de uma longa pausa, que pesou como uma barra de ferro sobre o coração da moça, Sebastião com os olhos baixos e a voz afinada na entoação da angústia.
— Só há um remédio, murmurou; fugirmos.
— Fugir, mas meu pai, meu irmão hão de perseguir-nos; mas você prometeu casar-se comigo. Não quero fugir, não devo.
O violeiro estava de feito comovido, e não era com o fim de furtar-se à responsabilidade que propusera o alvitre à Chiquinha; era o meio mais expedito para subtrai-la às iras da família.
— Você disse muito bem, sá Chiquinha, é uma desgraça, soluçou o violeiro. O que não vai ser de nós; esse maldito capitão, seu pai; é uma desgraça, e o único remédio é este, fugir. Mais tarde eu remediarei o mal, juro. Prometa-me que sairá desta casa.
— É o que quiser, respondeu Chiquinha; eu já não sei o que faço.
Desde então os amantes esperavam somente a oportunidade para levar a efeito o expediente desesperado.
O violeiro, certo da gravidade do passo que ia dar, julgou-se desde logo irremediavelmente perdido aos olhos de Motta Coqueiro e ateve-se resignando-se ao seu infortúnio.
Neste estado de espírito foram encontrá-lo no dia em que Manuel João tinha sido forçado pelas circunstâncias a deixar o sítio.
Sebastião era a cabeça que dirigia todos os planos astuciosos do triunvirato. De improviso ele achava os meios para obviarem-se dificuldades consideradas insuperáveis, e além disso integrava com a coragem temerária a covardia dos seus companheiros. Era o Tirteu no meio daqueles dois lacedemônios irresolutos.
Manuel João procurou o seu valioso amigo somente na qualidade de hóspede, porquanto não tinha outra pessoa a quem recorresse. Também limitou-se a narrar o que se passava com ele, deixando à margem as relações do fazendeiro com Antonica.
Vingava-se desta sorte do vendeiro que, em vez de consolá-lo na sua desventura, achara azada ocasião para censurá-lo. Certo de que o Viana nada resolveria por si só, encobrir a Sebastião o que dizia respeito ao vendeiro importava torturá-lo ao menos por alguns dias.
Mas infelizmente para o ex-feitor o seu cálculo foi de relance burlado; duas horas depois da sua chegada à choupana do amigo, o Viana gritava à porta o familiar — olé de casa! e entregava ao critério do protetor e guia comum as suas mágoas e sustos.
O violeiro ouviu com o maior sangue frio a exposição dos acontecimentos que se atropelavam a favor dos três conjurados, respondendo apenas à ansiedade do Viana com um freqüente — continue.
Quando Viana concluiu a narração e aflitíssimo começou a dar aos diabos o pensamento de possuir Antonica, o violeiro desatou numa gargalhada estridente e franca e exclamou com uma alegria feroz.
— Então o Tebas está pelo beiço pela Antonica! É verdade mesmo, o diabo não abandona os seus.
Não era isto o que os dois interessados esperavam ouvir de Sebastião; a calma do violeiro percutiu-lhes a derradeira esperança e ambos bradaram furiosos:
— Com os diabos! Você está sempre a ver motivo para risadas, mesmo quando o caso não é para isto.
— Poiso que e que vocês querem, continuou Sebastião ,que não parava de rir-se; estou com o melro seguro. Vocês vão ver.
Após a expansão estrondosa, que sobremaneira desnorteava os dois timoratos conjurados; Sebastião, assumindo um ar grave, pôs-se a passear de um para o outro lado da sala desornada.
Durou pouco a meditação. Acercando-se de Viana disse o violeiro seriamente:
— Isto de amizade do mais arranjado com o pobre é sempre uma boa pulha. Diga portanto cá, seu Viana; você quer gastar alguma cousa ou não quer?
— Assim como vão as coisas, respondeu o vendeiro, há de ir tudo pelos ares. Estou pronto para a despesa.
— Pois dê-me de cinco a dez mil réis, e deixe rolar o dado por minha conta. Vá para a sua bodega sem medo, porque se o. indivíduo não lhe mandar tirar a vida pelos escravos, há de pagar-nos com língua de palmo.
— Mas o que é que você vai fazer? homem.
— Isto é segredo, escorrupiche o cobre, que é o que serve.
Satisfeita, não sem escrúpulos e pesar, a exigência de Sebastião, o vendeiro tomou para a sua vendola, cujas portas teve a precaução de especar sólida e cuidadosamente.
No dia seguinte pela manha, o violeiro, esganchado sobre a ossada do — Suspiro, ao qual o micuim convertera o couro em um arquipélago, marchava para a casa de Lúcio Ribeiro.
Depois dos cumprimentos ao capadócio, o recém-chegado, arranjando uma entoação de gracejo, perguntou-lhe de súbito:
— Então como vai de amizade com o tutu cá da terra, o grande capitão?
— Mudemos de conversa, respondeu Lúcio; aquilo é biscazinha que nunca me passou da garganta.
— Isto é fumaça, seu Lúcio; se o homem ficar com o governo, você há de mudar.
— Veremos; mas ali fica a serra dos Olhos d'Água e a minha espingarda não nega fogo.
— E se alguém mostrasse um meio de livrá-lo do bicho, você tinha coragem?
— Experimente, respondeu resolutamente o capadócio.
— Se tens coragem, meu velho, põe os arreios ao teu punga e vamos ao Licério. Tu és também da autoridade e o Licério é unha e carne do subdelegado.
Dentro em alguns momentos os dois trigueiros pernósticos marchavam em direção à casa do amigo do subdelegado.
Joaquim Licério, conhecido pela alcunha cigano, tinha grande influência na localidade, pela sua dupla posição de negociante e chicaneiro.
Os moradores do sertão confiavam-lhe todas as suas causas e embora as perdessem, diziam convictos a seu respeito:
— Aquilo é que é um homem para pendências.
Branco, ele não desdenhava sentar-se à mesa com os genuínos da raça africana, nem com os filhos do seu cruzamento; fazia este sacrifício a bem de seu negócio. Também era ele quem apresentava no mercado campista o melhor peixe salpreso da Lagoa Feia, e a melhor garapoca das matas de Macabu. Trabalhavam-lhe a rasto de barato.
Ativo, diligente, intrigante, tudo a bem do negócio, estava sempre trabalhando, porque dizia ele — a família vai crescendo, é preciso agüentá-la.
Devotado de alma ao subdelegado, a quem chamava — o meu homem — só havia uma afeição que lhe era mais cara — qualquer transação comercial por menor que fosse; a esta consagrava-se em alma e corpo.
Quem fosse a Licério e lhe acenasse com uma nota do tesouro ou do banco, podia descansar, que, se ela chegasse para o preço, estava servido.
Tal modo de pensar congraçava em torno do negociante rábula uma clientela imensa e devotada.
A sua casa de negócio, sortida de todos os gêneros, desde o medicamento até a carne de charque, desde a ferragem até as finas cassas, adaptava-se ao verso e reverso da vida humana: era para a saúde e para a enfermidade.
Ali reunia-se a guapa rapazia do lugar, os galhardos dançadores do fado, amantes do murro, das brigas de galo e apostas de natação, e o empório, graças a este ajuntamento diário, assemelhava-se a uma oficina de toques e cantilenas.
Licério animava a freguesia, e demorava com anedotas e intrigas aqueles que se queriam afastar; a causa era o borrador, o seu caro borrador.
Tais eram homem e casa procurados pelo violeiro para desfechar o golpe em Motta Coqueiro.
Recebido pela amabilidade de Licério, o violeiro cortou as expansões do negociante, bradando:
— Eta lá, meu branco; eu não vim para a prosa, mas para serviço; aqui está uma de cinco e entre para o escritório.
— É requerimento, seu diabo, já sei; alguma citação para conciliar; eu tempero a cousa.
— Qual requerimento, interrompeu Lúcio; é uma carta de recomendação para o bom capitão, o nosso amigo Coqueiro.
— Cáspite! exclamou Licério, que percebia o sentido das palavras de Lúcio, e a quem é que se vai recomendar a jóia?
— À pessoa que há de gostar muito da festa; porque o bicho deu em passarinheiro depois dos quarenta; quero recomendá-lo a quem se interessa por esta nova.
Rindo muito amistosamente, os três interlocutores, depois de um a libação a um copo de vinho, entraram para o escritório de Licério.