Até as quatro horas da manhã Salustiano ardeu em um a febre implacável. Eu havia-o conduzido para a minha casa na cidade, sem saber mesmo onde habitava a mãe do artista, ou se ela estaria no Recife àquela hora.
O médico que receitou ao doente era o antigo facultativo que eu pela primeira vez encontrara na casa da rua da Roda. Ministrou-lhe uma simples beberagem e exigiu-me o maior cuidado com o enfermo.
— Este rapaz acaba mal! disse-me ele tristemente. — É a sina dos artistas e dos poetas — continuou com um doce sorriso: — o corpo humano não pode suportar por muito tempo os vôos da essência divina.
— E haverá perigo?
— É de crer que não. Isto passará com facilidade... mas depois? Quem sabe se amanhã um novo excesso virá prostrá-lo deveras? Pobre Salustiano!
Quando o médico se retirou, sentei-me à cabeceira do doente. Contemplei então o rosto macilento, úmido pelas transpirações da febre, e fiz uma idéia dos sofrimentos por que passava a desventurada alma daquele louco ideal. Tremiam-lhe os lábios abrasados, de vez em quando, como se articulassem um nome, uma oração querida. As mãos cadavéricas, cruzadas sobre o peito ofegante, pareciam já as de um defunto à espera das fúnebres dobras do seu derradeiro lençol.
Auxiliou-me um companheiro de casa, A. R. (lerá ele estas páginas?), a verter o remédio através dos dentes cerrados convulsivamente.
Aos primeiros clarões da manhã Salustiano abriu os olhos e volveu-os em redor de si com espanto e terror. Apertei-lhe a mão ardente e pronunciei em voz baixa o seu nome. O artista olhou-me longamente, sem pestanejar, e com os sobrolhos unidos, como quem se esforça por atrair à memória lembranças fugidas. De súbito, porém, fechou os olhos e tornou-se imóvel, qual se o torpor da moléstia o petrificara completamente.
Descansei a mão sobre o seu peito; o coração batia brusco e precípite como o de uma criatura arquejante.
Decorreram alguns minutos em que eu, com a vista no céu, em cujos flocos vaporosos a madrugada estendia as suas harmônicas luzes, me entreguei às pesarosas cogitações que o estado de Salustiano suscitava-me ao espírito preocupado.
Um som flébil e suave partiu o silêncio do gabinete, espécie de rumor de asas invisíveis ou de suspiros de criança, que sonha com os brincos do paraíso.
Outro som, mais outro, outros ainda sucediam-se sem intermitência, com uma angélica melodia. Voltei-me para o doente e vi que era de sua boca adormecida que as notas se desprendiam...
Nuvem rosada subia-lhe das faces à fronte inspirada e seus lábios frementes, como as cordas sonoras de uma harpa, reproduziam os sons sem que a harmonia perdesse o mínimo compasso e a menor partícula de doçura.
Os lábios despediram notas mais rápidas e seguidas, entrelaçavam-se os ais e as melodias com uma formosura igual à dos concertos das aves escondidas na sombra, à hora do crepúsculo, que é quando a natureza enlanguesce e os pássaros cantam os triunfos do dia que desmaia.
Assim, em cardumes misteriosos, em serenos adejos em vôos peregrinos e castos, o artista criava, sonhando talvez com a glória, um dos seus mais caprichosos poemas musicais. Eu pendia extático dos lábios vibrantes, e meu coração banhava-se nas águas lustrais daquelas harmonias com uma ânsia sobrenatural.
Pouco a pouco os sons diminuíram, estremeceu a boca terminando o suspiro da última nota, e o silêncio foi interrompido apenas pelos sussurros da natureza que despertava.
Os campanários soavam em todas as igrejas e a luz entrando pelas janelas aclarava ao mesmo tempo a cabeça imóvel de Salustiano e a roupa de polichinelo, envolta em trapos e guizos, aos pés da cama.