CAPÍTULO X
A ilegalidade da escravidão


As nações como os homens devem muito prezar a sua reputação.

Eusébio de Queiroz

Vimos o que foi o tráfico. Pois bem, essa trilogia infernal, cuja primeira cena era a África, a segunda o mar, a terceira o Brasil, é toda a nossa escravidão. Que semelhante base é perante a moral monstruosa; que a nossa lei não podia reduzir africanos, isto é, estrangeiros, a escravos; que os filhos desses africanos continuam a sofrer a mesma violência que seus pais, e por isso o título por que são possuídos, o fato do nascimento, não vale mais perante qualquer direito, que não seja a legalização brutal da pirataria, do que o título de propriedade sobre aqueles: são princípios que estão para a consciência humana fora de questão. Mas, mesmo perante a legalidade estrita, ou perante a legalidade abstraindo da competência e da moralidade da lei, a maior parte dos escravos entre nós são homens livres criminosamente escravizados.

Com efeito, a grande maioria desses homens, sobretudo no sul, ou são africanos importados depois de 1831, ou descendentes destes. Ora, em 1831 a Lei de 7 de novembro declarou no seu artigo 1º: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres”. Como se sabe, essa lei nunca foi posta em execução, porque o governo brasileiro não podia lutar com os traficantes; mas nem por isso deixa ela de ser a carta de liberdade de todos os importados depois da sua data.

Que, antes de 1831, pela facilidade de aquisição de africanos, a mortalidade dos nossos escravos, ou da Costa ou crioulos, era enorme, é um fato notório.

É sabido – dizia Eusébio de Queiroz em 1852 na Câmara dos Deputados – que a maior parte desses infelizes [os escravos importados] são ceifados logo nos primeiros anos, pelo estado desgraçado a que os reduzem os maus tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida.[1]

Desses africanos, porém – quase todos eram capturados na mocidade –, introduzidos antes de 1831, bem poucos restaram hoje, isto é, depois de cinquenta anos de escravidão na América a juntar aos anos com que vieram da África; e, mesmo sem a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio, entre os recém-chegados, pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos criminosamente no país.

Vejamos, porém, um depoimento altamente insuspeito relativamente à mortalidade das “crias” até a época mais ou menos em que o tráfico transatlântico foi efetivamente suprimido.

É fato incontestável [depõe o sr. Cristiano Ottoni] que, enquanto era baixo o preço dos escravos, raras crias vingavam nas fazendas. Viajava-se pelos municípios de Piraí, Vassouras, Valença. Paraíba do Sul, observando os eitos do serviço... quase tudo africanos. Notava-se uma exceção (e não havia muitas outras) de uma grande fazenda cujo proprietário órfão se educava em país estrangeiro: esta povoava-se notavelmente de crioulos: por quê? Por contrato uma parte dos que vingavam pertencia ao administrador: sempre o interesse. Em todas as palestras entre os fazendeiros se ouvia este cálculo: “Compra-se um negro por 300$000: colhe no ano 100 arrobas de café que produzem líquido pelo menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro. Não vale a pena aturar as crias que só depois de dezesseis anos darão igual serviço”. E em consequência as negras pejadas e as que amamentavam não eram dispensadas da enxada: duras fadigas impediam em umas o regular desenvolvimento do feto, em quase todas geravam o desmazelo pelo tratamento dos filhos e daí as doenças e morte às pobres crianças. Quantos cresciam? Não há estatísticas que o digam, mas, se dos expostos da Corte só vingavam 9 a 10%, como então provou no Senado o visconde de Abaeté, dos nascidos na escravidão não escapavam certamente mais de 5%. [2]

“Devemos falar com a maior franqueza” – disse na Câmara um deputado, ex-ministro de Estrangeiros, insuspeito à lavoura – “porque a questão é grave. Cumpre que se diga: a maior parte dos proprietários, no interesse de evitar dúvidas que de futuro se pudessem dar a respeito, trataram de dar os escravos à matrícula como tendo sido importado antes de 1831.” Esse mesmo orador encarregou-se de demonstrar em seguida a ilegalidade da escravidão:

Demais a proceder a opinião dos nobres deputados, pois que o feto, segundo o direito romano transplantado para o nosso, segue a condição do ventre, serão livres não só os escravos importados depois daquela data, como toda a sua descendência. Coloquemos a questão no seu verdadeiro terreno. Se, como demonstrei, somente no período de dez anos, de 1842 a 1852, como consta de documentos oficiais, foram importados 326.317 africanos, e não sabendo nós quantos teriam sido importados no período anterior de 11 anos depois da Lei de 1831, pergunto: quantos dos atuais escravos poderiam rigorosamente ser considerados como tais, a prevalecer a opinião que combato?[3]

Menos da metade, seguramente, a prevalecer a Lei de 7 de novembro. Mas a história dessa lei é uma página triste do nosso passado e do nosso presente. Os africanos que o pirata negreiro, navegando sob a bandeira brasileira – a maior parte dos traficantes e os mais célebres dentre eles, os que têm a seu crédito nos livros azuis ingleses maior número de vítimas, eram estrangeiros e, para vergonha de Portugal e nossa também, portugueses – ia buscar aos depósitos da África e desembarcava nos da costa do Brasil não acharam quem os pusesse em liberdade, como a lei o exigia. As únicas reclamações a favor deles eram feitas pelos ministros ingleses, e ouvidas no Parlamento da Inglaterra. Leia-se o seguinte trecho de um discurso de Lord Brougham em 1842: não seria mais honroso para nós se, em vez de ser proferido na Câmara dos Lordes da Inglaterra pelo grande orador – Lord Brougham pediu mais tarde a revogação do chamado bill Aberdeen, ou Brazilian Act – aquele discurso houvesse ecoado em nossas Câmaras?

Em primeiro lugar [disse ele] temos a declaração expressa de um homem de bem no Senado do Brasil, de que a lei que aboliu o tráfico é notoriamente letra morta, tendo caído em desuso. Em segundo lugar temos uma petição ou memorial da Assembleia Provincial da Bahia ao Senado urgindo pela revogação da lei; não que ela os incomode muito, mas porque a cláusula de que os escravos importados depois de 1831 são livres embaraça a transação da venda e torna inconveniente possuir negros há pouco introduzidos no país. Eu encontro outra Assembleia Provincial, a de Minas Gerais, pedindo a mesma coisa com iguais fundamentos. Depois de insistir nos perigos para o país da falta de negros, o memorial acrescenta: “Acima de tudo, o pior de todos esses males é a imoralidade que resulta de habituarem-se os nossos cidadãos a violar as leis debaixo das vistas das próprias autoridades!” Eu realmente acredito que a história toda da desfaçatez humana não apresente uma passagem que possa rivalizar com essa – nenhum outro exemplo de ousadia igual. Temos nesse caso uma legislatura provincial que se apresenta por parte dos piratas e dos seus cúmplices, os agricultores, que aproveitam com a pirataria, comprando-lhe os frutos, e em nome desses grandes criminosos insta pela revogação da lei que o povo confessa estar violando todos os dias, e da qual eles declaram que não hão de fazer caso enquanto continuar sem ser revogada; pedindo a revogação dessa lei com o fundamento de que, enquanto ela existir, resolvidos como estão a violá-la, eles se veem na dura necessidade de cometer essa imoralidade adicional debaixo das vistas dos juízes que prestaram o juramento de executar as leis (1842).

Fato curioso, a Lei de 7 de novembro de 1831 que não pôde ser executada, senão muito excepcionalmente, não pôde também ser abolida.

No nosso direito não se revogam cartas de liberdade, e qualquer governo que ousasse propor às Câmaras a legalização do cativeiro dos africanos importados depois de 1831 teria a prova de que a nação não está inclinada a fazer o que não consente que outros façam. O escândalo continua, mas pela indiferença dos poderes públicos e impotência da magistratura, composta também, em parte, de proprietários de africanos; e não porque se pretenda seriamente que a Lei de 1831 fosse jamais revogada.

Grande número dos nossos homens públicos, compreendendo que essa era a chaga maior da nossa escravidão, pretenderam validar de alguma forma a posse de africanos ilegalmente escravizados, receando a bancarrota a lavoura pela verificação dos seus títulos de propriedade legítima. Não devemos condenar os nossos estadistas pelas opiniões que emitiram em relação à escravidão, quando os vemos dominados pelo receio de uma catástrofe social; mas nós hoje sabemos que tais receios não têm mais razão de ser, e que a moralização do país só pode dar em resultado o seu desenvolvimento progressivo e o seu maior bem-estar.

Até ontem, por outro lado, temia-se que a execução pela magistratura da Lei de 7 de novembro desse lugar a ações intentadas por africanos importados antes de 1831, pretendendo havê-lo sido depois; mas neste momento os africanos legalmente importados têm todos cinquenta e dois anos no mínimo, e salvo uma ou outra exceção, havendo sido importados com mais de quinze anos, são quase septuagenários. Se algum desses infelizes, enganando a justiça, conseguisse servir-se da Lei de 7 de novembro para sair de um cativeiro que se estendeu além da média da vida humana, a sociedade brasileira não teria muito que lamentar nesse abuso isolado e quase impossível de uma lei um milhão de vezes violada.

Não há dúvida que a geração de 1850 entendia, como o disse Eusébio, que “deixar subsistir essa legislação (a Lei de 7 de novembro) para o passado era anistiá-lo”, e que “os escravos depois de internados e confundidos com os outros” não poderiam mais apelar para os benefícios que ela concedia; mas não há dúvida também que esse pensamento político predominante em 1850, de legitimar a propriedade sobre os africanos introduzidos depois de 1831, aquela geração não teve a coragem de exará-lo na lei, e confiou-o inteiramente à passividade cúmplice da magistratura, e ao consenso do país. Aconteceu assim o que era natural. À geração educada na tolerância do tráfico sucedeu outra que o considera o maior de todos os crimes, e que, se não desenterra do Livro Negro da Secretaria da Justiça os nomes e os atos dos traficantes para não causar pena desnecessária a pessoas que nada têm com isso, não julga menos dignos da maior de todas as censuras da consciência humana os atos pelos quais, por dinheiro e só por dinheiro, bandidos do comércio ensoparam durante meio século as mãos no sangue de milhões de desgraçados que nenhum mal lhes haviam feito. Por sua vez, a atual geração, desejosa de romper definitivamente a estreita solidariedade que ainda existe entre o país e o tráfico de africanos, pede hoje a execução de uma lei que não podia ser revogada, e não foi, e que todos os africanos ainda em cativeiro sendo bona piratarum têm direito de considerar como a sua carta de liberdade rubricada pela Regência em nome do Imperador.

Admitindo-se a mortalidade em larga escala dos escravos, não há só probabilidade, há certeza de que as atuais gerações são na sua grande maioria constituídas por africanos do último período, quando acabou legalmente o tráfico e os braços adquiriram maior valor, e por descendentes desses. Por isso Sales Torres-Homem disse no Senado aos que sustentavam a legalidade da propriedade escrava, num trecho de elevada eloquência:

Ao ouvir-se os peticionários falarem tão alto em direito de propriedade, fica-se surpreendido de que se olvidassem tão depressa de que a máxima parte dos escravos que lavram suas terras são os descendentes desses que um tráfico desumano introduziu criminosamente neste país com afronta das leis e dos tratados! Esqueceram-se de que no período de 1830 a 1850 mais de um milhão de africanos foram assim entregues à lavoura, e que para obter essa quantidade de gado humano era necessário duplicar e triplicar o número de vítimas, alastrando-se de seu sangue e de seus cadáveres a superfície dos mares que nos separam da terra do seu nascimento.

Identificada assim a escravidão como sendo na sua máxima parte a continuação do tráfico ilegal que de 1831 a 1852 introduziu no Brasil aproximadamente um milhão de africanos; provada a sua ilegalidade manifesta em escala tão grande que “a simples revisão dos títulos da propriedade escrava bastaria para extingui-la” [4] (isto é, reduzindo o número dos escravos a proporções que os recursos do Estado poderiam liquidar), é a nossa vez de perguntar se não chegou ainda o momento de livrar as vítimas do tráfico do cativeiro em que vivem até hoje. Pensem os brasileiros que esses africanos estão há 50 anos trabalhando sem salário, em virtude do ato de venda efetuado na África por menos de 90 mil-réis. Pensem eles que até hoje esses infelizes estão esperando do arrependimento honesto do Brasil a reparação do crime praticado contra eles, sucessivamente pelos apresadores de escravos nos seus países, pelo exportador da costa, pelos piratas do Atlântico, pelos importadores e armadores na maior parte estrangeiros do Rio de Janeiro e da Bahia, pelos traficantes do nosso litoral a soldo daqueles, pelos comissários de escravos, e por fim pelos compradores, cujo dinheiro alimentava e enriquecia aquelas classes todas.

“As nações como os homens devem prezar a sua reputação”; mas, a respeito do tráfico, a verdade é que não salvamos um fio sequer da nossa. O crime nacional não podia ter sido mais escandaloso, e a reparação não começou ainda. No processo do Brasil um milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas, e esse depoimento mudo há de ser mil vezes mais valioso para a história do que todos os nossos protestos de generosidade e nobreza de alma da nação inteira.

Notas do autor editar

  1. Discurso de 16 de julho. A essas causas deve-se acrescentar a nostalgia, segundo depoimentos oficiais.
  2. A Emancipação dos Escravos. Parecer de C. B. Ottoni, 1871, p. 66-68.
  3. Sessão de 22 de novembro de 1880, discurso do Sr. Moreira Barros – Jornal do Commercio de 23 de novembro.
  4. Manifesto da Sociedade Brasileira contra a Escravidão.