Tinha vinte e sete anos o Padre Flávio, quando começou a carreira de pregador para a qual se sentia arrastado por uma vocação irresistível. Teve a felicidade de ver começada a sua reputação desde as primeiras prédicas, que eram ouvidas com entusiasmo por homens e mulheres. Alguns inimigos que a fortuna lhe dera por confirmação do seu mérito, diziam que a eloqüência do padre era insossa e fria. É pena dizer que esses adversários do padre vinham da sacristia, e não da rua.
Bem pode ser que entre os admiradores do Padre Flávio alguns fossem mais entusiastas das suas graças que dos seus talentos — para ser justo, gostavam de ouvir a palavra divina proferida por uma graciosa boca. Efetivamente o Padre Flávio era uma soberba figura; a sua cabeça tinha uma forma escultural. Se a imagem não ofende os ouvidos católicos, direi que parecia Apolo convertido ao Evangelho. Tinha magníficos cabelos pretos, olhos da mesma cor, nariz reto, lábios finos, a testa lisa e polida. O olhar ainda que sereno, tinha uma expressão de severidade, mas sem afetação. Aliavam-se naquele rosto a graça profana e a austeridade religiosa, como duas coisas irmãs, dignas igualmente da contemplação divina.
O que o Padre Flávio era no aspecto, era-o também no caráter. Pode-se dizer que era cristão e pagão ao mesmo tempo. A sua biblioteca constava de três grandes estantes. Numa estavam os livros religiosos, os tratados de teologia, as obras de moral cristã, os anais da Igreja, os escritos dos Jerônimos, dos Bossuets e dos Apóstolos. A outra continha os produtos do pensamento pagão, os poetas e os filósofos das eras mitológicas, as obras de Platão, de Homero, de Epíteto e Virgílio. Na terceira estante estavam as obras profanas que não se ligavam essencialmente àquelas duas classes, e com que ele se deleitava nas horas vagas que lhe deixavam as outras duas. Na classificação dos seus livros, o Padre Flávio viu-se algumas vezes perplexo; mas resolvera a dificuldade de um modo engenhoso. O poeta Chénier, em vez de ocupar a terceira estante, foi colocado na classe do paganismo, entre Homero e Tíbulo. Quanto ao Telêmaco de Fénelon, resolveu o padre deixá-lo sobre a mesa de trabalho; era um arcebispo católico que falava do filho de Ulisses; exprimia de algum modo a feição intelectual do Padre Flávio.
Seria puerilidade supor que o Padre Flávio, consorciando assim os escritos de duas inspirações opostas, fizesse dos dois cultos um só, e abraçasse do mesmo modo os deuses do templo antigo e as imagens da Igreja cristã. A religião católica era a da sua fé, ardente, profunda, inabalável; o paganismo representava a sua religião literária. Se encontrava no discurso da montanha consolações para a consciência, tinha nas páginas de Homero deliciosos prazeres ao seu espírito. Não confundia as odes de Anacreonte com o Cântico dos cânticos, mas sabia ler cada livro, a seu tempo, e tinha para si (coisa que mesma lhe perdoara o Padre Vilela) que entre as duas obras havia alguns pontos de contato.