O coronel recusou a sopa.
- Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.
- Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:
Ex.mo snr. coronel Juca.
- De quem é?
- Do administrador da Santa Inácia.
- Já sei. Geada?
- Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos divido o serviço.
- Coitado.
- Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor! Não acho...
- Na outra página, Juca.
- Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico que o seu comprade João Intaliano morreu...
- Meu Deus, não diga?!
- ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.
- E então?
Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.
- E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:
- Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias.
Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.
Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou.
- Diga boa noite.
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
- Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você queria, Juca?
- Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.
- O Gennarinho, é?
- Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.
- Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...
- É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.
- ... dar uns tapas nele.
- Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!
- Não é à toa, Juca.
- Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito.
Um dia na mesa o coronel implicou:
- Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?
- Ouvi.
- Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.
- Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.
Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:
- Juca: você já pensou no futuro do menino?
O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:
- Já-á-á!...
- Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
- O quê? Resolveu o quê?
- O futuro do menino, homem de Deus!
- Hã!...
- Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
- Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.
- Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero.
- Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo de dois pernilongos.
- Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando.
- Pronto. Acho o quê?
- Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num colégio.
- Num colégio de padres.
- É.
- Eu sou católica. Você também é. O Januário também será.
- Muito bem...
- Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo...
Era sono.
- Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos isso direito, Nequinha...
Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça.
- Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.
- Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.
- Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.
- Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
- Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.
- Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
- Diga o seu nome para o Senhor Reitor.
- Januário.
- Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.
- Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
- Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.