A PRINCEZA ARCO VERDE
«Oh!... linda situação para fundar-se uma cidade», exclamou Duarte Coelho, boquiaberto, extasiado, deslumbrado, ante o éden terreal que tinha á vista, depois de haver expulsado os francezes da Ilha de Itamaracá, por ordem de seu rei[1].
Passado o pasmo em que o espirito humano se immerge ante as grandes pujanças da natureza, ao olhar para esse docel de verdura, tendo por tapete a campina e como aquario o mar, Duarte Coelho com os seus homens, saltou em terra.
Admiravel paizagem feria-lhes a vista nessa terra dos Tabajares, nome dos senhores da costa, os quaes, como se de accordo com os não menos terriveis Cahités, seus inimigos, provaram que se não disputa impunemente, á mão armada, a propriedade alheia. A natureza que os cercava deu margem para crescer mais, muito mais, essa cubica que se origina das conquistas.
Em seguida, fundeou as suas caravellas no bello ancoradouro cujas aguas vinham docemente beijar a areia loura, juncada de coqueiral. Ao largo passavan as igáras... Os selvagens, iracundos, terriveis, desconfiados, travaram, como era natural, sangrenta batalha com os invasores, que os queriam á viva força desalojar dos seus dominios. N’esse combate encarnicado, rispido, feroz, morriam de parte a parte centenas de homens.
Mesmo já pela noite, quando luziam tranquillas as estrellas no céo, quando o mar, sereno como um lago convidava a poetizar a situação, a marinhagem cantava as chacaras e as lôas do seu paiz, enquanto, a espaços, uma flecha atravessava os ares, desafiando os recem-chegados.
Os donos dessa Marim tão ridente, com a sua corôa de rainha, formada do cocar das palmeiras, expulsando os importunos hospedes, provavam que elles tinham o dominio da vontade, e o recurso da força. Viviam tranquillos no remanso da paz, enquanto o inimigo não os fizesse brandir o terrivel tacape, entesar o arco e asseslar as flechas. Nos bosques, á sombra da verdura, ao murmurio dos riachos, ao fragor da quéda das cascatas, as mulheres, como mães, occupavamse em acariciar os filhos, tingindo-lhes as faces e o corpo, afim de preserval-os das mordeduras dos insectos malignos.
Deitada indolentemente sob um docel de verdura, na sua rede de pennas, emballava-se a filha do terrivel cacique, a princeza «Arco Verde», assim chamada por ser perila atiradora de arco e flecha, rapariga formosa, com requesitos para ser amada, não obstante, aos moços da tribu, ella parecer um tanto esquiva.
Como succedeu na Bahia, e em Pernambuco, houve um portuguez que se tornou o lingua dos aborigenes, e que, tendo ascendencia sobre elles, lhes marcou limites até cerlo espaço, ameaçando de morte a quem por ventura se abalançasse a desobedecer, o que acconteceu aos mais affoitos.
Depois de longa disputa, tempos mais larde, teve nisso influencia o simples poderio da mesma princeza, podendo afinal Duarte Coelho lançar os funilamentos da cidade, nessa galante Marim chamada mais tarde Olinda, pelas phrases que ácima referi:
«Oh! linda situação para fundar-se uma cidade».
Os portuguezes soffriam uma guerra atroz, até certo ponto justificada. Ora, naturalmente vingativos, os selvagens machinaram o plano do sitial-os pela fome, o que os teria feito perecer, se não fossem as moçoilas da tribu, uma das quaes affeiçoou-se a Vasco de Lucena, instigando as suas companheiras a levar-lhes alimentos, o que faziam á noite, sendo os fructos conduzidos em cestos e a agua em cabaças.
A filha do Cacique annuio a esse acto de caridade, impulsionada pelos sentimentos naturaes do coração da mulher, embora inculta.
Victima, porém, do acaso, cae prisioneiro dos Cahités, Jeronymo de Albuquerque, irmão de D. Brites de Albuquerque, mulher de Duarte Coelho. Levaram-n’o para o acampamento onde celebravam-se os medonhos sacrificios, com lugubres ceremonias, cabendo todavia á victima certas regalias, preparando-a por essa forma para o grande festim antropophago. Não obstante estar affeita a estas scenas de canibalismo, a rapariga, vendo-o amarrado com a Mussurana, tendo na cabeça a cangatarra, sabendo o supplicio que o esperava, estremecia de horror, por ter sido designada como a esposa do tumulo e sentir-se, sem o querer, tocada de tal sympathia que não podia explicar, se não promettendo a si, que salvaria, custasse o que custasse.
No entretanto, aquelle estrangeiro, em cujo cerebro bailava a ambição e n’alma o festim do triumpho, em face da morte tentou mostrar-se superior, affrontando desdenhoso o destino. Que The importava dar o corpo aos vermes ou aos antropophagos?
Comtudo, em angustioso mysterio, commocionou-se, vendo a estranha dedicação d’aquella bonita mulher, que, a fallar, a sorrir, a gesticular, na falla, nos sorrisos, nos géstos, sem entendel-a, comtudo adivinhava no todo, as phrases musicąes dos namorados...
O velho selvagem, ao saber do rapido affecto da sua filha,’exasperado, censurou-a e tratou-a brutalmente. Ella, porém, de joelhos, pedio a vida do Albuquerque, offerecendo a sua, pela delle.
Era um amor digno d’aquella filha do deserto, dos impetos proprios da raça e da sua natureza tropical.
peito de bronze do Tabajára, palpitou: elle tambem havia amado a mãe, por quem desobedeceria a lei dos seus maiores, em proveito da lei da sensibilidade...
Por suas proprias mãos, desligou o prisioneiro do fatal laço e apontou-lhe os seus dominios.
Uma nova cabana com opulento tecto de coqueiro, coube como residencia ao novo par... Foi, por esta alliança que o Tabajara tornou-se amigo dos recem-chegados, para o que muito influio a princeza, nessa tactica natural de que já tinha sabido dispor uma mulher, como Paraguassú. Maria, por sua vez, conseguio apaziguar tambem as rixas, mostrando aos seus irmãos de sangue a conveniencia de se alliarem aos europeus.
Já então principiava o cruzamento da raça, pois que varias indias haviam-se unido aos que para cá vieram.
Deste modo, Duarte Coelho conseguio assentar os alicerces da nova cidade, como já expliquei.
O Tabajara, muito satisfeito, por insinuações de sua filha, não quebrava a união com o europeu, e assistio ao seu baptismo, n’um domingo do Espirito Santo, pelo que veio a chamar-se Maria do Espirito Santo Arco Verde. Por longos annos, o novo casal viveu cercado de consideração e na mais completa harmonia.
Jeronymo, porém, esqueceu a fé jurada, acceitando, dizem, por imposição real, como esposa, uma fidalguita, vinda do reino, cujo pae era protegido do rei, que o enviara ao Brazil.
O certo é que D. Felippe de Mello infligiu n’alma de Maria grandes cores, por ser ja mãe de oito filhos menores, habituados a respeital-o como a um pae dedicado e amigo.
Tempos passaram; succederam-se noites, dias e annos.
Ainda quo visse suas filhas casadas com pes soas de posição, tendo uma dellas se alliado ao fidalgo genovez. Felippe Cavalcanti, de quem descende a familia Cavalcanti; apezar de ver sou filho Jeronymo de Albuquerque Maranhão tornar-se um dos heroes pernambucanos, o espinho terrivel do amor ultrajado teria sempre, pois nada mais dóe a uma mulher do que um juramento disfeito[2].
Entrado em annos, Jeronymo foi nomeado capitão-mór do Maranhão, tomando para si o nome da formosa ilha, d’onde expulsou os francezes commandados pelo Senhor de La Ravardière e lá falleceu, tendo tido filhas de D. Philippa, sua esposa, e das quaes terei de fallar um pouco mais adiante.
D. Maria Arco Verde, porém, cercada de sua familia, singela, piedosa, honesta, mal pensava que de si, se orgulhassem os seus descendentes, que a consideram uma heroina da patria e uma heroina do coração.
Por não haverem deixado successão as filhas do nobre portuguez, é da nossa esboçada, leitora, que descende a familia Albuquerque Maranhão e Arco Verde, que se ramifica pelo Brazil inteiro.
- ↑ Em 1526, D. João III de Portugal mandou Christovam Jaques com cinco caravellas para guardar a costa do Brazil contra os estrangeiros. Foi elle que fundou a feitoria da Ilha de Itamaraca, da qual os francezes se quizeram apoderar, sendo repellidos por Duarte Coelho. Foi esse monarcha que dividio o Brazil om 12 capitanias.
- ↑ Rocha Pitta enganou-se dizendo que uma das filhas legitimas de Jeronymo de Albuquerque casara com Felippe Cavalcanti, o que jamais se deu. Ella e suas duas irmães fizeram-se religiosas, como ver-se-ha garantindo a veracidade do facto as «Memorias historicas de Pernambuco», por Fernandes Gouco.