Na manhã do dia seguinte o inspetor André recebia de Francisco Benedito uma denúncia gravíssima contra Motta Coqueiro e seus escravos.

Dizia o agregado que a sua casa tinha sido alta noite atacada pelos escravos Fidélis, Carlos, Alexandre, Peregrino e Domingos, que por mando do seu senhor tinham ido espancá-lo e pôr fogo à sua casa, crime que não se efetuou por ter ele, Francisco Benedito, caceteado um dos escravos, pondo assim os outros em fuga.

— E creio que não vinham sós, acrescentou o denunciante, porque se não me engano ouvi quando os malvados se retiravam as vozes de Faustino Silva e do Flor.

O inspetor André, que até então tinha ouvido sem protesto e dando aos diabos o fazendeiro, relutou ante a veracidade da presença dos dois últimos indigitados.

— Ainda o Faustino vá lá, porque é capaz de mais, porém Flor, causa-me espanto; é tão metido consigo e nunca houve desordens com ele.

— Nunca?! ora, seu André, não acredite. Ainda há poucos dias ele disse-me que era bem bom que eu morresse; porque sou um malvado. Veja só vosmecê.

Em seguida Francisco Benedito narrou a altercação travada entre ele, Florentino e Faustino, e, para garantir o efeito, carregando artisticamente o colorido e a disposição dos adjetivos.

O inspetor André, sentindo no hálito do queixoso um cheiro pronunciado de álcool, teve siso bastante para descontar-lhe os exageros descritivos e conseguiu asserenar-lhe os assanhados temores, chamando em seu auxilio a galhofa.

— Mas diga-me cá, seu Chico; o Coqueiro anda pela terra? perguntou ele.

— Que eu saiba, não; mas deu ordem para que me desancassem.

— Mas os escravos depois da sova de pau hão de custar muito a cumprir a ordem.

— Pode ser que não; virão todos contra mim e o meu filho, e nós não poderemos resistir.

— Leva sustos, seu Chico; você o que precisa é ter mais confiança na gente. Ouça, depois de amanhã, que é domingo, eu levarei um leitão para comermos e depois conversarmos a respeito da cousa; verá como tudo se arranja.

— Então eu espero por vosmecê.

— E mais o leitão.

O inspetor não dava inteiro crédito à denúncia do agregado e até convencia-se de que o assalto, a se ter dado, devia ser por motivos que Francisco Benedito não ousava comunicar-lhe.

Assim, pois, não tomou nenhuma providência e nem mais pensou no acontecimento.

Francisco Benedito, porém, saiu a espalhar pela vizinhança que o seu compadre mandara matá-lo pelos seus escravos e que o assassinato não realizou-se graças à sua coragem.

A credulidade sertaneja, sempre inclinada a se deixar penetrar por embustes e falsidades, ouviu, murmurou, comentou e finalmente em altos brados apregoou por toda a parte, como verdade, a delação do agregado.

Só à noitinha Francisco Benedito voltou da sua peregrinação. Trazia a alma desafogada, porque o dia tinha-lhe sido uma apoteose. Lúcio Ribeiro, Sebastião e outros tinham-no acompanhado, glorificando-o por tanta valentia em anos tão adiantados.

Na estrada geral, nos mesmos taquaruçus em que Sebastião e o agregado realizaram o seu plano contra o fazendeiro, dois homens estavam desde manhã cedo emboscados.

Um deles, troncudo e baixo, de feições grosseiras, cor de casca do jenipapo, nariz chato e beiços grossos, cabelos duros e corridos, tinha a acentuação medonha da misantropia. Riam-lhe a cólera e o escárnio ao canto dos beiços, nos quais ouriçavam-se raros alguns pêlos de barba.

Olhava sempre de través o seu companheiro e só falava-lhe quando instigado.

Vestia-se de uma calça de algodão mineiro, cuja cor branca, havia muito, mudara-se em cor de cinza intenso, mosqueada por largas manchas de barro. uma camisa de chita escura, em cujo campo arredondavam-se uns olhos vermelhos como sangue, abria-se-lhe no colarinho deixando ver o colo carnudo e queimado.

Um chapéu de palha da Angola, de abas desmesuradas e caídas, atado por uma estreita fita negra por debaixo do queixo, escondia-lhe a testa e fazia-lhe sombra ao rosto, tornando ainda mais temerosos os olhares lançados por umas pupilas distendidas e negrejantes sobre córneas sangüíneas.

O olhar, interrompido apenas por morosos pestanejares, tinha a fixidez especial das aves notívagas.

O outro, comparativamente franzino, escondia quase todo o rosto em lenço que, de sob o manto, subia-lhe até o meio da cabeça; mas viam-as pomas salientes e as órbitas fundas, e a testa terminada pelas sobrancelhas negras e o nariz avolumado, característico da raça cruzada.

Era um tipo vulgar, sem um traço apenas que o recomendasse a uma observação aturada.

Ao ouvirem a conversação dos três companheiros de viagem, o mais franzino dos emboscados disse precipitadamente ao outro:

— Agora não nos escapará; a escuridão permitirá que não nos descubram e ninguém pensará que somos nós os autores. Vamos; prepare-se.

O misantropo nada respondeu, apenas levantou os olhos desdenhosos, e deixou-se ficar sentado, como até então estava.

Confuso com essa indiferença, o que falou prosseguiu:

— Já não me engano facilmente, e sei perfeitamente distinguir a voz dele, esteja em meio de milhões de outros. Escute; o malvado aproxima-se.

De feito, as vozes distinguiam-se claramente e podia-se mesmo ouvir a conversa dos transeuntes.

— Foi aqui que o bicho quase esticou a canela e foi dar contas ao diabo; que pena não lhe acertar bem o cacete! dizia Lúcio Ribeiro.

— Qual, foi só uma arranhadela que lhe fizemos. — Com um tiro, disse em seguida, Sebastião, levantando a voz, hei de varar a qualquer desalmado que aí nos esteja ouvindo.

— Só se for alguma cobra, porque os negros ficaram bem convidados e já não caem noutra nestes meses mais próximos, advertiu Lúcio.

— Cautela em todo caso; passemos rente à barreira porque os taquaruçus são boas tocas de onças. E nós que o digamos; observou o agregado.

Dentro da touceira das gigantescas taquaras os dois emboscados representavam uma cena silenciosa, enquanto blasonando os três atravessavam a estreita curva da estrada.

O homem possante, rastejando sem ruído sobre folhas secas, viera protegido pelas árvores colocar-se à beira da estrada, e com ele o sôfrego companheiro.

Este, descobrindo o grupo, levou o dedo ao gatilho de uma espingarda que trazia consigo, mas ficou logo sem movimento, porque a mão do outro tolheu-o com a força das duas peças de um torno, apertadas vigorosamente.

Os palradores passaram impunemente. Quando já se haviam distanciado, o mais impaciente dos emboscados, levantando-se, disse ao outro, que também se pusera de pé e sorria o habitual sorriso de escárnio:

— Eu não posso mais; há quase um ano que por vezes temos tido ocasião de acabar com isso, e vosmecê deixa sempre com vida o nosso inimigo. Se não nos é possível vingar-nos, o melhor é cuidarmos de outra cousa.

O corpulento emboscado sorriu e sacudiu os ombros.

— Quem quer vingar-se não faz como vosmecê; parece mais o anjo da guarda do que uma pessoa que está zangada e quer desforrar-se de outra. Eu vou seguir o meu caminho, como entendo, e o resto fica entregue à minha sorte.

— Não, isto não pode ser mais, arrastou-se a voz rouca do emboscado: eu dei a você, e só a você, o meu segredo, que morava comigo lá vão muitos anos. É obrigar-me a ser mau, porque eu mato-o se desconfiar que quer fugir de mim, perder-me e sacrificar o meu ódio.

— E por que não se decide, por que está a demorar isso? Mate-me, é até um benefício.

— Não mato por ofício, mato por vingança. Ainda Francisco Benedito não tinha um filho, e eu já o seguia como um cão de caça à pista dos caitetus. Tenho-o tido muitas vezes ao alcance da minha faca; bastava um salto para enterrá-la até o cabo naquele coração leproso. não quis, não o fiz. Nos primeiros tempos eu derramaria apenas o sangue dele e da mulher, e não me bastava. não se apaga uma forja com pingos d'água.

Depois veio um filho, depois outro, mais outro, e eu dizia comigo: é tempo, há sangue bastante nesta raça para saciar, que não para extinguir, o meu ódio. Mas pensava depois e lembrava-me que ainda havia no corpo do meu inimigo forças para aumentar o pasto à minha ira, e esperei.

Eu sou filho de caboclo; do goitacás que odeia sem barulho, que sofre sem queixar-se, que morre sem gemer. Meu pai acostumou-me em criança a passar o dia à popa de uma canoa à espera que o piau farto se levantasse do fundo do rio, e viesse colocar-se ao alcance das nossas flechas. Estas atravessavam as águas sem ruído e a morte do peixe, que durante longas horas espiávamos, se anunciava apenas pela cor do sangue que vinha à flor do rio. Espero, esperarei para matar assim. Do que me serviria matar, para vingar-me, se ao cabo iria parar a uma prisão, onde a minha existência seria ainda mais cruel.

Eu não peço a você que me ajude, peço apenas que não me faça perder tantos anos dedicados à minha vingança. Este ódio é a minha vida, tirem-mo, e eu morrerei. Para satisfazê-lo, hei de fazer cair quantos encontre em meu caminho. E qual é a causa que o move? No dia em que nos encontramos, vosmecê disse-me somente: "Não é assim que um homem se desforra; segue-me." Acompanhei-o; nunca perguntou-me sequer por que razão eu ia perpetrar um crime, e nunca também me disse o seu nome, nem perguntou pelo meu. Pensa talvez que eu sou levado por uma questão sem valor, por uma criançada, e zomba de mim.

— Se eu não lhe tivesse lido no coração, não chamá-lo-ia para junto de mim. Quem se resolve ao que você resolveu-se, é porque tem uma dor grande.

— Pois saiba que é mais do que uma dor, é uma desgraça. A filha do nosso inimigo venceu-me, fiz-me seu escravo. Vivia só por ela sem importar-me com o mundo: não tinha nada com ele. Houve um dia de loucura na minha vida, porém quis pagá-lo com o grande amor que tenho àquela mulher e no entanto ela fugiu-me como a um cão danado.

— Foi então que você decidiu-se a matá-la, expondo-se à justiça. Criança! O ódio precisa de crescer, reforçar-se e criar cabelos brancos para depois ter ação; ao contrário tem a sorte das crianças, que brincam com espingardas: ferem-se ou suicidam-se.

O narrador não parecia ter atendido ao seu interlocutor, e continuou:

— O mais cruel é que eu penso que é por um outro que ela me despreza. Este é rico e forte; pode tudo e insultou-me, e correu-me. Oh! se ele há de pagar-me!

O pai dela tentou perseguir-me, ao passo que anda de mãos dadas com um miserável que me perdeu, e lhe perdeu uma filha. Por quê? há alguma diferença entre nós? ambos somos da mesma casta, ambos pobres. Por que, pois, repelirem-me. Hei de vingar-me, e duplamente, porque eles escarneceram da minha fraqueza!

Tenha pena de mim, abrevie o meu sofrimento; veja que eu não posso por muito tempo conservar-me na casa de um homem a quem odeio; bem posso um dia perder a cabeça e então lá se vai toda a minha esperança. É uma crueldade fazer-me seguir quase sempre os passos do infame agregado; é uma falta de piedade; se vosmecê não quer já acabar com ele, para que havemos de espreitá-lo sempre?

— Suponha que é para descobrir o melhor ponto para cravar-lhe uma bala, ou vará-lo de lado a lado com a minha faca. Mas não é isto o que nos importa. Qual é o outro homem que o insultou, qual o seu nome?

— Motta Coqueiro, o dono deste sítio.

— O filho do Goitacás sabia; mas queria que você confirmasse, para lhe dizer o seu plano. Ontem, quando à noite eu estive no terreiro da casa do nosso inimigo, os escravos desse homem apareceram para tomar contas às malfeitorias de Francisco Benedito. Depois um deles quis pôr fogo à casa. Hoje todo o Macabu deve saber disto, porque desde pela manhã Francisco Benedito anda de um para outro lado.

— Mas o que temos com isto?

— O que temos? E é você que diz que sabe odiar! O que temos: você uma dupla vingança; a ambos nós a liberdade.

— Ah! exclamou o interlocutor, levando a mão à testa.

— Entendeu agora? Pois bem, trate de saber quando chega o fazendeiro; até lá esperemos.

Os dois personagens misteriosos separam-se taciturnos e cabisbaixos, sem que ao menos houvessem trocado um aperto de mão.

Via-se-lhes no aspecto que a sua aliança carecia de um sentimento puro, que os fizesse desdobrarem o íntimo nas expansões, que se esbatem à luz, serenas e descuidadas.

Ao contrário faziam recordar as lendas das feiticeiras e demônios que se reúnem nos lugares ermos, obumbrada a claridade do céu por um reposteiro de trevas e só então começam o tripúdio sombrio, em que as visagens e os esgares medonhos substituem as palavras meigas e os sorrisos afáveis.

O mais robusto dos dois internou-se pelo capoeirão, caminhando sem hesitar, como quem era assaz prático em romper por entre a rede espessa de lianas, trançado de galhos, e os acidentes do solo do lugar.

Sob os seus passos de longe em longe estalitavam as folhas e os pauzinhos secos, mas tão imperceptivelmente que ninguém poderia crer que por ali passava um homem.

Após meia hora de caminho, parou sob uma árvore frondosa, cuja ramagem caía como uma cúpula sobre as franças de outras menores, recortando um enorme disco virente.

Um vasto recinto circular, estofado por folhas mortas, fechava-se aí pelo teto e tapagem de árvores, e servia de habitação aos dois companheiros.

O recém-chegado, fazendo fuzilar o seu isqueiro, acendeu uma pequena fogueira e depois tirou do oco da árvore um cobertor escuro, e um saco, e separando as folhas do chão trouxe para junto de si duas foices polidas.

Sobre o cobertor estendido deitou a espingarda, que trazia consigo, e em seguida foi para junto do fogo onde começou a aquecer provisões para uma sóbria refeição.

Visto ao clarão avermelhado da pequena fogueira, aquele rosto, onde a maldade estereotipara-se na sua mais precisa acentuação, lembrava os gênios maus da floresta, criados pela imaginação supersticiosa dos selvagens.

Enquanto no isolamento e no mistério o recém-chegado quedava acocorado junto da fogueira, o sôfrego companheiro deste homem, que durante longos anos apascentava em silêncio os mais ferozes pensamentos de horrorosa vingança contra Francisco Benedito, caminhou em busca da notícia da qual dependia o espanejamento dos seus instintos sangüinários em uma alegria satânica.

O caminheiro, andando com uma presteza incrível, chegou ao sítio antes da hora em que a voz do feitor ordenava o recolher e por isso não esperou por muito tempo para ouvir alguma cousa que o interessasse.

A princípio colocara-se por detrás das senzalas todo atenção e ouvidos, mas para logo atraído pelo eco de duas vozes, arrastando-se cautelosamente veio postar-se entre o vão da casa do feitor e o lanço em que moravam os escravos.

Na porta da senzala, Carolina, que já restabelecida tinha voltado para a roça, conversava com a tia Balbina.

— Parece que vamos ter chuva, disse Carolina, vosmecê não vê que nuvem tão negra está ali parada por cima da casa grande?

— Pode ser que seja o quarto da lua com trovoada e a pedra do raio; é quase sempre assim, mas a pedra do raio não cairá sobre a casa dos brancos.

Deus há de livrar-nos disto: lá está na porta a Estrela do céu.

— Mas a água da chuva pode fazer cair a oração, disse a feiticeira elevando a voz; já tem-se visto, e, quando a Estrela cai, Deus fecha os olhos para a banda da casa que a perdeu.

— Ave Maria! tia Balbina, Deus não há de permitir que venha ainda mais cita desgraça.

— Não; a felicidade é para os brancos, a desgraça é para os cativos. Quando das costas de Balbina as feridas do chicote lançavam fumaça, como a boca aberta em dia de frio, a senhora brincava com o caçula doente, batendo-lhe com a ponta do dedo nos seus beicinhos vermelhos.

A mucama, parada junto dele, ria contente sem se lembrar que a sua parceira, cheia de dores, arribava o eito, gemendo no coração.

Quando, de noite, o caçula tossia a sua doença, todos logo de pé corriam para ver e saber o que é que ele tinha, e quando de noite a escrava quase a morrer de raiva e de cansaço veio deitar-se na esteira da sua cama, só a pobre Carolina teve uma lágrima e um pouco d'água com que lavasse as feridas da infeliz. Não; a felicidade é para os brancos, a desgraça é só para os cativos.

— Foi assim mesmo, tia Balbina, mas vosmecê já está vingada; basta só o negócio do agregado.

Balbina sorriu, sacudiu os ombros, raspou as mãos uma sobre a outra, e depois disse dissimuladamente:

— Pode ser.

— Está mesmo vingada, porque se disseram que vosmecê era feiticeira e o senhor acreditou, hoje também o agregado foi espalhar que o senhor tinha mandado pôr fogo à casa dele e todo o mundo deu-lhe crédito.

— Engano de você, criança, ninguém disse isto.

— Antes não dissessem; mas o Carlos contou-me que tinha ouvido na venda. Vosmecê bem sabe que ele hoje não trabalhou; porque está com o pé destroncado por um jeito que deu ontem de noite, quando foram à casa de seu Chico.

— Quem? ele foi...

— Com Fidélis, Peregrino e Alexandre. O filho de seu Chico arrumou uma cacetada em Alexandre e eles correram para defender o outro. No pulo que deu, Carlos destroncou o pé.

— E o que foram eles fazer? Balbina dormiu o sono do cativeiro antes que o galo cantasse; estava cansada; não pôde ouvir ao seu anjo da guarda o que fizeram de noite os escravos do mau senhor.

— Eu lhe digo, tia Balbina. Fidélis aturou até agora tudo que o agregado tem querido fazer; mas os brancos disseram à minha vista que Fidélis tratasse de botar para fora aquele homem, fosse como fosse. Ontem as madeiras amanheceram fundeadas no rio e o feitor, vendo que só o agregado faria esta maldade, foi à casa dele para meter-lhe medo.

Enquanto Fidélis arrazoava lá com seu Chico, o filho veio por fora e deu uma cacetada em Alexandre, que estava da parte de fora. Então o feitor muito zangado quis pôr fogo à casa do agregado, e se ela não ardeu foi porque Carlos lembrou-lhe que o senhor gosta de sá Antonica.

— E quem foi que disse a Carlos que o senhor gostava da filha do agregado? perguntou a feiticeira.

— Ele via e a senhora já sabe também e tanto que é a causa da maior raiva. não sei por que, mas eu tenho uma cousa que me diz que, amanhã; quando o senhor chegar, há grande desgraça aqui.

Como se não ouvisse mais as palavras de Carolina, a feiticeira, levantando-se com os olhos fitos no céu, ergueu o braço e, apontando para a nuvem negra, resmungou junto da face de Carolina.

— Olha a nuvem; cresce cada vez mais. Está como o luto da morte; negra, negra. O quarto da lua traz trovoada e a pedra do raio; a estrela do céu vai cair da porta dos brancos. Balbina saberá do canto do galo quem disser que a estrela caiu da casa do mau senhor. Vai dormir, criança.

Sem forças para resistir à intimação da feiticeira, a crioula entrou logo na sua senzala e só depois de ter fechado a porta saudou com voz trêmula a vingativa escrava.

Balbina afastou-se lentamente e dentro em pouco entrou em casa, fazendo arruir a fechadura.

Tudo ficou silencioso e o vulto do espião perfilou-se no oitão da casaria.

— Amanhã; bem ouvi, amanhã; resmungou ele; não quero perder um minuto mais, tenho sede de sangue daquela raça. Oh! meu amigo, qual não será a tua alegria.

Alta noite, na hora em que a superstição prende sob os tetos os moradores do sertão, duas pessoas afrontavam corajosas as aparições de almas penadas e o ranger de dentes dos lobisomens.

Como se uma das grandes nuvens negras, que escureciam o céu, tivesse descido à terra e deslizasse, cosida com as paredes, pela face da casaria do sítio; um vulto, que pulara a janela de uma das senzalas, aproximou-se a pouco e pouco da casa grande. Na última porta que abria sobre a sala de visitas, alvejava um papel, no qual desenhava-se uma larga cruz, emoldurando algumas linhas de caracteres tipográficos.

O vulto parou diante da porta, e depois de escutar atentamente, subiu à soleira e correu a mão sobre o papel. Esperou algum tempo, e afinal levou de novo a mão ao mesmo ponto da porta. Tinha desaparecido daí o sinal que alvejava nas trevas.

Com a mesma precaução o vulto tomou para a senzala de onde tinha e a luz de um candeeiro iluminou o interior.

Quem olhasse pela fresta da janela viria agora a tia Balbina, diante do candeeiro, sorrindo e remirando um papel que tinha nas mãos.

Depois de minucioso exame, a feiticeira chegou à chama o papel que tinha nas mãos, e atirou-o ao chão. A combustão foi rápida; em alguns segundos estava convertido em cinzas.

— Agora, disse ela fitando-o; raça de brancos, sem coração e sem piedade, zomba do raio de Deus que vem na nuvem negra do quarto da lua, e foge também da vingança da escrava. Os sinais do castigo ainda estão vivos nas da feiticeira, e, enquanto eles durarem, Balbina não terá perdão. Viesse embora o caçula, alvo como a flor da canema apertar nos braços, e beijar a sua ama; a lembrança do castigo, e a sede da vingança não sairiam da alma da negra. A cobra ofendida espera para matar ou para morrer.

A escuridão estendeu-se no interior do quarto.

A esta hora ainda o espião aventurava-se através da mata em demanda do pouso, em que o esperava o seu companheiro.

O homem, que durante anos assanhara gradualmente o sonho de seva desforra contra Francisco Benedito, depois da refeição começou a passear de um para outro lado do escondrijo, traindo, apesar da estagnação do semelhante, uma impaciência febril.

Por vezes avivou o fogo, engatilhou a espingarda, e alimpou no saco a folha das foices, recomeçando depois o seu automático passeio.

Afinal, parou e tirou da bainha uma larga faca e olhando-a e correndo-lhe o dedo pelo fio, rosnou entre um sorriso:

— Deves estar envergonhada da minha fraqueza. Eu já não te mereço o gume que corta no ar um fio de cabelo da raça do meu inimigo. Perdão, minha companheira.

E os lábios da fera pousaram, e demoraram-se num beijo longo sobre a lâmina pálida e lanceada da arma. Era o idílio do crime, alumiado por um braseiro, a fazer lembrar as cenas que a imaginativa religiosa desenha nas grutas inflamadas do inferno.

Interrompido bruscamente o beijo, o facínora disse resolutamente:

— Não cedo, não quero ceder nem uma gota de sangue da geração que há longos anos condenei. Que me importa a mim que outros queiram vingar-se? Nenhum tem sofrido mais do que eu. Tenho mulher e não penso nela; tenho filho e fujo de afagá-lo; e, coitadinho, quando eu volto a casa vem esperar-me no terreiro para pedir-me a benção. Mulher e filho agradecem-me o pouco que posso conseguir com as horas de trabalho roubadas à minha vingança; choram de alegria, e eu nem demoro-me para consolar-lhes as contínuas saudades.

Qual é o outro que tem igual direito ao sangue da raça amaldiçoada? Ódio de dois dias, sem raízes e sem sacrifícios, eis o que deseja partilhar comigo a vingança! Não cedo, não quero ceder. É minha, minha só a vida da família indigna; só eu hei de saciar-me no seu sangue. Juro!

Quase ao romper d'alva o espião reuniu-se ao seu companheiro.

— Chega amanhã à noite; amanhã, amanhã, exclamou ele, parando diante do taciturno companheiro.

O silêncio deste impressionando-o profundamente, perguntou-lhe o espião, mordido pelo despeito:

— Então vosmecê não se alegra.

— Não.

— Pois não vai acabar os seus desgostos.

— Sim, mas Deus quer que não seja eu quem me vingue; escolheu outro para manejar a arma.

— Outro; eu, não é verdade; sou eu? Hei de manejá-la, hei-de? com a força do meu ódio.

— Não és tu também, é outro.

— Oh! homem malvado, exclamou o espião, pois você pensa que eu consentirei? Antes morrer.

— Cala-te aí já! Se eu não devo fartar-me no sangue do outro, quem me diz que não posso beber o teu, a quem confiei o meu segredo e que me queres perder? Ouve bem; não irás amanhã à noite à casa do inimigo; deixa que as mãos escolhidas por Deus se incumbam da vingança. Escuta e pensa; eu ando sem ruído como o peixe nada no rio; mudo de pouso como o vento muda de rumo; se não me atenderes, fugirás em vão. Para que me pudesses descobrir era preciso pôr em terra todas as matas e arrasar todos os morros; desde os que se sobem correndo, até os que se vestem de nuvens. Ainda assim era preciso secar todos os rios; eu corro como o veado, mergulho como a anta e bóio sobre águas como a vagem do ingá à mercê da correnteza. Escuta e pensa; o sangue do inimigo só correrá pelas mãos escolhidas por Deus.

— Maldita a hora em que nos encontramos; eu não recuaria com medo! não seria fraco!

De um salto o homem robusto tinha empolgado e atirado por terra o companheiro, ao qual subjugava com um joelho sobre o ventre e uma das mãos sobre a garganta, enquanto na outra brilhava a faca luzidia.

Mas a explosão de cólera extinguiu-se de chofre e o espião foi deixado em liberdade, ferido apenas por um sarcasmo.

— Criança; vê se eu sou medroso e fraco; ali estão as armas, mata-me!

— Oh! meu Deus; eu sou bem desgraçado, soluçou o miserável.

A noite calada e escura e após ela uma aurora triste, parcamente gazeada e tocada apenas por uns efêmeros tons avermelhados em estreita barra de um céu cor de chumbo, estenderam-se entre o silêncio dos dous companheiros.

Seguiu-se da mesma sorte o dia, suando por entre nuvens carregadas baça e tristonha claridade, que se umedecia passando através de impertinentes chuviscos periódicos, que, batendo na folhagem, enchiam a mata de abafados sussurros.

Ao anoitecer, o filho dos goitacases acercou-se do seu companheiro e disse-lhe buscando armar-lhe pelo carinho do acento a boa vontade.

— Esta noite você vai descansar na casa do amigo. Pode ir sem rancor de mim; a sua vingança nem por isso deixará de ser levada a cabo. O rio que volteia pela serra há de chegar a cair na várzea. Agora ou logo, que importa? Vai em paz.

O ouvinte não respondeu; taciturno, pegou da sua espingarda e de uma das foices e caminhou para a saída do escondrijo.

— Não mereço mais nem um adeus?! não faz mal; não tardará que você compreenda que eu soube pagar a confiança com que acompanhou-me, sem saber ao menos o meu nome. Breve voarão sobre a cabeça do amigo os sonhos serenos; o pesadelo da ofensa há de mudar-se no desafogo da vingança. Se esta não é tomada pelas suas mãos, Deus sabe a causa. Ambos temos sofrido muito, mas a sorte não quer que sejamos nós os que demos a satisfação às nossas dores. Paciência. Entretanto ninguém mais do que eu tinha o direito de dizer ante a vida da família condenada: — é minha, minha só; mas você vê bem que eu não desespero. Algum dia vir-se-á a saber a história do homem que você encontrou no caminho da vingança; compreenderá então como era triste. Pode partir.

— Não será mais do que a minha, adeus!

O caboclo não se demorou muito no escondrijo após a saída do companheiro. Antes porém de retirar-se cavou com a foice um buraco, enterrou o saco das provisões, e abriu com a ponta da faca na casca da árvore uma enorme cruz.

— Por mais que tu cresças, disse ele olhando para árvore, não se apagará este sinal, e os meus poderão saber se eu tive ou não coragem de vingar-me.

Seriam dez horas da noite quando os leques das bananeiras, que se erguiam no terreiro da casa de Francisco Benedito, estremeceram ao de leve, como o capinzal por onde as preás correm amedrontadas.

Um vulto saiu dentre elas e caminhou vagarosamente em torno de toda a casa. Certificou-se de que ninguém o via.

Voltando à frente da casa e agarrando-se aos entulhos da parede, marinhou até à cobertura de sapé, cuja superfície molhada pela chuva não deixou ouvir o menor estalido.

Separando cautelosamente as ramas do teto, conseguiu em poucos minutos desaparecer através dele.

Na sala de visitas, onde dormiam três crianças alumiadas por uma lamparina colocada sobre uma velha mesa diante de um tosco oratório, apareceu o homem que tinha gravado a cruz na casca da árvore.

Depois de se ter inclinado sobre as crianças, e fitado-as por algum tempo, abriu sem ruído a porta, saiu, caminhou até as bananeiras e voltou logo trazendo consigo a foice e a espingarda. Fechou de novo a porta e guardou a chave sob o oratório.

Como quem conhecesse perfeitamente a disposição dos aposentos, seguiu pelo corredor que abria ao fundo da sala.

Na sala de jantar, sobre um estrado, ressonava o bom sono da confiança o filho do agregado. O visitante noturno viu-o, graças à claridade que frouxamente derramava-se na sala, e sorriu.

Depois abaixou-se sobre ele e balançou-o, dizendo baixinho ao moço que assentara-se sobressaltado:

— Não me conheces, não é verdade? Pois sabe que sou um amigo de infância de teu velho pai. Ouvi ontem a história do assalto dado aqui pelos escravos do capitão. Este chegou hoje e não tardará que venha concluir a sua obra. Vem comigo, e dali das bananeiras com as nossas duas espingardas defenderemos a casa. Vem.

O moço, que não teve tempo de refletir, levantou-se de um pulo e, seguindo o que ele julgava amigo da família, saiu com ele pela porta dos fundos, que foi fechada por fora.

Logo porém que chegaram junto às bananeiras, com a agilidade e certeza de um bote de tigre, Juca Benedito foi colhido pelas mãos vigorosas do homem possante, e sem que tivesse podido proferir uma palavra, caiu em cheio por terra.

O homem voltou de novo à casa, acendeu com o maior sangue frio um candeeiro e dirigiu-se à cozinha.

Tirou da bainha a faca ensangüentada e, cortando com ela uma corda que se estendia de um canto a outro do vão, dirigiu-se em seguida ao quarto da sala, depois de ter trancado e guardado as chaves de todas as portas, e posto a foice por detrás do estrado.

Dormiam nesse quarto Francisco Benedito e sua mulher.

O intruso, de uma reviravolta, amarrou os braços que o adormecido tinha cruzados sobre o peito.

O agregado levantou-se de chofre; mas não pode clamar por socorro porque foi no mesmo instante amordaçado.

Despertada pelo abalo que produziu no leito o pulo do marido, e vendo diante de si aquele homem com um sorriso mau a contrair-lhe os grossos beiços, ao passo que o marido forcejava para libertar-se de suas mãos, a pobre senhora precipitou-se corajosamente sobre o malvado.

Francisco Benedito já havia caído, porque com uma ponta da corda foram-lhe amarrados os joelhos.

O facínora esperou calmamente o assalto da fraqueza feminil, encorajada pela dedicação e o amor.

As mãos da esposa seguraram-se como duas tenazes aos braços do homem; enquanto que sua flébil voz, querendo bradar, murmurava apenas:

— Malvado, que mal te fizemos nós?

Os olhos do agressor fuzilaram francamente a cólera longos anos represa, e ele respondeu aparentemente sereno:

— Nenhum! Bem sabem que nenhum.

— Salvai-nos, meu Deus; estamos todos perdidos, exclamou angustiosamente a senhora.

— Nem Deus, nem o diabo!

Proferindo estas palavras, os punhos do agressor, calcando sobre os ombros da desventurada esposa, fizeram-na cair de joelhos.

— Mate-nos, se tanto deseja, mas poupe nossos filhos, que não lhe fizeram mal nenhum.

O monstro riu-se e à proporção que, posto um joelho sobre o estômago e arqueada a mão sobre a garganta da infeliz, estrangulava-a cinicamente, dizia entredentes:

— Eu não esperaria tanto tempo para vingar-me se bastasse-me tão pouco sangue. Irão todos, um por um, desde o menor até o maior. Bem sabe que já perco um dos da tua raça; é demais.

E o monstro continuava na sua pressão feroz, ainda que sob ele já não estivesse mais que um cadáver, cujos olhos desmesuradamente abertos e salientes pareciam querer feri-lo como se fossem dois punhais.

— Amigo Francisco, disse o monstro que se levantara; vais ver como se é leal e bom pagador.

O agregado apenas podia soltar gemidos abafados. O monstro arrastou-o até à sala de visitas.

Ouviam-se dentro os gritos das duas filhas mais velhas, que batendo à porta do quarto, a qual o facínora tinha tido o cuidado de fechar, exclamavam angustiadas:

— Abram-nos a porta; perdão! perdão para nosso pai.

Por sua vez as três crianças acordadas, vendo o velho pai estendido por terra, e o homem de má catadura caminhar para elas, choravam, pedindo-lhe que não as matasse.

— Berra, corja miúda, berrarás em vão. As portas estão fechadas, e a estas horas não passa viva alma pela estrada.

Pegou então na menor das três crianças, empurrando as outras que, de joelhos e agarradas à irmãzinha, pediam por ela. As duas pobrezinhas caíram abraçadas uma com a outra, enquanto que o monstro, sacudindo pelos cabelos a criancinha, esbofeteava-a sorrindo.

Depois cravou-lhe na garganta as unhas de fera, balançou-a no ar e atirou-a ao lado do angustiado pai, que vasquejava a sua desgraça.

— Por istozinho, disse ele apontando o cadáver, nem valia a pena incomodar-se um homem; porém era uma viborazinha que ficava. Vamos às outras.

Durante o estrangulamento da irmãzinha as duas meninas tinham se levantado e corrido para o interior, debalde, porque não tardaram a ser descobertas pelo assassino, que as arrastou até à sala.

Uma delas teria oito anos, e a outra onze.

— Vamos primeiro acabar com a mais moça, amigo Francisco, resmungou o malvado. E preciso que eu ganhe força para sair perfeito o trabalho.

Com violento empurrão a menina foi estirada ao chão, e o demônio do ódio levantando o pé, bateu-lhe em cheio nas costas. Uma golfada de sangue espadanou e foi cair sobre o agregado, e mais uma vítima foi imolada a uma vingança de causa desconhecida.

A menina de onze anos foi então arrastada pelo monstro, que assentando-se num mocho obrigou-a a sentar-se nos seus joelhos.

A lubricidade veio então misturar-se à ferocidade.

— É realmente bonita, e, pelas dores que tenho sofrido, juro-te, amigo Francisco, o meu coração está a pedir-me que eu não mate-a.

Houve um instante de silêncio, durante o qual o pudor da menina, quase desfalecida, foi posto a tratos pelo facínora.

— An! seu capitão! que mal lhe fizeram as crianças, tenha dó delas.

Este grito de desespero, proferido por Antonica, deteve em meio uma cena de iniqüidade indizível.

O malvado ergueu-se de súbito e arrastando após si a presa, acocorou-se junto de Francisco Benedito.

— Ouviu o que disse a sua filha, amigo Francisco? Ela pensa que é o capitão quem se desforra neste momento; e todos, quando encontrarem esta casa contendo os pedaços da tua raça, hão de pensar também que foi o capitão o autor desta vingança. E eu viverei tranqüilamente; nem ao menos podes levar a esperança de que eu sofra um pouco, uma hora somente! Quanto é bom ter-se como tu, amigo Francisco, inimigos a cada canto! Os que são mais ofendidos podem castigar sem temor. Há quem sofra por eles.

A faca do assassino sumiu-se na região torácica da indefesa menina, e duas vezes mais cravou-se-lhe no seio.

Quando a vítima não dava mais sinais de vida, o monstro passou pelos beiços a lâmina ensangüentada e disse demoradamente:

— Oh! como é tão doce e cheiroso o sangue dos teus. Devias amar muito a tua mulher, amigo Francisco, para que tivesses filhas tão bonitas. Faltam-me ainda duas e é preciso que eu dê conta da tarefa antes que o dia clareie.

A porta do quarto, em que o assassino tinha prendido as duas moças, abriu-se e ele, encostado à foice que antes escondera, esperou que as desventuradas saíssem.

As infelizes, abraçadas num canto da casa, soluçavam de modo a comover as feras. O pavor tolhia-lhes o movimento. Eram duas estátuas de desespero confundindo nas lágrimas o seu desconsolo.

— É preciso que venham tomar a bênção a seu pai antes que se separem dele, disse o monstro; eu quero ser bom para vocês.

— Oh! isto é demais! bradou Antonica, precipitando-se sobre o assassino; mate-nos mas não escarneça.

A coragem da moça comunicou-se à sua irmã e ambas atiraram-se valorosas sobre o frio matador.

Mas a foice, vibrada vigorosamente, fendeu pelo meio o crânio de Mariquinhas, e a desventurada vacilou, e para logo baqueou inundada por uma onda de sangue.

Antonica tentou em vão fugir às mãos do homem desapiedado. Num lance d'olhos fora por ele subjugada e arrastada até junto do velho pai, a quem a vida era ainda conservada a custo de tanto tormento.

— Mate-me; é um benefício; mas diga a quem lhe mandou aqui, diga a de que mesmo na hora em que mandou matar-me eu disse que o amava.

O monstro buscou inutilmente profanar aos olhos do pai subjugado a grinalda virgínea da infeliz amante, o heroísmo do pudor teve forças para resistir-lhe e o bárbaro e desumano assassino viu-se obrigado a santificar com a morte a virgindade de Antonica.

— Confessa, amigo Francisco, disse o escárnio da fera; confessa que eu sei vingar-me. Já não contavas comigo, e entretanto não esqueci a divida de outrora; pago-a com juros. Morre pois, oh! cão!

A planta do selvagem colocou-se sobre a garganta de Francisco Benedito, que estrebuchava violentamente. Depois o monstro recuou um passo e disse como que arrependido do seu ato:

— Não! envenenaste a minha vida, morre como o sucuruiu.

Uma foiçada, desfechada nas têmporas do agregado, pôs termo ao seu inenarrável sofrimento.

Concluída a matança, o monstro ateou fogo aos quatro cantos da casa e saiu lentamente, deixando sobre a mesa a lamparina, cuja luz alumiava agora cinco cadáveres!

A escuridão do terreiro epancou-se pelo clarão vermelho dalgumas labaredas, e o monstro, parando e voltando-se para a casa incendiada, exclamou com trêmulo e sombrio acento:

— Ninguém! Amanhã tudo isto será um monta-o de cinzas e não haverá um criminoso pela extinção da família do malvado.

As últimas palavras foram porém acompanhadas pelo ronco longínquo de um trovão, e alguns segundos depois as nuvens negras do céu despejavam sobre o incêndio uma chuva torrencial.