PREFACIO
Este volume é o primeiro de uma serie cujo fim é apresentar a massa activa dos cidadãos Brazileiros, com os melhores fundamentos que seja possivel ao auctor estabelecer, as reformas que para nós são realmente vitaes, considerando-se que a vida de um paiz não é só vegetativa, mas é tambem moral.
Por numerosas razões, adduzidas, por assim dizer, em cada pagina do presente volume, a emancipação dos escravos e dos ingenuos, e a necessidade de eliminar a escravidão da constituição do nosso povo, isto é, o Abolicionismo, devia ter precedencia ás demais reformas. De facto, todas as outras dependem d’essa, que é propriamente a substituição dos alicerces da nossa patria. Os volumes seguintes terão por objecto: a reforma economica e financeira, a instrucção publica, a descentralização administrativa, a egualdade religiosa, as relações exteriores, a representação politica, a immigração Europea; e, quem quer que seja o escriptor, serão todos inspirados pelo mesmo pensamento — o de elevar o Brazil á categoria de membro util da humanidade, e habilital-o a competir no futuro com as outras nações da America do Sul, que estão ainda crescendo a seu lado, fazendo d’elle uma communhão voluntaria para todos os associados, liberal e progressiva, pacifica e poderosa.
Já existe felizmente em nosso paiz uma consciencia nacional — em formação, é certo — que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apezar de hereditaria, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brazil traz na fronte. Essa consciencia, que está temperando a nossa alma, e ha de por fim humanizal-a, resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores, e a affinidade de soffrimento dos herdeiros de escravos.
Não tenho portanto medo de que o presente volume não encontre o acolhimento que eu espero por parte de um numero bastante consideravel de compatriotas meus, a saber: os que sentem a dôr do scravo como se fôra propria, e ainda mais, como parte de, uma dôr maior — a do Brazil, ultrajado e humilhado; os que têem a altivez de pensar — e a coragem de acceitar as consequencias d'esse pensamento — que a patria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos; aquelles para quem a escravidão, degradação systematica da natureza humana por interesses mercenarios e egoistas, se não é infamante para o homem educado e feliz que a inflige, não pode sel-o para o ente desfigurado e opprimido que a soffre; por fim, os que conhecem as influencias sobre o nosso paiz d'aquella instituição no passado e no presente, o seu custo ruinoso, e prevêem os effeitos da sua continuação indefinida.
Possa ser bem acceita por elles esta lembrança de um correligionário ausente, mandada do exterior, donde se ama mais a pátria do que no próprio país — pela contingência de não tornar a vê-la, pelo trabalho constante da imaginação, e pela saudade que Garret nunca teria pintado ao vivo se não tivesse sentido a nostalgia — e onde o patriotismo, por isso mesmo que o Brasil é visto como um todo no qual homens e partidos, amigos e adversários se confundem na superfície alumiada pelo sol dos trópicos, parece mais largo, generoso e tolerante.
Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem da nova geração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em vejamos a independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a América e o mundo.
Joaquim Nabuco
Londres, 8 de abril de 1883