Não posso contar meus males,

Não posso contar meus males,
Nem a mim mesmo em segredo
É tão cruel o meu fado,
Que até de mim tenho medo.

GLOSA

Dos homens sendo a paixão
Incêndio voraz no peito,
Sempre tem funesto efeito,
Se não rebenta o vulcão.
Eis porque, meu coração,
Pouco falta, que me estales;
Porque nos montes, nos vales,
Em deserto, ou povoado,
Não posso soltar um brado,
Não posso contar meus males.

Horrenda sorte, e funesta,
Escasso fado mofino,
Até me roubas, malino,
O alívio que me resta!
Tudo que sinto me atesta
Que os do Cocyto ainda excedo;
Porque não tendo eles medo
De contra Deus blasfemar,
Não posso de mim falar;
Que até de mim tenho medo.

Ver o pólo negro arder
Em raios abrasadores;
Feros Notos berradores
Dos montes cedros varrer;
Todo o mundo estremecer,
Dos trovões ao rouco brado;
Da terra o centro rasgado
Nações inteiras sorvendo,
Quanto ver isto é horrendo!
É tão cruel o meu fado.

O peito d'antes sereno
Centro de amor e ternura,
Agora é morada escura
De males mil, com que peno.
Vós p'ra quem um fado ameno
Aponta com áureo dedo,
Fugi de mim, porque cedo
Mudar-se vereis a sorte;
Pois o meu mal é tão forte,
Que até de mim tenho medo.