Salustiano T., ao autor.

A bordo do Cruzeiro do Sul, 20 de outubro de 186... Meu caro Luís. — Vou deixar-te esta carta na agência dos paquetes nacionais, no Ceará, em cujo porto fundearemos amanhã, se não falharem os cálculos do comandante Alcoforado. O mar está furioso; o vapor joga como um endemoninhado e o vento norte assovia arrogantemente nas gáveas e nos mastros despovoados.
Que tristeza, meu caro! Que tristeza apodera-se de minha alma e que dolorosíssima saudade! Desventurada existência de artista! Hei de estar sempre exposto a todos os perigos e contrariedades para conseguir um pouco de pão, enquanto os imbecis comem à farta em lautos banquetes.
Na realidade, vale a pena correr atrás da glória. Porque, digamos em confidência, eu amo a glória e o triunfo com uma fatal persistência e um inaudito arrojo. Que queres? É o único meio de aproximar-me a ela. A glória é uma escada de luz que devora o espaço aberto entre as ervas e as estrelas.
O mar geme neste momento como um moribundo impenitente. O vento diz coisas lúgubres, zunindo de encontro aos capacetes flutuantes das ondas, e o horizonte estende-se sobre nossas cabeças, escuro e fúnebre como uma ameaça.
O comandante por muito favor concedeu-me o seu beliche, onde eu escrevo-te estas mal amanhadas linhas. O Byron foi um doido quando teceu ditirambos engrandecendo o enjôo, e o meu adorado Henrique Heine no mar do Norte mentiu dando ao Oceano qualidades que o pobre velho nunca teve nem terá. Poetas! Poetas! Desculpa se te toco na ferida.
Tens ido ao Caxangá? Tens ido a Apipucos? Dá lembranças ao fotógrafo alemão que me fez o supremo beneficio de me ceder um retrato, companheiro hoje da minha saudade e das minhas veementes aspirações.
É o retrato dela! Imagina que felicidade! O retrato dela, pensativa e formosa como um anjo que está recordando-se das primaveras eternas do céu!
Sei que teimas em saber o nome da minha feiticeira. Desculpa-me o mistério. Tenho eu próprio medo de pronunciá-lo a sós, aqui mesmo, no meio do mar e da noite. Poderiam as ondas levá-lo e, espalhando-o em ouvidos indiscretos, revelarem o meu criminoso segredo ao mundo.
Procura-a nas melhores reuniões, nos melhores bailes, nas mais suntuosas festas, que a encontrarás com certeza. Ela e a alma da beleza, e ao seu contato não há quem deixe de sentir a influência magnética que os seres privilegiados exercem geralmente.
Amaldiçoado e bendito amor! Por que motivo a sociedade e o destino separaram-nos um do outro com tanta crueldade! Ah! meu amigo! Eu daria satisfeito metade de meu sangue para poder cair, rojar-me aos pés dela beijando entre lágrimas de divina alegria as margens do seu vestido perfumado, ouvindo em êxtase a sua voz, que me perdoasse.
Tenciono demorar-me no Pará o tempo suficiente apenas para dar alguns concertos e matar os desejos da minha mãe: ela ansiava por esta viagem; é uma paraense dos quatro costados, que necessita de vez em quando saborear as aragens natais de suas virgens florestas, sob pena de morrer aos poucos de nostalgia e de tristeza.
Pobre mãe!
Anteontem fez um dia soberbo e o mar estava manso como a lanugem de uma ovelha... Encostado à amurada do vapor, pus-me a contemplar o firmamento e uma velinha branca que bordejava nas vaporosas plagas do horizonte. Lembrei-me de Olinda, e senti mais do que sempre a tua falta, meu bom, meu único amigo! Qual será o destino que o céu me reserva? A ventura não foi criada para mim, e parece-me que as coroas do meu triunfo eram entrançadas com os goivos melancólicos da morte.
Antes que me esqueça, devo dizer-te: não estou bom, creio mesmo que estou bastante doente. Vem a bordo um médico, o dr. Ramos, da Bahia, a quem pedi que me auscultasse e aconselhasse. Disse-me que eram cismas minhas.
Cisma! Pode ser, mas afianço-te que há momentos em que tenho medo de ficar doido. Correm-me nuvens nos olhos, e um frio de morte apodera-se de meu corpo todo. Um cortejo extravagante, imagens burlescas, e sérias, pensamentos lúgubres e joviais, todo esse imbroglio rodeia-me em sonhos e quando estou acordado, a ponto de me aterrorizar.
No meio disso, porém, através dessas tempestades absurdas, fulgura o rosto e irradia o sorriso daquela mulher como o arco da aliança, como os primas da minha existência, submersa em um dilúvio de lágrimas. Adeus; é tarde, e sinto-me fatigado. Lamenta-me e estima-me, hei de mandar-te contar os meus sucessos ou desastres no Pará. Deus não há de ser mau para mim, que dizes? Conceder-me-á a suprema ventura de morrer na terra em que ela habita, respirando pela última vez os ares que lhe dão vida, mocidade e beleza.
Recomenda-me ao Colas e ao Coimbra do Santa Isabel. Aperta-te as mãos o teu velho e saudoso amigo

Salustiano T.

”

Nessa como em mais duas ou três cartas que Salustiano me escreveu, o espírito do artista parecia vacilar; raras vezes seguia um pensamento judicioso, e desde o momento em que sua pena lembrava a mulher adorada, vinha logo adiante uma fileira de palavras extravagantes, apaixonadas, dolorosas, que refletiam o estado anormal daquela miraculosa alma, tão digna de pairar na serena atmosfera da glória e da riqueza.

Fui uma noite ao Clube Pernambucano. Intrigava-me deveras o mistério dentro do qual o artista metera o seu amor, com o ciúme da concha quê acoita a pérola e da onda que sepulta as bagas do coral.

A mocidade impelia-me à descoberta do segredo, e nessa noite a nova diretoria do Clube abria os elegantes salões com um opulento baile.

Entrei às 11 horas e percorri avidamente com os olhos o grande salão festivo, em que cruzavam-se gazas, casacas, diamantes, flores e sorrisos. A orquestra enchia o ar de harmonias arrebatadoras; um denso aroma de cravos e rosas pejava a tépida atmosfera; e os leques adejavam como asas fugazes em plena primavera de amor.

Passava no turbilhão uma menina formosa, de olhos mortos e seio ofegante. Será esta?, perguntava eu a minha alma curiosa. Mais adiante outra curvava-se sorrindo à palavra lisonjeira do cavalheiro. Será aquela? Ou aquela outra, que arrasta com o aprumo de uma rainha a longa cauda dos vestido de cetim azul orlado de flores de ouro?

À uma hora da madrugada recrudescia o meu afã e o mistério ainda se conservava coberto pelas suas mil dobras, ante o mau espírito quase desanimado. Dei o braço a um amigo e fomos à janela principal receber o ar frio da noite.

Conversavam vivamente duas meninas, duas crianças de 15 a 18 anos, no vão da janela. E não voltas tão cedo para a cidade? — perguntava a que parecia mais moça.

— Não. Eu adoro aquele sossego! Faz bem ao coração! Olha, esta vida de barulhos e de testas cansa afinal! Houve tempo em que, se papai me tirasse da cidade, eu morreria!

A outra rui-se maliciosamente, batendo-lhe com o leque no rosto Ela ergueu os ombros nus, com um desdém esplêndido e levantou os olhos ao céu. Era uma admirável criatura, alva e contornada como um busto grego. Os cabelos enroscavam-se-lhe em volta da fronte alta, formando na nuca um tufo espesso que se desmanchava em ondas revoltas. Vestia uma simples toalete branca, envolta em primorosas rendas, e da cintura à fímbria roçagante deslizavam-se-lhe duas orlas de trepadeiras rubras como lágrimas de sangue.

Seus lábios meio abertos pareciam estar sempre aspirando os aromas de um mundo desconhecido.

— Conheces esta moça? perguntei em voz baixa ao meu amigo.

— Já a vi no teatro e nos Apipucos, creio eu. Mas no clube é a primeira vez!

Um sujeito pingue e condecorado chegou-se ao grupo formado pelas duas meninas, trazendo no braço um forte albornoz de caxemira cor de pérola.

— Vamos?

A esplêndida criatura voltou-se rapidamente.

— Oh! papai! Vamos!

Um dos diretores do baile aproximou-se agitado.

— Quê! Já, sr. comendador?

— Estou incomodada! — acudiu a menina com certa impaciência, recebendo a capa, e curvando-se para o velho estender-lha nos adoráveis ombros.

Voltou-se à companheira, e beijando-a nas duas faces:

— Agora, até quando?

— Breve!

— Qual! Não há mais teatro lírico! Só aí é que podia ver V. Exa.! — disse ela gracejando.

Senti um aperto íntimo e brusco.

— É ela; não há dúvida — exclamei.

Momentos depois, parou um carro à porta do Clube, e a formosa, ao subir o estribo, leve como uma visão, abandonava à brisa traiçoeira, que a conduzia até nós, uma vaga de perfumes provocadores.

Os cavalos fustigados arrebataram o cupê com uma velocidade pasmosa. Retirei-me também do baile, lutando entre as suspeitas que me assaltavam.

Antes de deitar-me, escrevi ao Salustiano as seguintes linhas.

“Descobri o teu segredo. Tens razão, pobre Bernardim! Estás apaixonado por uma princesa!”