Quatro meses depois, batia eu à porta da casa n.o 54 da rua da Roda, onde morava Salustiano em companhia de sua mãe, e de uma raquítica megera, que lhes servia de criada. Já nós nos dávamos com essa franca e cordial expansão da mocidade, tão pronta a entregar-se e a sacrificar-se entre dois sorrisos
Ele estava de cama, atacado por uma febre violentíssima. Quando me abriram a porta, saía o médico. A velha mãe do artista apertou-me as mãos afogada em lágrimas e soluços.
— Ânimo!
— É o que lhe digo — acrescentou o médico, continuando o meu pensamento; — o moço, embora gravemente enfermo, salva-se com toda a certeza.
— Deus o ouça, meu senhor!
— Mande já a receita à botica, e não se esqueça de ministrar-lhe a beberagem: um cálix de meia em meia hora.
— Vá descansado, sr. doutor
A velha apresentou-me ao descendente de Esculápio. Estendemo-nos as mãos, e ele chamando-me de parte.
— É conveniente que o senhor fique por aqui até a minha volta. A febre é traiçoeira, e se o delírio aumentar, não há braço de mulher que contenha o Salustiano.
— Com todo o gosto fico doutor. Interesso-me por este moço, e se for necessário passarei a noite inteira ao pé dele.
— Bravo. Vou mais tranqüilo, adeus. Pouco me demorarei.
Penetrei na alcova do doente, Impressionado deveras. A luz da velha lâmpada, posta discretamente na penumbra, aclarava em moles raios o silencioso aposento.
Salustiano estava lívido como um cadáver, e de sua boca entreaberta escapava-se o silvo agudo da respiração intermitente e febril. Os seus olhos meio cerrados nadavam em luz, e uma crispação nervosa sacudia-lhe às vezes o corpo da cabeça aos pés, como ao contato de uma pilha de volta.
A mãe do artista, sentada em um canto da alcova, ora limpava as lágrimas, ora desfiava, murmurando, as contas negras do rosário.
O quarto do Salustiano era um genuíno quarto de boêmio.
Na cintilante cal da parede viam-se duas ou três figuras de odaliscas e um retrato de Pergoleso. Junto à cabeceira gemia uma carunchosa estante ao peso de uma porção de livros de música e das obras completas dê Henrique Heine, seu escritor predileto.
No meio de tudo isso mortalhas de cigarros esparsas, dois cachimbos funambulescos e o busto de Petrarca, coroado de rosas e de louros.
Sentei-me defronte do doente e esperei. Um despertador colocado sobre a mesa, cheia de garrafas de medicamentos, quebrava a mudez do quarto com as suas longas e soturnas palpitações.
Pobre Salustiano! Ali estava ele talvez às portas da morte, com pouco mais de 20 anos e um surpreendente talento, digno da imortalidade na Terra e no paraíso! Ninguém o acompanhava nos seus amargurados transes, senão as dolorosas lágrimas maternas e o simples cuidado de um amigo, por assim dizer, da véspera, um amigo como se encontra tantas vezes na mocidade, entre os rumores de um festim e à beira de um túmulo insondável.
Eu me prendera pela simpatia e pela admiração ao engenhoso flautista, e desde a noite do Barbeiro de Sevilha Salustiano abriu o rol dos meus mais queridos companheiros. A la vie! A la mort!, como era a divisa do Antony.
Aquele dia era um sábado. O sábado, em Pernambuco, desde o toque de recolher, assemelha-se às mais formosas noites de Sevilha, em que dizem que os suspiros do amor e os suspiros das serenatas cruzam até o romper da alvorada, através dos flutuantes clarões da lua!
Enquanto eu me perdia em tristes pensamentos com os olhos fitos no busto melancólico do doente, parou pouco distante da casa um grupo, e os sons maviosos de uma flauta acompanhada a violão espalham-se lentamente na sua atmosfera.
Salustiano abriu os olhos e apertou com os dedos frios a cabeça abrasada.
Aproximei-me rápido, e a velha correu ao meu aceno. Apoderamo-nos ambos das mãos do artista.
A flauta na rua exalou mais plangente melodia, e as cordas vibrantes do violão pareceram soluçar convulsivamente.
— Ouçam! — murmurou Salustiano pondo o dedo sobre a boca. — É assim que começa o hino! O grande hino! O sublime hino!
— Salustiano!
— O hino da mocidade! — terminou ele, caindo como uma massa inerte ao longo da cama.
O médico, que entrava, examinou atentamente o pulso do doente.
A serenata estava no auge do entusiasmo.