...Manhã de inverno, fria e nebulosa, sem uma réstea de luz confortável. Estava interdita a nossa curiosidade, pois que amanhecemos defronte da baía de Hampton Road, a essa hora coberta de cerração, cheia de nevoeiro, impenetrável. Não podíamos, que pena! ver Nova Iorque de fora, do mar, abrangê-la toda com um golpe de vista, estereotipá-la na imaginação para todo o resto da nossa vida. A grande cidade cosmopolita dos trens elevados e das pontes colossais dormia o sono beatífico da madrugada, envolvida num largo capuz de neve através do qual apenas se podia ouvir a sineta de invisíveis embarcações que bordejavam demandando o porto. Adivinhávamos que muitos vapores transatlânticos aguardavam, como nós, o momento azado para fazerem sua entrada.
Felizmente não durou muito esse estado quase aflitivo. Por trás do nevoeiro compacto e lúgubre os primeiros clarões da manhã surgiram como uma aparição bendita, rompendo a monotonia branca da atmosfera, e pouco a pouco, à proporção que a neve ia se rarefazendo, o Barroso tomava chegada muito lento, e Nova Iorque destoucava-se num fundo luminoso, batida pelas primeiras irradiações do sol, ruidosa e alvissareira, toda cheia de brilhos, como um quadro de malacacheta.
Onze horas. Céu limpo e mar chão – como se diz nos diários náuticos. Nem mais um floco de neve, tudo luz agora, e já podemos ver cheios da mais íntima satisfação, com uma surpresa ingênua no olhar, o aspecto risonho da baía cortada de embarcações À vela e a vapor, com os seus longes de verdura matizando perfis de montanhas indistintas, muito descoberta, sem o sombrio majestoso das paisagens americanas do sul, bela na sua simplicidade natural, e, sobretudo, muito clara àquela hora.
À direita destacava, à boca do Hudson, a grande, a enorme, a colossal ponte que liga Brooklin a Nova Iorque lembrando-nos que realmente tínhamos chegado outra vez à terra feliz dos ianques, e doutro lado erguia-se, iluminando o mundo, a Estátua da Liberdade, belo símbolo de bronze, cujo pedestal ocupa toda a ilha de Bedloe.
Era um dia de domingo, um desses dias de expansão popular, em que, no mar como em terra, há quase sempre uma alegria nova entre os que passaram a semana a trabalhar, a lutar pela vida incansavelmente com a consciência tranqÜila de quem vive honestamente à custa do próprio esforço. A baía de Nova Iorque tinha o festivo aspecto de um dia de regatas. Esquadrilhas de iates, com suas velas quadrangulares, muito elegantes e asseados, cruzavam na barra, aproveitando a fresca do mar. Passavam barcas de recreio, embandeiradas, conduzindo bandas de música, que tocavam alegremente o Yankee doodle. À cerração matinal sucedera um sol frio de inverno, que dava vontade a gente improvisar piqueniques à beira-mar, fora da cidade, longe dos botequins e das brasseries, nalgum verde recanto onde houvesse bastante quietação e muita água, num lugarejo calmo de subúrbio donde se pudesse ver ao longe, mas muito ao longe, a miniatura da cidade soturna e cansada...
O Barroso tinha fundeado em frente à Battery Square e com pouco recebia a visita oficial do cônsul brasileiro e doutras autoridades do país, sendo para notar que uma das primeiras pessoas que pisaram a bordo foi o repórter do New York Herald, a importante folha americana tradicionalmente conhecida no mundo jornalístico. Um cavalheiro irreprochable, de cartola e sobrecasaca de pano, bem-apessoado, bigode louro e olhos azuis, verdadeiro tipo de ianque, amável e expansivo. É escusado dizer, num parêntesis, que no dia seguinte a quilométrica folha descrevia, com uma precisão fotográfica, o cruzador brasileiro, sem esquecer mesmo um carneiro de estima que trazíamos e que o espirituoso noticiarista incluía na lotação do navio, emprestando-lhe qualidades invejáveis. Creio até que o pobre lanígero figurou na folha ianque entre os heróis de Humaitá!
Satisfeitas as formalidades oficiais da chegada, trocadas as salvas do estilo, nada mais nos restava senão ver de perto a bela cidade.
Nova Iorque estava quieta, muitíssimo quieta, com as suas praças desertas, com os seus parques silenciosos, fechado o comércio a ponto de não se encontrar aberta uma só tabacaria, sequer um botequim. Isso, porém, não nos causou estranheza. Sabíamos que o domingo nos Estados Unidos é um dia completamente inútil, um dia triste para os centros populosos. Toda a gente deserta para os arrabaldes em seus trajes domingueiros. As ruas, muito largas e compridas, permanecem ermas e cheias de silêncio, entregues à vigilância dos policimen. Todas as casas comerciais, todos os armazéns, todas as fábricas, todos os estabelecimentos públicos conservam-se fechados e taciturnos, como numa cidade abandonada.
Nova Iorque, a opulenta e alegre cidade cosmopolita, tinha esguichado para Nova Jersey, para Brooklin e para Conney Island. Toda aquela multidão laboriosa e ourissedenta, que nos dias de trabalho se atropela na Broadway, bebia e cantava nos arrabaldes, expandia-se largamente nos hotéis ambulantes e nas cervejarias suburbanas, folgava e ria com desespero, sem pensar na segunda-feira, sem se inquietar com o futuro.
Por isso é que não se deparava ninguém nas ruas, por isso não se ouvia o barulho infernal das carroças e das carruagens.
O domingo no país dos ianques é para se divertir, para se descansar, para se jogar o cricket, para se passear a cavalo, para se apostar regatas, de modo que o protestantismo americano nada tem de comum com o protestantismo britânico.
Enquanto nos domingos (a dar crédito na crônica) o inglês reza a Bíblia no interior de seu home, em companhia de sua mulher e de seus filhos, o americano, ou melhor, o ianque, exercita os músculos e bebe cerveja fora da cidade.
Não admira semelhante discordância, quando é sabido que a religião protestante subdivide-se em milhares de seitas. A este respeito leiam-se os belos capítulos em que Mr. Laboulaye (Ed. Lefèvre), estuda, com uma graça especial e encantadora, cheia de humorismo e de senso crítico, as instituições religiosas na América do Norte. Paris en Amérique é um dos livros mais curiosos e originais que eu tenho lido sobre os Estados Unidos.
Em tais condições, estrangeiros no meio de uma cidade deserta, imagine-se o nosso embaraço, a triste situação em que nos colocava a curiosidade.
Os raríssimos transeuntes que porventura encontrávamos, marinheiros ou vagabundos que desciam para o cais da Battery, olhavam-nos com um ar de surpresa, embasbacados, medindo-nos de alto a baixo, com se fôssemos uns verdadeiros botocudos de tanga e cocar.
Entretanto, não perdemos a precisa calma, e, sem mais tirte nem guarte, saltamos dentro do primeiro veículo que passava, uma velha carruagem de aluguel, cujo boleeiro custou deveras a compreender que desejávamos fazer um passeio ao redor da cidade.
– Oh! yes! Yes!...
E disparou a trote largo por aquelas ruas fora.
De modo que nesse dia vimos Nova Iorque à vol d’oiseau e por um prisma de tristeza e monotonia.
Em compensação a nossa demora naquela cidade ia ser mais longa que em qualquer dos outros portos do itinerário.
No dia imediato, uma segunda-feira, recomeçamos, sem perda de tempo, a nossa tarefa de estrangeiros em país desconhecido.
Eu, por mim, confesso que Nova Iorque produzia-me vertigens. O desejo imoderado de tudo ver, de tudo observar, de tudo saber, trazia-me numa inquietação contínua, tirava-me o sono, arrebatava-me a todas as comodidades, torturava-me o espírito de análise. Uma coisa, porém, devo dizer: raro é o oficial de marinha, mormente da marinha brasileira, que sabe aproveitar o tempo nessas viagens ao estrangeiro. Aproveitar o tempo, entendamo-nos, as horas de folga. Preferíamos a convivência dos cafés-cantantes aos passeios úteis e ao mesmo tempo agradáveis. Um estrangeiro já teve a coragem de dizer que os oficiais de marinha brasileiros levavam o tempo, na Europa, a freqüentar os conventilhos e os cafés-cantantes. Até certo ponto isso é verdade.
Em geral eles pouco conhecem dos países que têm visitado, a não ser em assuntos de sua profissão, e as suas narrativas entre amigos limitam-se quase sempre a recordações de aventuras amorosas.
Também são tão curtas e tão raras essas viagens...
Quando se tem a felicidade relativa de viajar sob o comando de um oficial ilustrado e curioso como o sr. Saldanha da Gama, cujos conhecimentos não se restringem à navegação e à artilharia, o aproveitamento é certo. Ele não é somente um superior hierárquico – faz-se mestre e sabe proporcionar aos seus subalternos a maior soma possível de excursões úteis e proveitosas.
Uma das nossas primeiras visitas foi à Estátua da Liberdade, na ilha de Bedloe.
O importante monumento ainda não estava completamente pronto, mas já se podia fazer uma idéia do que seria ele depois de concluído. O pedestal, de granito, ocupa quase toda a ilhota e mede, aproximadamente, 15 a 20 metros de altura, 154 pés, desde o nível do mar, formando uma espécie de casamata cuja utilidade não souberam nos dizer. Sobre o pedestal ergue-se a estátua, em bronze, armada por meio de vigamentos de ferro, pois que não é inteiriça.
Conta-se que dentro dela realizara-se, em Paris, um magnífico banquete de 12 talheres, presidido por V. Hugo.
Como se sabe, a estátua foi oferecida aos Estados Unidos pela França em agradecimento dos serviços prestados por esta nação à sua amiga na guerra franco-prussiana.
O pedestal foi mandado construir à custa de subscrições populares, que em pouco tempo atingiam a uma soma elevadíssima.
Não há por aí quem não tenha ouvido falar na famosa ponte de Brooklin (Brooklyn Bridge), uma das maravilhas da engenharia moderna, que liga a ilha de Brooklin a Nova Iorque.
Esta cidade, incontestavelmente o primeiro empório comercial da América e uma das mais populosas do mundo, fica situada numa grande ilha formada por dois braços do rio Hudson. De um lado, à direita de quem olha para o mar, um dos deltas, o North River, separa-a de Nova Jersey, e à esquerda o East River separa-a de Brooklin. A travessia para qualquer desses pontos faz-se rapidamente, em barcas que a todo instante largam de Nova Iorque, e por preço assaz diminuto.
A princípio, quando se projetou levantar a grande ponte, surgiram mil dificuldades.
Parecia impossível que se pudesse levar a efeito obra tão arriscada e dispendiosa. Como assentar as bases do colosso numa profundidade de mil e seiscentos pés, que é esta a altura do rio na sua parte mais estreita?
Demais era preciso não prejudicar a navegação, construindo a ponte muito acima do nível do mar de modo a dar passagem livre às embarcações de comércio.
Com tudo isso os americanos meteram mãos à obra e dentro de alguns anos de trabalho assíduo os Estados Unidos contavam mais uma glória.
O comprimento total dessa magnífica ponte é de uma milha pouco mais ou menos. As torres onde ela está suspensa erguem-se a 268 pés acima da preamar, de forma que as maiores embarcações de comércio têm passagem fácil por baixo.
O Barroso, cuja guinda era uma das mais altas que se tem visto em navio de guerra, apenas foi obrigado a “acachapar” os mastaréus de joanetes.
Atravessa-se a ponte em vagões movidos à eletricidade, em carros de praça ou mesmo a pé. Paga-se um cêntimo para atravessá-la a pé!
O movimento é espantoso. Cruzam-se diariamente as duas populações de Nova Iorque e de Brooklin, em carros, em vagões e a pé, sem risco de se atropelar, por que a cada espécie de veículos corresponde uma passagem independente e adequada. Os que transitam a pé têm também o seu caminho livre e, por conseqüência, não correm o perigo de ser pisados pelos carros.
À noite o aspecto da ponte é feérico. Logo às seis horas da tarde começa a iluminação em toda ela, de um lado e doutro, destacando-se em alguns pontos, focos de luz elétrica, enormes botões de brilhante que encandeiam a vista.
Vista do mar, então, o efeito é deslumbrante! Lembra as lendárias pontes de Veneza cortando canais, projetando n’água seus reflexos luminosos.
Um dos meus divertimentos prediletos era contemplar Nova Iorque do alto. Muitas vezes punha-me lá de cima da ponte de Brooklin, braços cruzados, num êxtase de fetiche, a olhar para um e outro lado, acompanhando com a vista a vela das embarcações que singravam no rio, pequeninas, microscópicas.
E punha-me, nessa embriaguez do grandioso, a pensar no progresso dos Estados Unidos, desse país modelo, onde tudo move-se por meio de eletricidade e vapor, onde tudo é feito às carreiras, num abrir e fechar de olhos, sem a menor perda de tempo; vinham-me à imaginação escandecida as descobertas de Franklin, de Fulton e de Edison, as maravilhosas experiências sobre o telégrafo, sobre o telefone e sobre o fonógrafo, e eu repetia com os meus botões, mergulhando o olhar na distância, abarcando a cidade inteira: – Grande país! Grande povo, gente feliz, que sabe compreender a vida e amar a pátria!
Como era pequeno o meu país, com toda a grandeza de suas montanhas e de seus rios, diante do colosso americano do norte!
Caía-me na alma uma tristeza de desterrado, uma profunda è incompreensível melancolia, feita ao mesmo tempo de saudade e descrença...
Incansáveis os americanos! Nenhum povo os excede em temeridade e perseverança. Sequiosos de glórias para o seu país, ávidos de empreendimentos que causem assombro ao mundo, eles têm uma grande qualidade – o amor à sua terra, o nativismo instintivo, o chauvinismo (deixem passar o termo) incondicional, absoluto, e é força confessar que, sem essa qualidade, sem esse egoísmo patriótico, as nações vivem, mas não progridem.
Ainda ultimamente a câmara do Estado de Nova Iorque aprovou, por unanimidade, o bill que propôs a construção de uma nova ponte de ferro sobre o East River, passando sobre a ilha de Blackorel, que ligue Nova Iorque a Long Island, e que terá seis mil metros de comprimento e 46 de altura, com uma resistência de 65 quilômetros de velocidade para os trens que a devem atravessar.
É o caso de dizer, parodiando o outro: se eu não fosse brasileiro, desejaria ser americano do norte...