Os sequazes de Bentes acharam que o melhor meio de fazê-lo presidente do Brasil era impedir que houvesse eleições na capital do país. Todas as tendenciosas passeatas de batalhões, a inundação da cidade por valentões e capangas, a s ameaças de perda de emprego não lhes deram segurança de vitória; e houve neles, tal era o vigor da população, temor que, se a compressão se efetivasse, redundasse ela em trabalho mecânico inesperado, abrupto, uma erupção contra o sindicato que se acovardara diante das baionetas e iludia a própria consciência fingindo entusiasmo.
As seção eleitorais foram, pois, fechadas, os livros não apareceram e o Campelo com Totonho, outros do bando e oficiais foram vistos arrebatando-os dos carteiros do Correio.
Todas as ameaças e espécies de subornos empregaram contra os funcionários postais que tinham de lidar diretamente com os livros eleitorais; e Campelo, dias depois, nédio, ventrudo, dessorando gorduras, passeava o seu olhar trampolineiro sobre a população, do alto de um automóvel, entre Totonho e Lucrécio Barba-de-Bode.
Pensava este sempre no emprego; Campelo não se fartava de dizer que viesse o "homem" e ele estaria colocado de vez.
O reconhecimento de Bentes, poucos meses depois, foi feito com mais segurança, graças aos votos dos deputados já contados e empenhados; e assim mesmo, não deixavam os batalhões de sair às ruas, bandeiras desfraldadas, rufos de tambores, marchas heróicas, a oferecer batalhas ao país inteiro.
O nome de Lucrécio ficara famoso em todo o âmbito da cidade e subúrbios. Não lhe separavam o nome do do general Bentes. Nas próprias notícias dos jornais lá vinham juntos os tópicos que se referiam a ambos.
A ação de Lucrécio foi animada e maravilhosa. Ele destruiu cartazes, apreendeu boletins, rasgou jornais, e, de onde em onde, dava um tiro de revólver.
Foi coisa comum naqueles dias dar tiros de revólver pelas ruas. A polícia nada apurava e o próprio chefe, Juca Chaveco, perguntava aos auxiliares:
— Que foi?
— O Lucrécio deu um tiro ontem.
— Quá! Brincadeira... Pau de fogo às vez queima por si...
Chaveco mostrou-se muito hábil na gestão policial da cidade. Não se podia imaginar que aquele caipira tão simples, tão bonachão, de aspecto tão medroso, procedesse de forma tão profundamente política e atual.
No inquérito dos crimes de Liberato que avocou à sua autoridade, escreveu o relatório mais original de que se possa ter notícia. Não havia dúvida, dizia ele, que os mortos tinham sido por balas de revólver, mas os revólveres alcançam muito longe e podiam ter sido disparados de outro lugar que não aqueles indicados nos autos fls. Quanto ao depoimento do médico, devia não ser tido em consideração como os de certas testemunhas por não estarem habituados a depor, não terem a prática suficiente de tão espinhoso ofício.
Chaveco era homem grato e não se detinha em consideração alguma de ordem moral ou intelectual para provar a sua gratidão. Dizia mesmo:
— Amigo é amigo. O compadre não fica má , nem à mão de Deus- Padre.... Já fiz muito irrelatório lá na roça...
Lucrécio foi acusado de dar tiros, a polícia pôs-se em campo e afirmou que não era possível que ele tivesse feito semelhante coisa, a não ser com os pés, pois não tinha as mãos. Barba-de-Bode apareceu durante alguns dias com os braços dentro do casaco, pedindo, nos botequins que lhe levassem a bebida aos lábios.
A mulher, porém, é que continuava a temer pela sorte do marido. Conhecia-lhe o gênio irascível, habituado, agora, às violências, sem temor; sentia a injustiça da causa a que servia, e via bem em torno dela a indignação, a fúria do povo, de toda a gente, contra Bentes, contra Campelo, contra os valentões assalariados, como o marido.
Ela sempre quisera que voltasse ao ofício, que trabalhasse com regularidade, que contasse unicamente com o salário exíguo da oficina; mas o marido, às vezes com bons, outros com maus modos, resistia e metia-se na tal política, no jogo, nas desordens.
Um dia ou outro, voltava para casa com quantias de certo porte e ela, um instante, esquecia os perigos da vida que levava, da maneira injusta que empregava a sua bravura.
Moravam ainda na mesma casa da Cidade Nova e não havia por ela mais abundância do que em outros tempos. Aquela vida era precária; e o dinheiro que Lucrécio recebia ia logo para pagamentos e despesas.
Naquela manhã, Ângela estava à janela esperando que o pequeno passasse vendendo o jornal do bicho. O filho estava na escola e Ângela não pudera mandar buscá-lo cedo. Esperava que o vendedor passasse quando viu um senhor de certa aparência entrar na venda. Quase todos que passavam na rua ela conhecia e um estranho logo lhe feria a memória. O senhor saiu da loja trazendo atrás de si o dono, que apontou para ela. O homem aproximou-se; logo que chegou bem junto a ela indagou:
— É aqui que mora o Sr. Lucrécio?
— É. Que deseja?
— Desejo falar com ele.
Imediatamente Ângela pensou que ali estivesse um dos graúdos para os quais o marido trabalhava. Sem detença, abriu a rótula e fê-lo entrar para a sala, onde os santos ser amontoavam no oratório sobre a cômoda, com o ramo de arruda, na água, ao lado.
— Faça o favor de sentar-se.
Ela olhou o homem que era claro, cabelos brancos, e uma aparência toda de esforço e trabalho. Vinha vestido de fraque e as botas eram boas e justas nos pés.
— Meu marido está dormindo, mas vou acordá-lo. Faça o favor de esperar.
Sentado, o visitante olhou a casa, os móveis pobres, tirou o pince-nez e enxugou em seguida o suor do rosto. A mulher de Lucrécio voltou logo e ele pode dizer:
— Este Rio está muito mudado. Quase não o conhecia mais... Reformaram quase todo.
— Há muito que não fazem outra coisa senão por abaixo casas... E as coisas encarecem de uma forma, meu senhor, que não sei onde iremos parar.
A mulher retirou-se com a entrada de Lucrécio na sala;
— Bom dia.
— Bom dia.
O recém-chegado apressou-se em apertar a mão do dono da casa e ambos sentaram-se em seguida.
— Sou o Dr. Gama Silveira, engenheiro.
— Tenho muito prazer em conhecê-lo.
— Venho aqui, senhor Lucrécio, pedir-lhe um favor.
— No que for possível, Doutor!
— Estou há muito tempo como engenheiro do governo de Palmeiras... Não sou moço, tenho filhos e não há meios de ser promovido.
— De que partido é o senhor?
— Não tenho partido.
— É por isso.
— Mas sempre fui admirador do general Bentes, seu amigo, e agora era ocasião para me fazer justiça.
— Mas...
— Eu desejava, senhor Lucrécio, que o senhor, junto ao seu grande amigo...
— As nossas relações não são tão grandes.
— Devem ser, pois todos quando falam no nome de um falam no do outro.
— Sou grande admirador dele, grande mesmo; e só.
— É a mesma coisa; e, pelo tempo, já devem ser amigos. Ia dizendo que queria que o senhor se interessasse por mim e me fizesse promover a engenheiro de primeira classe. Vim ao Rio propositadamente para isso... Há vinte anos que me passam a perna, estou envelhecido, preciso educar as filhas e os filhos e o aumento que me traz a promoção seria muito útil. Se o senhor se interessasse, estou certo que a promoção se faria e ficar-lhe-ia muito grato.
— Há vaga?
— Há.
— Não garanto; mas vou falar aos amigos e farei o possível.
— Posso ir descansado?
— Pode.
O engenheiro tomou o chapéu de chuva e o de cabeça que estavam encostados a um canto, apertou a mão de Lucrécio e saiu para a rua com a cabeça baixa.
Lucrécio, que tinha ficado à janela, lembrou-se qualquer coisa e chamou o engenheiro:
— Doutor! Doutor!
Voltou-se logo o velho funcionário e perguntou:
— Que deseja, senhor Lucrécio?
— O senhor não me deu o nome todo e o lugar que quer.
— Ah! É verdade!
Tirou um cartão da carteira e escreveu rapidamente a lápis o que queria; e seguiu o seu caminho marchando a pequenos passos, sempre de cabeça baixa.
Lucrécio informou à mulher do que o engenheiro desejava. Teve ela uma grande alegria com a importância que o marido ia ganhando, mas , ao mesmo tempo, lembrou-se:
— Você arranja tudo para os outros e não arranja nada para você.
— Deixe estar, mulher, que a minha vez há de chegar... Quem não tem habilitações tem que esperar.
Vestiu-se Lucrécio e desceu com pressa à cidade, para passar um telegrama empenhando-se com Contreiras pelo engenheiro. Interessava-se deveras por aquele homem simples, formado, preterido, que fora ao seu encontro pedir justiça. Desceu a rua do Ouvidor com pressa; mas logo ao chegar à rua Primeiro de Março, teve que cumprimentar a Mme. Forfaible.
A mulher do general não se cansava de andar na cidade e procurava variar a hora dos seus passeios. De fato, as ruas centrais pela manhã têm um aspecto de trabalho e atividade que as veste de modo diferente das outras horas do dia.
Não há conversas das esquinas; as carroças com cargas grosseiras passam por elas e pelas lojas há uma azáfama de lavagem e arrumação.
Na rua Primeiro de Março, porém, mais que nas outras horas, as libras brilhavam nas vitrinas e os bilhetes de bancos podem ser estalados entre os dedos pobres.
Mme. Forfaible chamou Lucrécio e perguntou muito naturalmente:
— Que é que se diz do meu marido?
— Não sei... Não vai ser senador?
— Não queria... Queria que ele fosse ministro! Não dizem nada por aí?
— Que eu saiba não. Mas, a senhora sabe que essas coisas, nós, os pequeninos...
— Diga-me uma coisa, Lucrécio: isso que se diz aí da mulher de Lussigny é verdade?
— Que é, minha senhora?
— Que ela pode muito em Bentes.
— Ah! É uma de Paris?
— É essa mesma.
— Dizem que sim, D. Anita. Dizem que ela é quem faz tudo, que o general só faz o que ela quer. Ela já está aí.
— Eu sei. Vou falar com ela. Meu marido há de ser ministro.
Despediram-se e Lucrécio seguiu em direitura à Central dos Telégrafos. Se bem que fosse amigo de Macieira, não estava incompatível com Contreiras, a quem mesmo dissera que não trabalhava em seu favor por ser camarada leal do adversário dele. Não havia nenhum obstáculo em pedir pelo engenheiro que há muitos anos não passava do mesmo lugar, portanto, em tal sentido, telegrafou:
"Exmo. Sr. Coronel Contreiras - Tatui - Palmeiras - Respeitosamente peço a V. Exa. promover engenheiro Gama Silveira vinte anos preterido - Lucrécio
Contreiras, logo que tomou conta do governo do Estado, mandou empastelar o jornal da oposição; e, em seguida, fez um inquérito em que o seu delegado procurava demonstrar que haviam sido os proprietários do jornal os autores do empastelamento.
Para isso, além do seu cinismo em afirmar, o tal delegado empregou a coação e a ameaça sobre os depoentes, pobres operários que eram obrigados a dizer tudo o que convinha à autoridade.
Não contente com isso, dividiu o Estado em vários distritos agrícolas, à frente dos quais pôs um inspetor e meia dúzia de auxiliares; todos gente sua, que se encarregavam de esbordoar aqueles que demonstravam de qualquer modo não concordarem com "o salvador".
As reclamações choviam e os delegados policiais faziam inquéritos onde diziam que não havia nos casos coisa alguma de política, mas simples rixas por questões de mulheres ou de família.
Havia em Contreiras, como em todos os déspotas de sua escola que se seguiram, um terror extremo diante da lei que violavam. Não tinham coragem de fazê-lo francamente, claramente, ousadamente; mascaravam as suas violências, os seus assassinatos, com subterfúgios legais e outros, falando sempre em liberdade, em ordem, em paz e prosperidade.
Bogoloff chegando ao Estado, teve vontade de visitar o governador e pediu-lhe uma audiência; mesmo porque, se não o fizesse, corria perigo a sua segurança.
Já começavam a desconfiar "daquele estrangeiro". isto é, não do súdito russo, mas do indivíduo estranho ao Estado, pois assim chamavam os que não viviam e residiam lá.
Viu-se o Diretor da Pecuária muitas vezes seguido por tipos suspeitos, e à vista disso, declarou a sua qualidade de oficial e pediu uma audiência ao governador. Ele lha deu sem muita mora e Bogoloff pode encontrar-se com um homem muito comum, de feições e inteligência. Não lhe pode sacar nem uma idéia sobre a administração e o governo. Só lhe dizia:
— Este Estado, Doutor, tem sido muito roubado. Agora as coisas vão entrar nos seus eixos. Sou honesto e não consinto que ninguém roube à minha sombra. Quanto a bois, há por aí muitos, mas esse negócios de bois não é dos mais urgentes. A polícia não está bem instruída...
Quando o russo lhe falou da miséria da população, na lamentável impressão que isso fazia a quem vinha de fora, ele lhe disse:
— É... É... São uns madraços. Estou tratando de fundar uma colônia correcional.
Aquele homem não via que era o próprio governo que estava criando aquela situação; que era, além de outras coisas, a quantidade formidável de impostos cobrados pelos governos municipal, estadual e federal, tornando o trabalho infecundo e afastando o emprego de capitais.
Perguntou ao Dr. Bogoloff em seguida pela política central, se Bentes ainda era muito atacado, se lhe faziam muita oposição. Disse-lhe o russo que os jornais do Rio atacavam-no muito e Contreiras observou:
— Sei... Sei.... Se eu estivesse lá os fazia calar.
Tomou por aí uma expressão feroz que trouxe à lembrança do russo Tamerlão e Gengis Khan.
Despedindo-se do governador, Bogoloff prometeu no dia seguinte ir assistir a uma sessão da Câmara dos Representantes.
— Venha, doutor - disse Contreiras. - O senhor vai ver que Congresso disciplinado! que ordem! que obediência! Não é aquela "praia do peixe" do Rio.
A Constituição do Estado, moldada na Federal, estabelecia a independência e a harmonia dos poderes estaduais, que eram o judiciário, o executivo e o legislativo.
Não tinha o Estado Senado e o órgão do seu poder legislativo era unicamente a Câmara dos Representantes, que funcionava em uma ala do palácio do governador.
A sala não era apropriada ao seu destino, mas era ampla e bem iluminada; e, como já fosse conhecida a qualidade de Bogoloff, deram-lhe uma espécie de camarote, ao nível do recinto, a que chamavam de tribuna.
O doutor chegou cedo e pode ver a entrada dos deputados. Havia alguns jovens bacharéis e tenentes, muito pimpantes nos seus trajes à última; e havia também aqueles curiosos tipos de coronéis de roça, que vinham às sessões em terno de brim, com botas de montar e a açoiteira de couro cru, pendente na mão direita, presa por uma corrente ao respectivo pulso.
Chegavam e espalhavam-se pelas bancadas, conversando e fumando. Junto de Bogoloff, havia dois, uma dos quais lia, à meia voz, um artigo de jornal para o outro ouvir.
Não passava os congressistas de vinte e tantos e o russo perguntou a alguns se era aquele o número exato de representantes. Foi-lhe dito que não, que eram quarenta e cindo, mas que só pouco mais da metade freqüentavam as sessões. Os outros, acrescentou o informante, ficam nas suas fazendas e mandam unicamente receber o subsídio por seus procuradores bastantes.
A sessão custou e ter começo. Afinal o presidente e secretários tomaram seus lugares e a chamada foi feita. Notou Bogoloff que, quase bem perto a ele e ao lado da mesa, um pouco distante, havia uma ampla cadeira de balanço, cujo destino ali era difícil atinar.
Lida a ordem do dia, foi anunciado o expediente, e um deputado gritou do fundo da sala:
— Peço a palavra.
No mesmo instante, a cadeira de balanço foi ocupada. O coronel Contreiras vagarosamente aproximou-se e sentou-se nela. Estava muito simplesmente vestido, com uniforme de cor cáqui, sem colarinho, em chinelas de marroquim e até o dólmã estava desabotoado.
Acudindo o pedido do deputado, o presidente da Câmara falou:
— Tem a palavra o deputado Salvador da Costa.
O deputado não abandonou a bancada e começou com voz cantante:
— Senhor presidente — A cidade de Cubangoisolada do resto do a põem em comunicação com as suas irmãs do nosso torrão natal, são absolutamente desanimadoras. A inspetoria de obras no seu habitual relaxamento...
Por aí, foi interrompido por um vibrante grito do governador:
— Senta-te, Salvador! Fala agora o João.
O deputado Salvador, abandonando o fio do discurso, desculpou-se:
— Há de perdoar-me, senhor coronel doutor governador. Trato pura e simplesmente de uma questão administrativa. Não há política nem tenção de fazer oposição a V. Exa.
Não lhe deu ouvidos o governador e continuou a gritar lá da cadeira de balanço:
— Senta-te, Salvador! Não prestas pra nada! Fala agora o João!
O deputado Salvador ainda esteve alguns minutos em pé, hesitante, sem saber o que fazer, olhando aqui e ali; porém, um berro mais enérgico do coronel presidente fê-lo cair sentado sobre a cadeira, como se houvesse sido derrubado por um raio.
O resto da sessão correu normalmente e não houve mais necessidade da intervenção enérgica do senhor coronel doutor governador. Por fim, um deputado apresentou uma moção de congratulação com o coronel Firmino, chefe político do município de Cubandê, por fazer anos naquele dia.
Bogoloff deixou o edifício e dirigiu-se ao hotel em que residia; a viagem era curta, mas o trânsito era difícil, pois não dava um passo sem que não encontrasse um pequeno que se propunha a levá-lo a lugares equívocos.
Resolveu-se a abandonar Tatui e foi despedir-se de Contreiras dias depois. O coronel doutor governador estava em pleno trabalho no seu gabinete. Recebeu-o prazenteiramente.
— Tenho aqui um telegrama de Lucrécio, pedindo-me pelo Gama Silveira. Vou promovê-lo, mas diga ao Lucrécio que o faço por causa dele, se fosse Bastos não fazia. Não admito a sua intervenção na autonomia do Estado!
Bogoloff não veio diretamente para o Rio. Fez a viagem de volta parando e demorando-se nos portos de escala. Tinha mesmo combinado com Xandu demorar-se o mais possível para lhe dar inteira liberdade no que toca às exigências políticas de Contreiras, evitando assim que a sua gratidão a Macieira tivesse escrúpulos em obedecer certas ordens.
Teve a ocasião na sua lenta volta, de verificar Bogoloff que todas as cidades do Brasil se parecem, tem a mesma fisionomia, possuem casas edificadas da mesma forma e até as ruas têm os mesmo nomes e os apelidos das lojas de comércio são os mesmos.
Um país tão vasto, que se desenvolveu através de climas e regiões tão diferentes, é, entretanto, nos seus aspectos sociais, monótono e uno.
Já tinha o russo notado isso na sua viagem para o Estado das Palmeiras, e, na volta, foi que se certificou com vagar.
Quase a um tempo recebeu Lucrécio Barba-de-Bode telegramas de Bogoloff e do secretário do governador, avisando-o que o engenheiro havia sido promovido. A atividade política de Lucrécio estava captada agora em apreender os assovios. A população, roubada nos meios de manifestação de seu querer, virava-se para a terrível arma das crianças - a vaia. Os asseclas do governo sabiam que as casas de brinquedos não tinham mãos a medir na venda de gaitas, apitos, assobios; e os funileiros da cidade haviam deixado outras obras para fabricarem esses inocentes brinquedos de infância.
Todo o trabalho da polícia fardada, civil, oficial oficiosa, particular, era caçar assovios. Era ver um cidadão com uma gaita, logo lha arrebatava; os doceiros escondiam as flautas com que anunciavam à petizada os quindins que levavam. Lucrécio, alto, espadaúdo, tórax proeminente, com o seu paletó de alpaca, corria a cidade com o bengalão de pequi arrancando assovios. Uns inutilizava na chefatura, mas outros levava para casa. O filho, quando vinha visitá-los, não se apercebia da proibição e apanhava as gaitas. Dava-as às crianças da vizinhança com uma liberalidade de milionário, essas flautas gritantes e sereias agudas, de forma que a rua onde morava Lucrécio se encarregava de fazer voltar à população os assovios que lhe eram arrebatados pelos policiais diligentes.
Fuas Bandeiras, no seu jornal, não se cansava de doutrinar contra o apito, que ele julgava um instrumento vexatório, indigno, mesmo nas mãos dos rondantes a desoras; e como é que se ia usar semelhante arma contra a mais alta autoridade de um país?
Não era só contra o apito que Fuas desenvolvia considerações tendenciosas; o jornalista insinuou mesmo o linchamento de colegas. Como não se podia deixar de esperar, provocada naturalmente pelas medidas que os adeptos de Bentes tinham posto em prática para amordaçar a opinião, a imprensa analisou minuciosamente os méritos de Bentes.
Fuas, na falta de melhor modo de combater essa análise, lembrou e insinuou que se devia proceder contra esses heresiarcas da mesma maneira que se havia feito outrora com Apulcro de Castro. Não há nada mais infeliz, porquanto esse Apulcro, que foi em vida um difamador profissional, a sua morte redimiu-o e elevou-o. Havia dito ele, em seu jornal, que um certo capitão era caloteiro e logo todos os oficiais, sargentos, cabos, faxinas se julgaram ofendidos, não trepidando em vir em grupo matá-lo em plena rua, às barbas da autoridade.
Vergonha maior para um país não se concebe e não se compreende a inteligência desses oficiais. soldados, sargentos, cabos, faxinas, que se julgaram ofendidos por ser acusado um capitão de não pagar suas contas.
Apelando para essas honras obsoletas de classe, para essas superstições de grupos, Fuas desentranhava com o seu jornal as mais abstrusas doutrinas e selava as ameaças mais papuas possíveis.
Com a aproximação da posse de Bentes, essa excitação geral do povo despertou a Câmara dos Deputados, onde as discussões foram renhidas.
A minoria era diminuta e a maioria se tinha crescido muito com o preenchimento de vagas intercorrentes, por morte ou por outro motivo, de deputados oposicionistas. Nunca se viu deputados mais curiosos, mais imprevistos, sendo alguns mesmo de outra nacionalidade que não a brasileira. Já se tinha visto a apologia da ignorância, já se vira a apologia do assassinato de Apulcro de Castro, agora a Câmara punha em prática a internacionalização da representação do país. Havia deputados turcos, ingleses, belgas, finlandeses e todos eles conservando orgulhosamente a sua nacionalidade de origem e mal falando o português.
As "salvações" dos Estados não tinham continuado, mas os debates na Câmara eram furiosos e apaixonados. A administração continuando nos seus processos, enchia as galerias de secretas e valentões; e, quando os deputados da oposição se referiam mesmo respeitosamente ao honrado general Bentes, um dos seus asseclas puxava o revólver e apontava-o para o orador, cobrindo-o das mais sujas injúrias.
O presidente da Câmara mandava chamar o entusiasta e dizia-lhe amigavelmente, paternalmente:
— Você não toma juízo, Lucrécio.
Não há nada perigoso do que um entusiasmo pago e os parlamentares temiam sobremodo os defensores humildes do honrado general Bentes.
Campelo fora eleito deputado em uma das vagas, para enfrentar o célebre orador da oposição Júlio Barroso. A erudição deste, a sua voz cortante, a sua honestidade de proceder e de vida davam força e um prestígio extraordinário às suas orações.
Campelo fazia também discursos; tinha uma voz agradável, mas não tinha nem o saber, nem a força de Barroso. Se se tratasse de canto, podia-se dizer que Campelo tinha uma voz de salão, um bom timbre, mas sem extensão de volume. Quando se anunciava um discurso de Barroso, a Câmara enchia-se; enchiam-se as galerias, os corredores, as tribunas; Lucrécio e seu pessoal ajudavam a encher o edifício e, tal era o poder de sedução do orador, a fascinação da sua palavra, que eles o aplaudiam candidamente. Campelo, tendo notado isso, resolveu tomar um alvitre. Como deputado, ficava no recinto, bem perto do orador, e de lá fazia sinais a Lucrécio quando devia protestar com o seu pessoal. Assim mesmo, o orador conseguia vencer os obstáculos e ficou resolvido que os governistas o interrompessem com constantes apartes.
A sessão de vinte e cinco de Outubro foi particularmente agitada. Depois de ser lido o expediente, o presidente deu a palavra a um deputado "bentiano" que explicou a sua atitude votando a favor da rejeição do veto oposto ao projeto de venda da Estrada de Ferro de Mato Grosso. Não era escravo de suas opiniões políticas, dizia; não temia a opinião pública, mas também não temia a oposição facciosa e arruaceira.
JÚLIO BARROSO - Protesto! Peço a palavra!
O presidente tocou os tímpanos e pediu a atenção.
O deputado disse que era uma injúria à classe que pertencia o honrado presidente eleito supo-lo capaz....
JÚLIO BARROSO - Que tem uma coisa com outra? Peço a palavra.
O ORADOR -... capaz de patrocinar traficâncias. O honrado general Bentes pertence a esse cadinho de heróis, etc. etc.
Acabou o discurso e o presidente deu a palavra aos deputado Júlio Barroso. Houve rumores de cadeiras que se arrastam, de bancadas que caem, e todos tomaram os seus lugares. Os jovens deputados, na idade e nos dias de Câmara, ficaram atentos.
JÚLIO BARROSO - Sr. presidente. Eu não sei, não me entra absolutamente na compreensão, como militar que sou, quando não sou camarada: se quando sou por Huerta contra Crranza, se quando sou por Carranza contra Huerta?
WILLIS - Não apoiado! A ravem carried of his claws pieces of poisoned meat wich the enraged gardener had throw ipon the ground for his neighbour's cats.
O aparte do deputado Willis foi muito bem recebido; e a um sinal de Campelo, houve palmas nas galerias a seguir-se às do recinto.
Fez-se um pouco de silêncio e ouviu-se o seguinte aparte:
EDDIN NAZIB - Parque? Né mifahman.
Palmas estrepitosas cobriram a voz do deputado persa, a um aceno de Campelo.
PRESIDENTE - Peço atenção! As galerias não podem se manifestar.
O ORADOR - Em tão premente colisão o meu espírito de classe...
CARACOLES - V. Exa. não pode dizer isso. Poco me faltó para fallecer cuando llegué a casa de Melisa: de todos los poros me brotaba el sudor frio, se me cerraban los ojos, y costó gram trabajo hacerme recobrar el conocimiento.
ABD-EL-CHEFFIF - De acordo. Nehabbeck; ma fchemtche.
Como o aparte anterior, este foi recebido delirantemente. Campelo fez um sinal e houve palmas na galeria.
O ORADOR -... indaga se é mais militar Carranza ou Huerta e tenho que procurar no Almanack...
THEAMPULOS - Deu palalavéno.
O ORADOR - Sr. presidente, rogo a V. Exa. que me mande traduzir o aparte do nobre deputado.
A risada foi geral e antes que o presidente pudesse chamar a atenção, a um sinal de Campelo, um cidadão das galerias gritou: ignorante! ignorante!
PRESIDENTE - Atenção; as galerias não se podem manifestar.
ORADOR -... tenho que procurar no Almanck, para segurança de minha ação, qual é o mais antigo, qual tem mais medalhas...
BUOCOMPAGNI - Ma la impresa era árdua; e non poteva compiersi senza molte ingiustize
SAKENUSSEN - Si. Jeg holder af Dem.
Acabado de pronunciar o aparte que foi como os demais, ouvido pacientemente pelo orador, houve palmas nas galerias, a um sinal de Campelo.
PRESIDENTE - As galerias não se podem manifestar! Aviso os senhores deputados que quem está com a palavra é o nobre deputado Júlio Barroso.
ORADOR - Sr. presidente, tenho até agora ouvido com a máxima paciência os apartes poliglotas dos meus nobres colegas. Não sei onde estou, não sei se estou na torre de Babel, se isto...
WERNER - V. Exa.sape. Dies alle ist eine Scheisse.
UM SR. DEPUTADO - É isto mesmo.
VÁRIOS DEPUTADOS - Muito bem! Muito bem!
A um sinal de Campelo, um tanto diferente dos anteriores, as galerias prorromperam em entusiásticos vivas.
PRESIDENTE - Atenção. Quem está com a palavra é o nobre deputado Júlio Barroso.
ORADOR -... se isto é mesmo o parlamento brasileiro, parlamento de um país onde se fala o português. Acho-me por assim dizer coagido a suspender as ligeiras considerações que vinha fazendo sobre o espírito de classe. Eu queria mostrar como esse espírito é uma sobrevivência nefasta, como ele já nos envergonhou a civilização. Vejo-me obrigado porém, a suspendê-las, porquanto não tenho mais imunidades parlamentares, não podendo falar livremente como fazem aqui os parentes das influências poderosas que recitam...
NUMA - V. Exa. deve positivar as suas acusações.
ORADOR - Não estou acusando. Estou simplesmente tratando de um modo geral no que toca ao proceder da mesa...
NUMA - Não admito essas insinuações.
ORADOR - V. Exa. quando ora não tem dessas perturbações prejudiciais à memória ou ao fim...
NUMA - Peço a palavra para uma explicação pessoal.
Júlio Barroso continuou a sua oração embora cortado de apartes constantes após a qual foi dada a Numa a palavra para uma explicação pessoal. Toda a Câmara esperou que Numa fizesse um veemente discurso, como faziam crer as suas orações anteriores; mas, ao contrário disso, pronunciou breves palavras, disse que era honrado, que a sua adesão ao general Bentes tinha sido espontânea e sincera.
A impressão geral foi péssima. Os seus amigos, quando deixou de falar, receberam-no friamente, não lhe deram os cumprimentos de hábito e houve suspensão em todos os espíritos. É verdade que pretextara incomodo, mas não podia ser ele tão grave que o impedisse de defender-se cabalmente e a sua defesa estava em falar com calor, com veemência e paixão. Piterzoon, entre colegas, dissera mesmo:
— Vocês admiram-se! Não é coisa do outro mundo. O Numa lá de Roma acertava, quando consultava a Ninfa; com este dá-se a mesma coisa.
O genro de Cogominho deixou a Câmara apreensivo. Ele mesmo tinha provocado aquele incidente, ele mesmo tinha levantado a luva e fora ele mesmo, portanto, quem criara aquele fiasco. Julgou em começo poder pronunciar a sua defesa; não havia estudo a fazer, não havia argumento a responder, entretanto, o hábito que adquirira de discursar depois de estudo apurado, tinha-o traído no momento crítico.
Era preciso apagar aquela impressão; no dia seguinte, fosse como fosse, tinha que fazer um discursos sólido, cheio, capaz, por conseqüência, de levantar a sua reputação. Foi logo para casa. Mal entrou, procurou a mulher. Edgarda lia na sua biblioteca. Numa entrou nervoso e ansioso. Olhou um momento com tristeza as estantes cheias de livros. A mulher notou-lhe a fisionomia alterada, a sua angústia quase a nu.
— Que tens, Numa?
O deputado sentiu-se combalido e pôs as mãos na cabeça. Edgarda apiedou-se com aquela atitude do marido.
— Que tens, Numa?
Ele tomou alento, sentiu-se um pouco aliviado, a opressão deixou-o um pouco. Disse:
— Fiz um fiasco.
— Onde?
— Na Câmara.
— Foste falar.
— Fui.
— Que imprudência! Durante muito tempo?
Numa quase chorava. Era a sua carreira, eram as suas ambições que se desfaziam. Pela primeira vez, sentiu alguma coisa profundamente. A mulher também teve a visão do desastre. Estremeceu.
— Falei cinco minutos... Gaguejei.
Contou-lhe Numa então toda a história e a necessidade que havia de fazer um discurso no dia seguinte. A mulher concordou e dispôs-se a compô-lo completo e perfeito. Numa descansaria, acalmar-se-ia; e, de madrugada, depois do repouso, estudá-lo-ia, e estaria resgatado. Jantaram; Numa mais calmo e a mulher mais esperançada. Os criados tiveram ordem de dizer que os patrões tinham saído. O deputado foi dormir e a mulher trancou-se na biblioteca trabalhando na oração do marido.
A noite se fez totalmente. Numa dormiu profundamente as primeiras horas. Tinha os nervos fatigados, todo ele era cansaço e pedia repouso. Dormiu; mas, pelo meio da noite, despertou. Procurou a mulher ao lado. Não a encontrou. Recostou-se. Lembrou-se, porém, da combinação que tinham feito. Teve amor pela mulher, sentiu-a boa e o seu sentimento por ela se separava agora de todo e qualquer interesse, de toda e qualquer ambição. Para que aquela teima? Devia deixar a política, viver simplesmente com a mulher até que a morte o levasse. Mais valia a vida assim do que ele estar a contrafazer-se a todo o instante. Mas para fazer isto? Que seria ele? Nada. Devia continuar, devia não recuar. Era preciso ter destaque, figurar; era preciso que o chamassem sempre de deputado, senador; tivesse sempre consideração especial. Então podia ser assim um qualquer? Subir! Subir! E ele viu o Catete, as suas salas oficiais, o piquete, os batedores, o lugar de S. M. I. o Sr. D. Pedro II...
Pensou em ir ver a mulher; em ir agradecer-lhe com um abraço o trabalho que estava tendo por ele. Calçou as chinelas e dirigiu-se vagarosamente, pé ante pé, até o aposento onde ela estava. Seria uma surpresa. As lâmpadas dos corredores não tinham sido apagadas. Foi. Ao aproximar-se, ouviu um cicio, vozes abafadas... Que seria? A porta estava fechada. Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Ergueu-se imediatamente... Seria verdade? Olhou de novo. Quem era? Era o primo... Eles se beijavam, deixando de beijar, escreviam. As folhas de papel eram escritas por ele e passadas logo a limpo pela mulher. Então era ele? Não era ela? Que devia fazer? Que descoberta! Que devia fazer? A carreira... o prestígio... senador... presidente... Ora bolas!
E Numa voltou, vagarosamente, pé ante pé, para o leito, onde sempre dormiu tranqüilamente.