Um belo povo, o de Nova Orleans – jovial, comunicativo, hospitaleiro e sincero. A ele devemos os melhores dias dessa longa viagem ao país sugestivo e excepcional dos ianques, universalmente querido e respeitado por sua grandeza industrial e por suas belas tradições de energia e patriotismo.
E entanto aproximava-se o dia da partida: íamos embora rumo de norte, levando conosco a imorredoura lembrança do Meschasebé, “le roi des fleuves”, e das legendárias terras que Chateaubriand poetizara nas suas inimitáveis Viagens. Restava-nos, porém, o consolo de que ainda iríamos à sonhada Nova Iorque dos trens aéreos e das empresas colossais.
Corações à larga, rapazes! Um homem é um homem!...
A saudade, porém, não é uma simples figura de retórica, pelo amor de Deus! É um estado d’alma como a nostalgia, como o amor, como a tristeza, como a dor...
A saudade existe, é um fenômeno perfeitamente real e determinado na ordem dos fatos psicológicos. Não nos venham dizer outra coisa os senhores neologistas fin de siècle. Por ter sido cantada em prosa e verso, nem por isso a saudade deixa de ser o que é na verdade – uma comoção nervosa interessando o mais delicado e sensível do coração humano, uma dolência vaga, flutuante n’alma, intraduzível como um sonho nebuloso, tocada de doçura e ungida de tristeza...
Por que uma pessoa tem barba no rosto e já passou dos vinte anos, segue-se que não deve ter mais saudade, que deve ser um insensível, uma massa inabalável?
Absolutamente não. A lágrima, expliquem-na como quiserem os doutores da ciência, há de existir enquanto palpitar em nós esse músculo que se chama coração, enquanto a humanidade sofrer e houver um motivo sentimental para comover os seres dotados de inteligência. É talvez uma questão de mais ou menos intensidade nervosa. Por que tudo é egoísmo neste século essencialmente palavroso e mercantil, deve-se concluir que, em futuro não muito longe, a raça humana se transforme numa como esfinge, sem afetividade possível, ou que o sistema nervoso passe a exercer funções negativas na fisiologia do porvir? Não o acreditamos...
A lágrima há de existir per omnia secula, e a saudade terá sempre a sua lágrima, como sentimento superior às nossas forças.
Chorar sobre o túmulo de um amigo é tão natural, tão humano como chorar porque nos separamos de um ente querido. Não desejo agora, por uma veleidade de rabiscador sentimentalista, fazer a psicologia da lágrima. O que eu quero é confessar, embora disso me advenha o qualificativo de piegas, que não podíamos – eu e a maior parte dos meus colegas – pensar em deixar Nova Orleans sem um demorado frêmito de pálpebras e uma névoa úmida no olhar triste...
E, dizendo isto, está dito o que nos merecia a hospitaleira população daquela cidade.
Entretanto, ainda não estavam satisfeitos os luisianenses. Como última prova de verdadeira estima o Luisiana Jockey Club deu-nos um magnífico baile na véspera da partida.
Tenho ainda na memória essa derradeira impressão que me ficou de Nova Orleans. Fazia um luar soberbo, um luar tropical, um luar de legenda, tão límpido e tão claro que se não viam as estrelas... O Jockey Club, embaixo, fazia um efeito surpreendente com a sua iluminação de mil cores rodeando a grande raia das corridas, com o seu aspecto fantástico de quermesse noturna, salpicado de pontos luminosos e galhardetes em miniatura, imóveis na calmaria da noite.
Em derredor a mudez solene da floresta acordada de instante a instante pelo eco da música cortando o ar calmo.
Perto do clube tinha-se armado um grande estrado para a dança ao ar livre, sem teto, sem toldo, sob o luar.
Cruzavam-se os pares, num turbilhão impetuoso, ao som das valsas americanas e dos galopes à brasileira.
Nessa noite, e pela primeira vez, conversei longamente com uma créole, Mlle... já me não lembra o nome, um tipo ideal de Valquíria de olhos negros com um extraordinário brilho nas pupilas – microscópica, delgada, flexível, cintura extremamente fina, certo jeito adorável de pender a cabeça para os lados, num abandono irresistível... Toda de preto.
Dançamos uma quadrilha e ela convidou-me a passear no Prado.
Lá fomos, braço dado, eu muito circunspecto, teso dentro da minha farda de guarda-marinha, levado quase que maquinalmente por essa formosa dama de olhos negros e sedutores, arranjando a custo umas frases de efeito, que eu não teria coragem de reproduzir; ela, desenvolta e pequenina, muito leve na sua toilette escura, conduzindo-me naquela esplêndida promenade au clair de la lune, para onde... não sei eu...
Perguntou-me se as brasileiras eram bonitas e ricas, se no Brasil dançava-se muito, e que tal nós tínhamos achado as americanas. Explicou-me então a diferença entre créoles e americanas propriamente ditas.
Respondi-lhe como pude, exaltando as nossas patrícias, “belas e ricas, como não há iguais no mundo...”
Paramos. Tínhamos andado seguramente dois quilômetros e não víamos agora senão a parte superior do clube, por trás do arvoredo, toda iluminada ao longe, como uma cousa fantástica.
À proporção que nos afastávamos dos nossos companheiros a conversa tornava-se menos animada, e, por fim, já seguíamos calados, como dois sonâmbulos, no silêncio da noite enluarada...
Depois é que vimos a distância que nos separava do centro da festa.
Na volta encontramos outros pares em doce confabulação, como nós, longe do ruído.
Despedi-me para tomar o trem, e ela, a dama dos olhos negros, disse-me um good-bye tão sentido e tão sugestivo que eu não tive jeito senão perder o trem.
Good-bye! Nada mais doce e expressivo que estas simples palavras em boca de americana. Uma inglesa talvez que as não pronuncie com tanta suavidade, com tão sonora flexão, com tanto sentimento. Good-bye... Há qualquer coisa de aveludado no timbre cantante com que elas, as misses da Nova Inglaterra, dizem a sua frase sacramental de despedida. O nosso adeus, aliás tão lacônico e singelo, não exprime tanto, não caracteriza tão bem esse estado d’alma que se denomina – saudade.
E, a propósito de – Good-bye, vem-me à memória um episódio de uma simplicidade primitiva e comovente que a minha indiscrição de observador tagarela não deixa calar.
Esqueçamos a rapariga de olhos negros e narremo-la em toda a sua verdade.
Entre os nossos companheiros de viagem havia um, cuja vida estava cheia das mais interessantes aventuras amorosas. Chamava-se Manuel..., o apelido de família não nos interessa. O jovem oficial de marinha, moço de bela aparência e excelente coração, apaixonara-se por uma Eva Smith muito conhecida nos cafés-concertos de Nova Orleans. Até aqui nada mais natural. Ela vira-o uma vez diante de um bock, seus olhos se encontraram, e, desde logo, Manuel ficou sendo a menina dos olhos de Eva. Amaram-se por muitos dias, gozaram todas as delícias imagináveis, ele proibiu-a de andar nos cafés, ela proibiu-o de olhar para outras raparigas, e assim corresponderam-se de comum acordo, sem que nunca houvesse entre eles a menor desavença.
– Leva-me para o Brasil, Manuel... (ela só o tratava por Manuel.)
– Sim, filha, depois havemos de ver isso...
– 1 love you very much...
– Oh! yes... 1 think so...
Viviam felizes como um casal de noivos, longe da cidade, num quarto de hotel, onde havia do melhor vinho e da melhor sopa.
Um belo dia:
Ele – Olha, sabes? O Barroso suspende ferro amanhã.
Ela (surpreendida) – What do you say!?
Ele (trincando um rabanete) – É o que lhe estou dizendo. Amanhã, por estas horas, o Manuel vai sulcando o golfo do México.
Ela (cruzando um talher) – Impossível! Por que já não me disseste?
– Para te poupar o desgosto...
– Oh! não, meu querido Manuel, é história, tu não vais amanhã...
– Assim é preciso. São coisas da vida...
– Não, não, meu amor (my love) tu não vais, porque eu não quero, do contrário faço escândalo, estás ouvindo?
E ao dizer estas palavras, a pobre Eva deixou cair uma lágrima...
Silêncio. Manuel continuou a jantar sem interrupção, muito calmo, com uma fleuma verdadeiramente britânica. Eva, coitada, abriu a soluçar baixinho, fungando a mais não poder, sem se aperceber de que estava fazendo de um guardanapo um lenço.
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Último ato, e aqui é que está o apropósito.
Cenário: O Mississipi pardo e murmurejante sob a luz moribunda do crepúsculo.
O Almirante Barroso, imóvel sobre o rio, com a sua mastreação muito alta, fumega. Ouve-se barulho de cabrestante e de amarras caindo no convés. Tremula a bandeira brasileira na carangueja da mezena... Últimos preparos.
No cais agita-se uma multidão compacta.
De repente surge à tona d’água o cepo da âncora enlameada, pingando um lodo cinzento, e o navio começa a andar vagarosamente.
A guarnição sobe às vergas, alastrando-se de um bordo e doutro, e acena para terra ao som de vivas!
Agitam-se lenços na praia, correspondendo às saudações de bordo. Um frêmito percorre os que estão no cruzador...
É o momento decisivo.
Um grande rebocador, The Warrior, vistoso e arquejante, acompanha as manobras do Barroso, à distância de uma amarra, solitário e sombrio, envolto numa nuvem de fumaça, e em cuja tolda assoma a figura desgrenhada de uma mulher.
O cruzador segue à adiante, majestoso e lento, descrevendo uma bela curva no espelho da água, e torna a passar defronte da cidade, apressando a marcha.
As religiosas das Ursulinas lá em cima, nas janelinhas do convento, acenam também com os seus lenços brancos.
E, no silêncio da tarde que a névoa melancoliza, repercutem estas palavras tocadas de saudade:
– Good-bye!
– Good-bye! repete a mesma voz aveludada como um carinho...
Olhamos uns para os outros comovidos.
Quem seria que se lembrara de levar tão perto sua despedida aos brasileiros?
A voz era de mulher, não restava dúvida...
Com efeito, reconhecemos na figura desgrenhada que víamos a bordo do rebocador, Eva Smith, a amante de Manuel..., a apaixonada rapariga muito conhecida nos cafés-cantantes de Nova Orleans, cujo entusiasmo pelo nosso companheiro tinha chegado a seu auge.
E quando o Barroso desapareceu na primeira curva do rio, ainda ouvíamos, tomados de uma tristeza infinita, a mesma voz cheia de desespero, agora abafada pela distância, soluçada e plangente:
– Good-bye, Manuel! Good-bye!...
E dizer que a Dama das Camélias é uma exceção na vida sentimental das filhas de Eva!..
O nosso Armando, que aliás nunca pretendeu regenerar ninguém, deixou-se cair numa saudade profunda, num longo adormecimento da alma, de que só acordou no alto-mar, quando já não se avistava um ponto sequer da costa americana.