CAPITULO VI
Leitura para nossas filhas
Disse-me hontem que sua filha tinha esgotado a pequena bibliotheca infantil, que a muito custo colligio para ella, e que esse candido e luminoso espirito, de quinze annos exige energicamente mais alimento que a nutra e que a deleite.
Pergunta-me a respeito da leitura que ha de permittir a sua filha, a minha opinião, o meu conselho.
É um caso difficil este que me propõe.
Lili é uma graciosa e excepcional creatura; tem a logica inflexivel das creanças intelligentes, tira rapidamente a conclusão das premissas que submettam ao seu criterio. A leitura póde fazer-lhe muito mal ou muito bem; não póde de modo algum ser-lhe indifferente.
A minha amiga seguindo as tradicções que já encontrou assentes, pergunta-me se póde deixar ler a sua filha Paulo e Virginia, esse idyllio que tem cem annos e que ameaça ser eterno, ou Jocelyn, o poema mais perigosamente mystico que eu conheço. Falla-me no Genio do Christianismo, de Chateaubriand, e nas tragedias sacras de Racine.
Não se lembra para sua filha de nenhum outro escripto e lembrou-se justamente d’aquelles que só lhe podiam fazer mal.
Antes de mais nada, responda-me francamente: quer fazer de sua filha uma mulher solidamente instruida ou então uma mulher ignorante?
Quer que ella saiba resistir ás tentações que forçosamente ha de encontrar na vida, ou quer que ella se conserve na mais completa e absoluta inexperiencia até á edade em que ha de entregal-a ao homem que tem de ser seu marido?
Da resposta a estas duas perguntas é que tudo depende, porque segundo a idéa que a minha amiga fórma da educação de uma mulher, segundo o systema que tenciona pôr em pratica com relação á educação de sua filha, o futuro d’esta ha de levar um outro caminho.
Eu não posso dizer-lhe positivamente: faça isto, faça aquillo.
Posso apenas contar-lhe o que fiz.
Minha filha tem hoje vinte seis annos, é casada, é mãe, e tem sabido cumprir a dupla e difficil missão que a sorte lhe confiou.
Não sei se deva attribuir os meritos que todos lhe reconhecem á educação que procurei dar-lhe; parece-me, porém, que sem falsa modestia poderei confessar, que os meus cuidados não foram de todo inefficazes, e que o muito que pensei e meditei sobre o caracter da minha querida filha, me ajudou a guial-o no caminho do seu aperfeiçoamento.
Ha gente que diz que as mulheres não devem ler.
Não sei se alguma vez tem ouvido essas opiniões estupidas ou perfidas; não lhes dê credito minha boa amiga.
Eu não acho merito algum á mulher ignorante, que se resigna ao cumprimento dos seus obscuros deveres de todos os dias.
Segue rotineiramente um caminho de que não conhece as difficuldades, e se não se afasta d’elle é porque não sabe de nenhum outro.
A mulher deve ler, mas se mais tarde no pleno uso das suas faculdades mentaes, e da sua força moral, ella póde ler tudo sem perigo, é indispensavel que uma educação anterior a tenha preparado e fortalecido, é indispensavel que haja o maior cuidado na cultura intellectual que ella deve receber na infancia e na adolescencia.
Diz-me a minha amiga, que a maior parte dos romances são immoraes, que os que não são immoraes nos intuitos são perigosamente exaltados ou revellam ao espirito da mocidade quadros que ella não deve conhecer: diz-me que a historia de todos os povos não é mais que um amontoado confuso de crimes e de vicios, que a sciencia está em contradicção absoluta com as verdades de religião, e no meio das duvidas que se desnorteiam e assaltam quasi que prefere condemnar sua filha a uma ignorancia que ao menos a conserve simples de coração e tranquilla de espirito.
Tenho duas objecções a fazer-lhe minha amiga, e parece-me que ambas hão de impressionar o seu esclarecido entendimento.
Em primeiro logar, se consultar bem a sua consciencia, verá que transige por fraqueza e por preguiça com a ignorancia de sua filha.
Prefere que ella não tenha quasi nada, a ter de se entregar a trabalho difficilimo de escolher com o mais delicado dos escrupulos o que ella deve saber.
Em segundo logar, essa ignorancia, que para a mulher lhe parece o porto socegado e tranquillo onde ella repousará affoutamente, parece-me a mim um banco de perfidas areias onde facilmente ella póde naufragar.
Já estou d’aqui prevendo a sua objecção.
Mas eu não quero tal que minha filha seja ignorante. Pelo contrario, dei-lhe uma excellente educação. Aqui não se tracta senão das leituras que depois de educada eu lhe devo permittir ou recusar.
Minha amiga, creia isto que lhe vou dizer. Se sua filha não souber senão o que tem aprendido até agora, de poucos recursos fica munida para combater na grande batalha em que vae entrar.
Ensinou-lhe o cathecismo, bem sei; Lili fez já a sua primeira communhão, e respondeu ao exame de doutrina com admiravel facilidade, e com uma memoria impecavel.
E depois?
Em que é que essas noções a auxiliam para que ella chegue a conceber o bem absoluto, a eterna justiça, o Espirito Supremo que anima a grande natureza?
É preciso que ella forme de Deus uma larga e fecunda idéa, e as manifestações da sua grandeza não estão no cathecismo, estão espalhadas n’essa creação universal que ella não sabe ver e que ella não conhece.
Conhece a historia pelos pequenos opusculos cheios de todas as maculas e impurezas, que deixaram chegar ás suas mãos infantís.
Não será uma irrisão dizer que ella conhece a historia?
Sabe os nomes dos reis, as datas dos seus nascimentos e mortes, coroações e consorcios, e os filhos que tiveram e as cidades e villas que conquistaram; mas que idéa tem ella d’essa historia sublime, que participa do drama e da epopêa, que tem paginas doloridas e paginas brilhantes, que tem cantos triumphaes, e gemidos de lutuosa angustia, d’essa historia em que estão registradas tantas luctas heroicas, tantas conquistas immortaes, e que se chama a historia da humanidade?
Não lhe parece que deve ser um estudo elevado, fortificante, robustecedor, que faz conhecer melhor, os esforços titanicos que o homem tem empregado para alcançar a quasi omnipotencia que hoje possue?
Do homem rude, primitivo, inhabil, rodeiado de perigos para o corpo e de chimeras para o espirito, esmagado pela força brutal da natureza, sem comprehensão do destino que o esperava e da missão a que vinha, até ao homem dos nossos dias, ao rei, ao victorioso, ao vencedor, ao que tem dominado todas as tyrannias que o dominavam, que differença enorme vae, minha querida amiga!
Entre o pária errante das selvas pre-historicas e esse triumphador que se chama Newton ou Goethe, Claude Bernard ou Victor Hugo, ha a distancia de uns poucos de milhares de seculos, que é preciso conhecer ao menos pelos marcos milliarios que teem assignalado a passagem dos mais illustres caminhantes n’essa estrada luminosa que se chama civilisação.
É isso que eu chamo conhecer a historia.
D’essa sciencia o espirito de sua filha, curioso, ávido, aberto para todas as grandes cousas, só póde colher proveito, um enorme proveito cujo alcance mal lhe posso explicar!
Dir-me-ha que n’essa historia ha crimes ignobeis, ha quadros revoltantes, ha homens condemnados cujo contacto póde ferir o delicado e original espirito de uma creança.
Oh! mas tambem ha martyrios, sacrificios, abnegações, arrojos sublimes!
Se ha criminosos, tambem ha heroes; se ha algozes, tambem ha martyres; se ha monstros, tambem ha santos.
Deixe que no cerebro da creança se faça a mysteriosa elaboração de que ha de sahir o culto pelo que fôr bello e bom, o odio raciocinado e violento a tudo que fôr abjecto e vil, a compaixão virtuosa e divina para tudo que fôr fragil e ignorante!
Ponha nas mãos de sua filha todos os cantos d’essa epopêa enorme. Faça-lhe lêr com attenção essa historia, e quando ella tiver chegado á ultima pagina, será mulher. Uma mulher instruida, uma mulher forte, capaz de ser esposa digna, e mãe desvellada, tendo aprendido a conhecer, comparar, julgar e a pensar.
Não sei se comprehendeu bem a idéa que procurei expôr-lhe. Apontei a traços largos a direcção una que deve dar ás leituras de sua filha. Isto a que chamei conhecer a historia, não é, como viu, ler simplesmente os historiadores.
É lêr, dominada por uma idéa de elevada critica, que as conversações d’uma mãe intelligente podem dar, todas as que tenham trazido a este thesouro formado pelos seculos, algum conhecimento precioso e util.
Os bons historiadores como Macaulay e como Herculano, os poetas que vivificam e animam o passado, que entram no espirito de todos os seculos, como Michelet: os viajantes intrepidos, os exploradores, os navegantes, os homens de sciencia, conquistadores tambem e dos mais gloriosos; os moralistas, os criticos, todos aquelles que buscam lealmente a verdade e que aspiram ao aperfeiçoamento do homem.
Fallei-lhe de Michelet e deixe-me dizer-lhe o que penso d’elle.
É o coração mais apaixonado de justiça que eu conheço, o que o não priva de ser injusto muitas vezes;