Uma vez, á hora lugubre da meia-noite, eu meditava, fraco, fatigado, quasi adormecido, sobre muitos volumes interessantes e valiosos de uma doutrina esquecida. De repente, ouvi um ligeiro ruido, como de alguem batendo, ao de leve, á porta do meu quarto. «É alguma visita», murmurei eu, e nada mais.
Estavamos em Dezembro, lembro-me distinctamente. As achas meio queimadas desenhavam no solo o reflexo da sua agonia.
Eu desejava ardentemente a manha! Em vão pedia aos livros o esquecimento das minhas maguas... Pensava sempre n'ella, na minha Leonor perdida, na mulher rara e deslumbrante que os anjos chamam ainda Leonor e que os homens não chamarão mais!
O vago sussurro dos reposteiros ondulantes penetrava-me de um terror phantastico e melancolico. Para acalmar a agitação que me assustava, levantei-me, repetindo: «É alguem que bate á porta, alguma visita tardia, que solicita a entrada do meu quarto; sim, é isso, e nada mais.» Então senti o espirito um pouco fortalecido, e sem hesitar mais tempo:
— Senhor, digo eu, ou senhora, tende a bondade de perdoar-me. Estava meio adormecido e bateste tão devagarinho que apenas tenho a consciencia de vos ter ouvido.
Assim dizendo, abri a porta de par em par, mas vi só trevas e nada mais!
E a prescrutal-as profundamente, fiquei muito tempo cheio de espanto, de receio e de duvida, fazendo sonhos que mortal algum jámais ousou sonhar; mas nada perturbou o silencio e a immobilidade das trevas, senão um nome proferido por mim : «Leonor!» e o echo murmurando a seu turno «Leonor!» Só isto e nada mais!
Tornando a entrar no quarto, com a alma em fogo, ouvi um ruido algum tanto mais forte que o primeiro. "Ha por força alguma cousa de extraordinario nas taboinhas da minha janella; vamos a vêr o que é, exploremos este mysterio. Provavelmente, é o vento, e nada mais!"
Abri então a janella, e um corvo majestoso, digno dos antigos tempos, entrou pelo quarto a dentro, com um bater de azas tumultuoso. Sem me fazer uma simples cortezia, adeantou-se com a importancia de um lord ou de uma lady, e empoleirou-se n'um busto de Pallas, collocado justamente por cima da porta do meu quarto.
A gravidade do seu aspecto e a severidade da sua physionomia fizeram sorrir a minha triste imaginaçào:
— Embora tua cabeça, disse-lhe-eu, não tenha pôpa nem cimeira, não és por certo um passaro ordinario. Dize-me qual o teu nome senhorial nas costas da noite plutonica?
O corvo disse:
— Jamais.
Fiquei pasmado de vêr aquelle desengraçado vôlatil comprehender assim a palavra, posto que a sua resposta não tivesse um grande senso, nem respondesse de modo algum à minha pergunta; porque é preciso confessar que nunca foi dado a um homem vivo, vêr, por cima da porta do seu quarto, um passaro ou um bicho, sobre um busto esculpido, com semelhante nome: "Jamais!"
Mas o corvo, solitariamente empoleirado no busto placido, não proferiu senão aquella palavra unica, como se n'ella toda a sua alma se espargisse. Então murmurei em voz baixa:
— Todos os amigos me têm deixado: amanhâ tambem este me fugirá, assim como todos os outros me fugiram, assim como voaram as minhas ridentes esperanças!
E o passaro tornou a dizer:
— Jámais!
Ao ouvir aquella resposta tanto a proposito, estremeci.
— Provavelmente, disse eu commigo mesmo, não sabe senão esta palavra. Isto elle apprendeu com algum mestre infortunado, a quem a impia desgraça perseguiu sem treguas, e cujos cantares acabaram por não ter senão aquelle melancolico estribilho, especie de De profundis de todas as suas esperanças:
— Jámais!
Mas o corvo induzindo ainda a minha alma triste a sorrir, puxei a cadeira para defronte d'elle, do busto e da porta, e comecei a ligar idéa com idéa, procurando adivinhar o que aquella ave agoureira de outros tempos, o que aquelle triste, desengraçado, sinistro, magro e agoureiro passaro de outros tempos, queria significar com o seu Jámais!
Assim me detive um tempo, sonhando, meditando, porém sem dirigir mais a palavra ao passaro, cujo olhar ardente me abrazava até ao intimo do coração. Eu procurava adivinhar o estribilho do corvo e muitas cousas mais, com a cabeça encostada ao estofo da cadeira; esse estofo macio de velludo violeta, onde a cabeça d'ella se recostava outr'ora!... onde não se recostará jámais!
Então pareceu-me que o ar se tornava mais espesso, perfumado por um thuribulo invisivel, balouçado por seraphins, cujos passos deslisaram pelo tapete do quarto.
— Desgraçado! exclamei eu; Deus, pelos seus anjos, manda-te treguas e nepenthes contra as saudades de Leonor! Bebe, oh! bebe este bom nepenthes e esquece Leonor, perdida para sempre!
E o corvo tornou a dizer:
— Jámais !
— Propheta! disse eu ser de desgraça! passaro ou demonio, comtudo propheta! quer sejas um mensageiro do Tentador, ou um simples naufrago, lançado pela tempestade a esta terra deserta e enfeitiçada, a este lar de miseria e de horror, dize-me sinceramente — supplico-t'o! — é verdade que existe um balsamo da Judéa? oh! dize-m'o, dize-m'o por piedade!
O corvo respondeu:
— Jámais !
— Propheta, continuei eu, ser de desgraça! passaro ou demonio, comtudo propheta! Pelo céo que nos cobre, pelo Deus que ambos adoramos, dize-me se esta alma, esmagada pela dôr, poderá um dia, no paraiso longinquo, abraçar uma donzella santa, preciosa e deslumbrante, a quem os anjos chamam Leonor?
O corvo disse:
— Jámais!
— Sejam as tuas palavras o signal da nossa separação, passaro ou demonio! exclamei eu, pondo-me em pé. Volta à tempestade e ás costas da noite plutonica! Não deixes aqui nem uma só das tuas pennas negras, em memoria da mentira que acabas de proferir. Não violes por mais tempo a minha solidão. Tira-te da minha porta, arranca o teu bico do meu coração e precipita o teu espectro para bem longe d'este quarto!
O corvo disse:
— Jámais!
E, immutavel, continua sempre empoleirado no pallido
busto de Pallas, por cima da porta do meu quarto.
Os seus olhos, com um brílho demoníaco, parecem
pensativos; a luz da minha lampada projecta a sua
sombra sobre o solo, e além do circulo d'esta sombra,
que jaz fluctuante sobre o solo, a minha alma não poderá
elevar-se jámais!
Carlos Dickens, em uma nota que, n'este instante, tenho debaixo dos olhos, falando de uma analyse que eu tinha feito do mecanismo de Barnaby Rudge, diz: Godwin, seja dito de passagem, escreveu o seu Caleb Williams ás avessas. Começou por envolver o seu heróe n'um tecido de difficuldades, que formam a materia do segundo volume, e depois, para compôr o primeiro, começou a pensar nos meios de legitimar o que havia dito.
Não posso acreditar que fosse precisamente este o modo de composição de Godwin, mesmo porque o que elle proprio confessa, não está absolutamente conforme com a idéa de Dickens: mas como artista perfeito, o auctor do Caleb Williams sabia muito bem o proveito que se póde tirar de semelhante procedimento. Se ha n'este mundo alguma cousa evidente, é que um plano deve ser cuidadosamente elaborado no cerebro, antes de passar ao papel. É preciso ter sempre deante dos olhos o pensamento do desenlace, para poder dar a um plano a sua indispensavel physionomia de logica e de casualidade, fazendo que todos os incidentes, e particularmente o tom geral, tendam para o desenvolvimento da intenção.
Na minha opinião, ha um erro radical no methodo geralmente usado na construcção de um conto. Umas vezes é a historia que nos fornece uma these; outras vezes, achamo-nos inspirados por um incidente contemporaneo; ou ainda, o auctor procura no seu espirito combinar uma somma de acontecimentos surprehendentes que devem formar simplesmente a base da sua narrativa, esperando introduzir depois as descripções, o dialogo ou o seu commentario pessoal, por toda a parte onde uma fenda no tecido da acção lhe forneça a opportunidade.
Para mim, a primeira de todas as considerações é a da sensação que se produz. Tendo sempre em vista a originalidade (porque é trahir-se a si mesmo, arriscar-se a dispensar um meio de interesse tão evidente e tão facil), faço antes de tudo a seguinte reflexão: entre as innumeraveis sensações ou impressões que o coração, a intelligencia ou, para falar mais geralmente, a alma é susceptivel de receber, qual é a unica impressão que devo escolher no caso presente? Então, depois de ter escolhido um assumpto de rigorosa sensação, decido se é melhor apresental-o pelos incidentes ou pelo tom; por incidentes vulgares e por um tom particular ou por incidentes singulares e por um tom ordinario, ou por uma egual singularidade de tom e de incidentes. Finalmente, procuro em torno de mim, ou antes em mim proprio, as combinações de acontecimentos ou de tons que podem ser mais proprios para crear a sensação desejada.
Pensei muitas vezes no interesse que teria um artigo. escripto por qualquer auctor, que quizesse, quero dizer, que pudesse contar, passo a passo, desde o principio até ao ſim, a marcha progressiva de una das suas composições. Não posso explicar a razão por que nunca se apresentou ao publico um trabalho n'este genero mas parece-me que o motivo mais poderoso d'essa lacuna litteraria é a vaidade dos auctores. Muitos escriptores, principalmente os poetas, gostam de dar a entender que as suas composições nascem de uma especie de frenesi subtil ou de intuição extatica, e estremeceriam de terror á idéa de auctorisar o publico a lançar um golpe de vista por detraz da scena, e a contemplar os laboriosos e indecisos embriões do pensamento; a verdadeira decisão tomada no ultimo momento, a idéa tantas vezes entrevista n'um relampago e tanto tempo refractaria a deixar-se vêr em plena luz, o pensamento plenamente amadurecido e repellido com desespero como impossivel, a escolha prudente e o refugo, os riscos dolorosamente traçados sobre o que está escripto e as interpolações; n'uma palavra, a rodagem e as correntes, os trucs para a mudança de scenario, as escadas e os alçapões, as pennas de gallo, o carmim, as moscas e toda a caracterisação que, em noventa e nove casos por cem, constituem o apanagio e o natural do histrião litterario.
Além de que, sei que á maior parte das vezes o auctor não se acha em circumstancias de retrogradar, directamente, pelo caminho que o conduziu ao desenlace da sua obra. Em geral, as idéas, tendo surgido de cambulhada, foram perseguidas e esquecidas do mesmo modo.
Pela minha parte, não tenho a repugnancia de que agora falei, nem acho a menor difficuldade em me lembrar da marcha progressiva de todas as minhas composições; e, visto que o interesse de uma tal analyse ou reconstrucção, que considerei como um desideratum em litteratura, é parfeitamente independente de todo o interesse real supposto no objecto analysado, não me accusarão de offender as conveniencias desmascarando o modus operandi, graças ao qual eu poude construir uma das minhas proprias obras. Escolhi o Corvo por ser uma obra geralmente conhecida.
O meu designío é demonstrar que ponto algum da composição pode ser attribuido ao acaso ou á intuição, e que a obra caminhou, passo a passo, para a sua so- lução, com a precisão e a logica rigorosa de um problema mathematico.
Pômos de parte, como não dependendo directamente da questão poetica, a circumstancia, ou, se quizerdes, a necessidade d'onde nasceu a intenção de compôr um poema que satisfizesse ao mesmo temro o gosto popular e o gosto crítico.
É pois a partir d'esta intenção que começa a minha analyse.
A consideração primordial foi a da dimensão. Se a composição é demasiado longa para se ler de uma assentada, é préciso resignarmos-nos a desistir do effeito, prodigiosamente importante, que resulta da unidade da impressão; porque, se é préciso dividir, então interpõem-se os negocios do mundo, e tudo o que nós chamamos o conjuncto, a totalidade, está perdido! Mas, visto que cœteris paribus, nenhum poeta deve privar-se de tudo o que pode concorrer para o bom exito do seu de signio, temos ainda a examinar se a extensão pode offerecer-nos alguma vantagem, em compensação do prejuizo, que resulta da perda da unidade. Eu digo que não. O que nós chamamos um poema longo não é, na realidade, senão uma successão de poemas curtos, quero dizer de effeitos poeticos e breves. Um poema não é poema senão quando nos eleva a alma, proporcionando-lhe uma excitação intensa. Ora, todas as excitações intensas são de curta duração; é isto uma condição psychologica. Eis a razão por que a metade do Paraízo perdido é pura prosa, apenas: uma serie de excitações poeticas, inevitavelmente semeiadas de depressões correspondentes, toda a obra sendo privada, por causa do seu excessivo tamanho, d'este elemento artistico, tão singularmente importante: totalidade ou unidade de effeito.
É portanto evidente que, no tocante á dimensão, ha um limite positivo para todas as obras litterarias, que vem a ser o limite de uma unica sessão. Comtudo, ha certa ordem de composições em prosa que não exigem a unidade e nas quaes póde haver mesmo uma vantagem em ultrapassar o limite da unidade. Mas um poema não o deve nunca ultrapassar. Mesmo n'este limite, a extensão do poema deve achar-se em relação mathematica com o seu merecimento, quero dizer, com a elevação ou excitação que elle comporta; ou, n'outros termos, com a quantidade de verdadeira sensação poetica que elle pode produzir nas almas. Esta regra não admitte senão uma condição restrictiva: é que certa quantidade de duração é absolutamente indispensavel para a producção de qualquer effeito.
Tendo bem presentes no espirito estas considerações, assim como certo grão de excitação que eu não collocava acima do gosto popular nem tambem abaixo da critica, concebi primeiro a idéa do comprimento que convinha ao meu poema projectado; um comprimento de cem versos, pouco mais ou menos. E effectivamente não lhe dei senão cento e oito.
Depois, o meu pensamento applicou-se á escolha de uma impressão ou de um effeito a produzir; e cabe aqui observar que, através deste labor de construção, conservei sempre em mira o designio de tornar a obra universalmente apreciavel. A demonstração de um ponto sobre o qual insisti muitas vezes, a saber, que o Bello é o unico dominio legitimo da poesia, levar-me-ia muito longe do meu assumpto immediato. Direi comtudo algumas palavras para a elucidação do meu verdadeiro pensamento, que alguns amigos meus tiveram a phantasia de desfigurar. O mais intenso, o mais puro e o mais elevado de todos os prazeres só se acha, na minha opinião, na contemplação do Bello. Quando os homens falam de Belleza, não é precisamente a uma qualidade que elles se referem, mas a uma impressão, a esta violenta e pura elevação — não da intelligencia nem do coração — mas na alma, que eu já descrevi e que é o resultade da contemplação do Bello. Designo a Belleza como o dominio da poesia, porque é uma regra evidente da arte, que os eſfeitos devem necessariamente nascer de causas directas e que os objectos devem ser conquistados pelos meios mais apropriados à conquista dos mesmos objectos — homem algum tendo nunca ousado negar que a singular elevação, a que me refiro, está mais facilmente ao alcance da poesia. Ora, o objecto Verdade, ou satisfação da intelligencia e o objecto Paixão, ou excitação do coração, são — posto que estejam tambem, até certo ponto, ao alcance da poesia — muito mais faceis de attingir pelo meio da prosa. Em summa, a Verdade reclama uma precisão e a Paixão uma familiaridade (os caracteres verdadeiramente apaixonados comprehender-me-ão) absolutamente contrarias a este especie de belleza, que não é mais, torno a dizel-o, de que a excitação ou o delicioso arroubamento da alma.
De tudo o que acabo de dizer, não se segue de modo nenhum que a paixão, ou mesmo a verdade, não possam ser introduzidas, e até com proveito, n'um poema; ellas podem servir para elucidar ou augmentar o effeito geral, como as dissonancias na musica, por contraste. Mas o verdadeiro artista fará sempre o mais possivel, primeiro por as reduzir a um papel favoravel ao fim principal que se pretende, e depois por envolvel-as, d'alguma maneira, n'essa nuvem de belleza, que é a atmosphera e a essencia da poesia.
Olhando, por conseguinte, o Bello como a minha provincia, disse commigo mesmo: qual é o tom da sua mais alta manifestação? Ora, a experiencia humana confessa que esse tom é o da tristeza. Toda a belleza, seja de que especie fôr, no seu desenvolvimeuto supremo, impelle inevitalmente ás lagrimas uma alma sensivel. A melancolia é o mais legitimo de todos os tons poeticos.
A dimensão, o dominio e o tom estando assim determinados, comecei a procurar, pela via da inducção ordinaria, alguma curiosidade artistica e interessante, que pudesse servir-me como de chave na construcção do poema; algum eixo sobre o qual pudesse girar toda a machina. Meditando cuidadosamente sobre todos os effeitos da arte, conhecidos, ou mais propriamente sobre todos os meios de effeito (tomando a palavra no sentido scenico) não podia deixar de vêr, no mesmo instante, que nenhum tinha sido mais geralmente empregado que o do estribilho. A universalidade do seu emprego bastava para me convencer do seu valor intrinseco e poupar-me a necessidade de o analysar. Não o considerei, portanto, senão na qualidade de susceptivel de aperfeiçoamento, e depressa vi que jazia ainda no estado primitivo.
Tal como se usa vulgarmente, o estribilho não só é limitado aos versos lyricos, mas ainda o vigor da impressão, que deve produzir, depende do poder da monotonia no som e no pensamento. O prazer que elle nos proporciona, é tirado unicamente da sensação da identidade de repetição.
Mas eu resolvi variar o effeito, para o augmentar, ficando geralmente fiel á monotonia do som e alterando continuamente a do pensamento; isto é, imaginei produzir uma serie continua de effeitos novos, por uma serie de applicações variadas do estribilho, deixando o estribilho, em si, quasi sempre invariavel.
Estes pontos estabelecidos, occupei-me da qualidade do meu estribilho. Visto que a sua applicacão devia ser frequentemente variada, está claro que este estribilho devia ser breve; porque seria quasi impossivel variar frequentemente as applicações de uma phrase longa. A facilidade da variação devia estar, naturalmente, na proporção da brevidade da phrase. Esta consideração conduziu-me logo a tomar como o melhor estribilho uma palavra só...
Então agitou-se a questão relativa ao caracter d'essa palavra. Tendo determinado, no meu espirito, que have- ria um estribilho, a divisão do poema em estancias era como um corollario necessario, o estribillo formando a conclusão de cada estancia; e esta conclusão, para ter força, devia ser sonora e susceptivel de uma emphase prolongada. Taes considerações levaram-me a escolher o o longo, por ser esta a vogal mais sonora, associado com o r, por ser esta a consoante mais vigorosa.
O som do estribilho uma vez bem resolvido, tornava-se preciso escolher uma palavra que encerrasse esse som e que, ao mesmo tempo, estivesse o mais possivel de accordo com a melancolia que en adoptafa como tom geral do poema. Em semelhante busca, era quasi impossivel não dar com a palavra nevermore (jámais). Na realidade, foi a primeira que se me apresentou ao espirito.
O desideratum seguinte foi: Qual será o pretexto para o uso continuo da palavra jámais? Observando a difficuldade de achar uma razão plausivel e sufficiente para esta repetição continua, não deixei de notar que a difficuldade surgia unicamente da idéa concebida, que aquella palavra, tão teimosa e monotonamente repetida, devia ser proferida por um ser humano; que, em summa, a difficuldade consistia em conciliar esta monotonia com o exercicio da razão, na creatura encarregada de repetir a palavra. Então surgiu-me a idéa de uma creatura irracional, comtudo dotada do uso da palavra e naturalmente o papagaio foi o primeiro de que me lembrei; mas este foi immediatamente substituido por um corvo, como sendo um animal egualmente dotado da palavra e infinitamente mais de accordo com o tom desejado.
Eu chegára pois, emfim, à concepção de um corvo (um corvo, passaro de mau agouro, repetindo teimosamente a palavra jámais, no fim de cada estancia, n'um poema melancolico e, pouco mais ou menos, con cem versos de extensão. Então, não perdendo nunca de vista o superlativo ou a perfeição em todos os pontos, perguntei a mim mesmo: De todos os assumptos melancolicos, qual é o mais melancolico, segundo a intelligencia universal da humanidade?
A Morte — resposta inevitavel.
E quando é este assumpto, o mais melancolico de todos, tambem o mais poetico?
Depois do que expliquei assaz amplamente, póde-se adivinhar a resposta: É quando se acha intimamente ligado com a belleza. Por exemplo, a morte de uma mulher bonita é, incontestavelmente, o assumpto mais poetico do mundo; e está egualmente fóra de duvida que a bocca mais bem escolhida para desenvolver semelhante thema, é a de um amante privado do seu thesouro.
Não me restava portanto senão combinar estas duas idéas: um amante chorando a sua amada morta e um corvo repetindo continuamente a palavra jámais. Era preciso combinal-as, e ter sempre presente ao espírito o designio de variar a applicação da palavra repetida; mas o unico meio possivel para semelhante combinação, era imaginar um corvo servindo-se da palavra de que se trata, em resposta ás perguntas do amante.
Foi então que eu vi toda a facilidade que se me offerecia para o effeito do qual o meu poema estava suspenso, quero dizer o effeito a produizir pela variedade na applicação do estribilho. Vi que podia fazer pronunciar ao amante a primeira pergunta á qual o corvo devia responder: Jámais; que podia fazer d'essa primeira pergunta uma especie de reflexão banal; da segunda alguma cousa menos banal; da terceira alguma cousa ainda menos banal, e assim successivamente, até que, por fim, o amante tirado da sua apathia pelo caracter melancolico da palavra, pela sua repetição frequente e pela lembrança da reputação sinistra do passaro, que a pronuncia, se achasse tomado de uma excitação supersticiosa e começasse loucamente a fazer perguntas de um caracter mais sério; perguntas apaixonadamente interessantes para a sua alma, meio feitas por um sentimento de superstição, meio n'este desespero singular, que impelle uma alma á voluptuosidade da tortura; n]ao sómente por acreditar no caracter prophetico ou de- moniaco do passaro, (que a razão lhe demonstra não fazer mais do que repetir uma lição apprendida) mas porque experimenta uma voluptuosidade frenetica em formular assim as suas perguntas e em receber pelo esperado jámais um golpe repetido, tanto mais gostoso quanto lhe é insupportavel. Vendo pois esta facilidade que se me offerecia, ou, para melhor dizer, que se impunha a mim no progresso da minha construcção, formulei primeiro a pergunta final, a pergunta suprema, á qual o jámais devia, em ultimo logar, servir de resposta; esta pergunta à qual o Jámais faz a réplica mais desesperada, mais repleta de agonia e de horror que se póde conceber. Assim, posso dizer que o meu poema começou pelo fim, como deveriam começar todas as obras de arte; porque foi justamente n'este ponto das minhas considerações preparatorias, que pousei, pela primeira vez, a penna sobre o papel, para compôr a estancia seguinte:
"Propheta, disse eu, ser de desgraça! passaro ou demonio, comtudo propheta! Pelo céo, que nos cobre, pelo Deus, que ambos adoramos, dize a esta alma esmagada pela dôr, se um dia, no paraiso longinquo, ella poderá abraçar uma donzella santa, preciosa e deslumbrante, a quem os anjos chamam Leonor?
O corvo disse: "Jámais! »
Foi sómente então que compuz esta estancia, primeiro para estabelecer o gráo supremo, e poder assim, mais á minha vontade, variar e graduar, conforme a sua seriedade e sua importancia, as perguntas precedentes do amante; e, em segundo logar, para estabelecer definitivamente o rythmo, o metro, o comprimento e a fórma geral da estancia, assim como graduar as estancias, que deviam preceder, de modo que nenhuma pudesse ultrapassar esta ultima em effeito rythmico. Se, no trabalho de composição que se seguiu, eu tivesse feito a imprudencia de construir estancias mais vigorosas, ter-me-ia applicado, sem escrupulo, a enfraquecel-as, de maneira a não contrariar o effeito do crescendo.
Cabe agora collocar aqui algumas palavras sobre a versificação. O meu primeiro fim era, como sempre, a originalidade. É uma das cousas mais inexplicaveis o ponto a que se tem desprezado a originalidade na versificação. Admittindo que haja pouca variedade possivel no rythmo puro, comtudo é evidente que as variedades possiveis do metro e da estancia são absolutamente infinitas; não obstante, durante seculos, ainda ninguem fez ou tentou fazer cousa alguma de original em versificação.
O facto é que a originalidade (excepto nos espíritos de uma força verdadeiramente insolita) está longe de ser, como muita gente suppôe, uma questão de instincto ou de intuição. Geralmente para a achar, é preciso procural-a laboriosamente, e, sem que ella seja um merecimento positivo da mais elevada categoria, é antes o espirito da negação que o espirito da invenção, que nos fornece os meios de a attingir.
É escusado dizer que não tenho pretenções a apresentar originalidade alguma no rythmo ou no metro do Corvo. O primeiro é trochaico; o segundo compõe-se de um verso octometro acatalectico, alternando com um catalectico, o qual, repetido, se converte em estribilho no quinto verso, e termina por um tétametro catalectico. Para falar sem pedantismo, os pés empregados, que são trocheus, consistem n'uma syllaba longa seguida de uma breve. O primeiro verso da estancia tem oito pés d'esta especie; o segundo sete e meio; o quinto egualmente sete e meio; o sexto, tres e meio. Ora, cada um d'estes versos, tomado isoladamente, tem sido varias vezes empregado. A originalidade do Corvo consiste em tel-os combinado na mesma estancia; porque nunca, até aqui, alguem tentou fazer cousa que se parecesse sequer com esta combinação original, cujo effeito é augmentado por alguns outros effeitos desusados e absolutamente novos tirados de uma applicação mais extensa da rima e da alliteração.
O ponto seguinte a considerar era o meio de pôr em communicação o amante e o corvo; o primeiro gráo d'esta questão era naturalmente o logar. Parece que a primeira idéa que devia apresentar-se n'este caso, era uma floresta ou uma planicie; mas, na minha opinião, para o effeito de um incidente isolado é absolutamente necessario um espaço estreito e limitado. Esta particularidade dá á scena a energia que um moldura accrescenta a uma pintura, e tem a incontestavel vantagem moral de concentrar a attenção n'um espaço pequeno, vantagem que, escusado é dizel-o, não deve confundir-se com a que se póde tirar da simples unidade de logar.
Resolvi pois collocar o amante no seu quarto — um quarto para elle sagrado pelas lembranças d'aquella que alli viveu — conforme as idéas que expliquei sobre a Belleza, como sendo a unica these verdadeira da Poesia; o quarto apparece-nos ricamente mobilado.
O logar assim determinado, era preciso agora introduzir o passaro, e a idéa de o fazer entrar pela janella era inevitavel.
A idéa do amante suppôr, primeiro, que o esvoaçar do passaro de encontro á janella é uma pancada na porta, nasceu do meu desejo de augmentar, pela espera, a curiosidade do leitor, e tambem de introduizir o effeito incidental da porta aberta de par em par pelo amante, que não acha senão trevas e que, desde então, pode adoptar, em parte, a idéa phantastica de que é o espirito da sua amante que veiu bater-lhe a porta.
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar a circumstancia d'este corvo procurando hospitalidade, depois para crear o effeito do contraste, com a tranquillidade material do quarto.
Do mesmo modo, fiz pousar o passaro sobre o busto de Pallas, para crear o contraste entre o marmore e a plumagem; adivinha-se que a idéa do busto foi suggerida unicamente pelo passaro; o busto escolhido foi o de Pallas, primeiro pela sua relação intima com a erudição do amante, depois por causa da sonoridade da palavra Pallas.
No meio de poema, aproveitei egualmente da força
do contraste, com o fim de preparar a impressão final.
Assim, dei a entrada do passaro uma fórma phantastica,
ligeiramente comica, tanto pelo menos como o assumpto
podía admittil-o. Elle entra com um bater de azas tumultuoso.
"Sem me fazer uma simples cortezia, adeantou-se,
com a importancia de um lord ou de uma lady, e empoleirou-se
n'um busto de Pallas, collocado justamente por cima
da porta do meu quarto."
Nas duas estancias seguintes o designio torna-se ainda
mais manifesto.
A gravidade do seu aspecto e a severidade da sua physionomia fizeram sorrir a minha triste imaginação: "Embora a tua cabeça, disse-lhe eu, não tenha pôpa nem cimeira, não és por certo um passaro ordinario. Dize-me qual o teu nome senhorial nas costas da noite plutonica!" O corvo disse: "Jámais!"
Fiquei pasmado de vêr aquelle desengraçado volatil
comprehender assim a palavra, posto que a sua resposta
não tivesse um grande senso, nem respondesse de modo
algum á minha pergunta: porque é preciso confessar
que nunca foi dado a um homem vivo vêr, por cima da
porta do seu quarto, um passaro ou um bicho, sobre
um busto esculpido, com semelhante nome de Jámais.
Tendo preparado o effeito do desfecho, abandonei immediatemente o tom phantastico e tomei o da mais profunda
seriedade: esta mudança de tom começa com o
primeiro verso da estancia seguinte á ultima citada:
"Mas o corvo, solitariamente empoleirado no busto
placido, não proferiu, etc..."
A partir d'este momento, o amante deixa de gracejar; já não acha nada de phantastico na conducta do passaro. Chama-lhe triste, desengraçado, sinistro, magro e agoureiro passaro d'outros tempos e sente o seu olhar ardente abrazal-o até ao intimo do coração. Esta evolução de pensamento, esta imaginação no amante, tem por fim preparar uma analoga no leitor, trazendo-lhe o espirito a uma situação favoravel para o desfecho, que agora vae chegar o mais rapida e directamente possivel.
Com o desfecho propriamente dito, enunciado pelo Jámais do corvo, em resposta á ultima pergunta do amante, (se achará no outro mundo a sua bem amanda?) o poema na sua phase mais clara, mais natural — a de um simples conto — póde considerar-se como acabado. Até aqui estamos nos limites do explicavel, do real. Ha um corvo que apprendeu, em rotina, a pronunciar a palavra Jámais. Tendo escapado de casa do dono, eil-o reduzido, á meia-noite, pela violencia da tempestade, a pedir um abrigo á primeira janella onde vê brilhar ainda luz; a janella de um estudante meio engolfada nos livros, meio nas lembranças de uma amada morta. A janella tendo-se aberto, ao bater das suas azas, o passaro vae empoleirar-se no logar que lhe parece mais fóra do alcance immediato do estudante; o qual, achando graça no incidente e nas maneiras estranhas do visitador, pergunta-lhe o nome, por brincadeira, sem esperar resposta. O corvo, interrogado, responde com a sua palavra habitual: Jámais, palavra que acha immediatamente um écho melancolico no coração do estudante. Então este, exprimindo em voz alta os pensamentos que a circumstancia lhe suggere, é de novo impressionado pela repetição do Jámais. Primeiro, entrega-se ás conjecturas que lle inspira aquelle caso extraordinario; mas, pouco a pouco, é levado por uma tendencia natural do coração humano a torturar-se a si proprio e tambem, por uma especie de superstição, fazer ao passaro perguntas escolhidas de tal sorte que a resposta esperada, o intoleravel Jámais, deve trazer-lhe uma ceifa horrorosa de desespero e de dor. É n'esta tendencia do coração humano a torturar-se a si proprio, levada ao ultimo limite, que o conto acha a sua conclusão natural; e, até aqui, não apparece cousa alguna que ultrapasse os limites da realidade.
Mas, os assumptos trabalhados d'este modo, por muita habilidade que apresentem, por grande luxo de incidentes que ostentem, têm sempre uma aspereza, uma nudez, que impressiona desagradavelinente o olhar de um artista. Ha duas cousas que se requerem eternamente : A primeira é certa somma de complexidade, ou, mais propriamente, de combinação; a segunda, certa quantitade de espirito suggestivo, alguma cousa como uma corrente subterranea de pensamento, não visivel, indefinido. É esta ultima qualidade que dá a uma obra de arte este ar opulento, esta apparencia distincta, que temos muitas vezes a simplicidade de confundir com o idéal. É o excesso na expressão do sentido, que não deve ser senão insinuado, é a mania de fazer da corrente subterranea de uma obra a corrente visivel e superior, que muda em prosa, e em prosa da especie mais baixa, a pretendida poesia dos chamados transcendentalistas.
Baseado n'estas opiniões, accrescentei as duas estancias
que fecham o poema, a sua qualidade suggestiva sendo destinada a penetrar todo o conto que as precede.
Pela primeira vez apparece no verso a corrente subterranea:
"Arranca o teu bico do meu coração e precipita o teu
espectro para bem longe d'este quarto!" O corvo disse:
"Jámais."
As palavras do meu coração encerram a primeira expressão
metaphorica do poema. Estas palavras com a
resposta Jámais dispõem o espirito a procurar um sentido
moral no conto desenvolvido anteriormente. O leitor
começa então a considerar o corvo como emblematico;
mas é só no ultimo verso da ultima estancia que
lhe é dado vêr distinctamente a intenção de fazer do
corvo o symbolo da Lembrança funebre eterna.
"E, immutavel, continua sempre empoleirado no pallido busto de Pallas, por cima da porta do meu quarto. Os seus olhos, com um brilho demoniaco, parecem pensativos; a luz da minha lampada projecta a sua sombra sobre o solo, e além do circulo d'esta sombra, que jaz fluctuante sobre o solo, a minha alma não poderá elevar-se — jámais!"
- ↑ O illistre sr. MACHADO DE ASSIS tem uma bellisisima traducção deste poema (V. Poesias Completas, H. Garnier editor). EMILIO de MENEZES traduziu em sonetos vibrantes e masculos.