- I
A Preguiça, no entanto, conduzira
Aos macios colchões o grande Almada,
E um sono amigo lhe fechara os olhos,
Enquanto os ilustríssimos amigos,
Todos em volta do escrivão Cardoso,
Pela décima vez, na sala próxima,
Da excomunhão a narrativa escutam,
E com ditos de mofa, e com risadas,
A vitória celebram, na esperança
De que o prelado os ouça e lhes aceite
Agradecido esta homenagem nova.
- II
Eis que um sonho, agitando as asas brancas
Leve espalha no cérebro do Almada [19]
Como gotas de chuva rara e fina,
Um só sutil de mágicas patranhas.
Sonha... Em que há de sonhar o grão prelado?
Vê no espaço um ginete alto e possante
À solta galopando, e logo nele,
Elmo de ouro, armadura de aço fino,
A briosa figura de um guerreiro.
Tenta irritado o indômito cavalo
O cavaleiro sacudir na terra,
Mastiga o freio, empina-se, escoiceia,
Voa de norte a sul, de leste a oeste,
Ora, a pata veloz roça nos mares,
Ora, igual ao tufão, descose as nuvens,
Mas o galhardo cavaleiro as rédeas
Co’as fortes mãos encurta, e pouco a pouco
O ríspido quadrúpede sossega
E pára no ar. No rosto do guerreiro
Vê as próprias feições o grande Almada,
Olhos, cabelos, boca, faces, tudo,
Tudo é dele. Ó prodígio! Voz solene
Do ponto mais recôndito do espaço,
Onde estrela não há, não há planeta,
Estas palavras singulares solta:
“O bravo cavaleiro és tu, prelado,
E o domado corcel é o teu rebanho,
Que embalde morde o freio e se rebela
Contra ti que hás vencido el-rei e o povo,
Tornando em cinzas o atrevido Mustre.”
- III
Deste agradável sonho consolado,
Abre o pastor os olhos, vira o corpo,
E outra vez adormece. Novo quadro
E diverso lhe pinta a fantasia.
Vê-se diante de provida mesa,
À direita do papa, e come e bebe
De cem bispos servido. Entusiasmado
Com as finezas de Alexandre Sétimo,
O prelado um discurso principia
Depois de haver tossido quatro vezes.
Os olhos fita num painel que estava
Na fronteira parede; a mão do artista
O belo e forte arcanjo debuxara
Que a Satanás venceu; às plantas suas
Jaz o eterno rebelde. Entrava apenas
No magnífico exórdio do discurso
O valoroso Almada, quando a tela
A tremer começou; subitamente
O brilhante Miguel desaparece,
E o diabo que ali prostrado fora
Toma a figura do execrando Mustre,
Levanta-se do chão; e com desprezo,
E com gesto de escárnio e de ameaça,
Os turvos olhos no prelado fita
E a devassa fatal nas mãos sustenta.
Pasmam do caso os circunstantes todos,
Enquanto o forte Almada tropeçando
Nas cadeiras, nos vasos, nas cortinas,
Foge aterrado, uma janela busca,
Dela, sem ver a altura, se despenha,
E de abismo em abismo vai rolando
Até cair da própria cama abaixo.
- IV
Ao som da triste queda acorrem todos.
O mísero pastor, aos pés do leito,
Vagos olhos estende aos seus amigos,
Como se inda na mente abraseada
As asas agitara o negro sonho.
A erguê-lo corre o pregador Veloso;
Traz-lhe o douto vigário um copo d'água;
Um as janelas abre, outro da cama
Os lençóis revolvidos lhe concerta,
Até que Almada, a fala recobrando,
Do sonho as peripécias e o desfecho,
Entre assustado e galhofeiro conta.
- V
Ai, prelado infeliz! Verdade amarga,
Verdade, que não sonho passageiro,
Esbaforido o Lucas te anuncia.
Terrível golpe foi! Largos minutos
Atônito e caído sobre o leito
O prelado ficou, como se vira,
Por efeito de imenso terremoto,
A seus olhos cair toda a cidade.
Não era sonho então! Vencia a causa
O pérfido inimigo! Vai com ele
O imprudente Senado, e sem vergonha
Nem receio o governo ambos protege!
Tais idéias no cérebro do Almada
Confusamente rolam. Vinte vezes
Quer falar, vinte vezes abre a boca
Donde não saem mais que vãos suspiros
- VI
Porém a Ira, a quem blasfêmias prazem,
A tempo chega e lhe desata a língua.
Qual da feia carranca de um céu negro,
De águas, coriscos, furacões pejado,
Se vê subitamente sobre a terra
Grossa chuva cair, e em pouco tempo
Encher amplas campinas, praças, ruas,
Tal da boca com ímpetos lhe saem
Injúrias, gritos, ameaças, mortes,
Em borbotões de coração subindo;
E as atentas orelhas alagando:
“Guerra declaro à gente do Senado!
Guerra ao governador! a todos guerra!
E se o céu não tem raios que os fulminem,
Nem abismos a terra que os engulam,
Eu cavo abismos, eu tempero raios,
E essa baixa ralé da espécie humana
Verá que, inda vencido, eu sou Almada!”
- VII
Disse, e enfiando as mangas da batina
Que o cortesão Veloso lhe entregava,
Precipitadamente deixa a alcova,
E durante uma hora ou pouco menos
Meditou na desforra. Onça bravia
Numa jaula fechada não se move,
Não fareja com mais impaciência,
Mais aflita não busca uma saída,
Do que o grande prelado pela sala
Cogitando vagava. “Certamente
(Desta sorte o pastor consigo pensa)
O Senado, o Governo e o tolo Mustre
De mãos dadas estão; talvez o caso
Maquinado já fosse há muitos dias
Para me derrubar? Mas que outro golpe
Devo agora empregar naqueles biltres
A não ser enforcá-los? Que remédio,
Se a triunfar de mim eles alcançam,
A grande posição e o grande nome
Desta triste miséria hão de salvar-me?”
- VIII
Nisto, o mísero Lucas, que não teve
Jamais o gosto de uma idéia sua,
Pela primeira vez sente brotar-lhe
Na solidão do cérebro vazio
Um alvitre. Ansioso corre a Almada,
Que ao ter notícia deste caso novo,
Com sincera alegria o cinge ao peito
E dos lábios lhe pende inquieto e sôfrego.
Assim no meio das revoltas águas
Do oceano que o vento sacudira,
Já sem forças um miserando náufrago
Olhos e mãos estende à derradeira
Tábua que lhe ficou. “Muito vos deve
(Diz o Lucas) a egrégia companhia
Dos padres de Jesus, e esse colégio
Que ali daquele outeiro vos contempla.
Uma mão lava outra, com finezas
As finezas se pagam. Se do voto
Depender do reitor a vossa causa
(Que é certamente voto de mão cheia
E trunfo superior aos demais trunfos) [20]
Vá sem demora Vossa Senhoria
Dos favores cobrar-lhe o pagamento,
Que a vitória final é toda nossa.”
- IX
A tais palavras o prelado sente
Pelas veias coar-lhe um sangue novo,
E toda reviver-lhe a derradeira
Quase extinta esperança. Então nos braços
O salvador amigo recolhendo,
Com lágrimas de gosto assim lhe fala:
“Oh! três e quatro vezes mais ditoso
Que o destemido Aquiles, que da boca
Do divino cavalo ouvia apenas
Anunciar-lhe a sua morte próxima,
Ouço da tua o próximo triunfo!”
- X
Disse, e à pressa engolindo alguns bocados
Do já frio jantar que há muito o espera,
Das insígnias do cargo se reveste,
Entra na cadeirinha e aos pajens manda
Que ao colégio o conduzam sem demora.
Velozes partem, e suando em bica,
Vão trepando a ladeira, e à casa chegam
Que ali, no viso da colina, encerra
Em seu discreto seio um garfo ilustre
Da vasta, onipotente companhia.
Desce a certa distância o grande Almada,
Encara a porta, e trêmulo de susto
Alguns minutos fica; mas vencendo
O natural terror que lhe infundiam
A casa e seus famosos moradores,
Com ânimo atravessa o curto espaço
E vai bater à porta do convento.
Não de outra sorte o resoluto César,
Chegando à margem do vedado rio,
Algum tempo hesitou se contra a pátria,
Se contra si lançar devera a sorte;
Mas logo, ao gênio seu abrindo as asas,
O Rubicon transpõe, e afoitamente
Tudo fiando da propícia estrela,
Contra a pátria marchou e a liberdade.
- XI
Vinham do refeitório, que era farto
E próprio de tão nobre companhia, [21]
Os veneráveis padres, quando a nova
Correu de que chegara o grão prelado.
Com alvoroço desce logo a vê-lo
Toda a comunidade; as cortesias
Respeitosas lhe faz, os cumprimentos,
Os elogios vãos com que lhe enfuna
De túmidas vaidades a cabeça.
Dali à livraria o levam logo
Com grandes cerimônias, e ao pedido
De falar co’o reitor secretamente,
Todos os padres dão aos calcanhares.
- XII
Fechada a porta e junto da janela
Ambos os dous sentados gravemente,
Estende os olhos o prelado e abrange
Todo esse plaino de águas, não pejado
De tantíssimas velas, e bandeiras
Que hoje às brisas do mar de Guanabara
Molemente flutuam. Longa serra
Vê cortar o horizonte, e além galgando
Com os vôos da leve fantasia,
Campos descobre, caudalosos rios,
Matas que humano pé não profanara,
E cheio de um sincero entusiasmo
Faz um breve discurso, cujo tema
A bela terra foi e o seu futuro;
Discurso em que (por que melhor atasse
O seu entusiasmo à causa sua)
De alto louvar encheu a companhia,
“Em cujas reverendas mãos se acolhe
(Diz ele ao concluir) o miserando
Prelado contra quem governo e povo
Implacáveis as armas do ódio assestam”.
- XIII
Com lastimosa voz logo refere
Miudamente o caso da devassa,
O perigo da igreja, a eterna mancha,
E ao reitor pede, cara a cara, o voto.
Sua Paternidade alguns minutos
Calado esteve, e o trêmulo prelado,
Sem os olhos tirar de cima dele,
Último e frouxo lume de esperança,
As unhas vai roendo impaciente
E vinte vezes na cadeira muda
A posição do corpo. Enfim, o grave
Regedor do colégio aos ares solta
Um profundo suspiro, e levantando
Os olhos para o teto, assim lhe fala:
“Vítima sois, não única, do torpe,
Estólido Senado; este colégio
Alvo há sido também das frechas suas
No conflito dos mangues, a que o povo
Quer ter antigo jus, e que há muito
Pertencem claramente à companhia.
Se eu vos narrasse esta comprida guerra,
As ciladas do pérfido inimigo,
Os golpes encobertos, toda a raiva
Com que ele afronta a paciência nossa,
Inteira gastaria uma semana.
Esperança não temos do triunfo.
Quem nos defenderá? Que braço forte
Às fúrias se oporá do vão Senado?
Quem as mãos cortará do inculto povo?”
- XIV
Aqui o grande Almada da cadeira
Zeloso se levanta: “Não conhece
Vossa Paternidade um braço forte?
Vale pouco, senhor, este prelado,
Mas longe está de apodrecer na terra,
E enquanto um sopro lhe restar de vida,
Todo às ordens será da grande casa
De que é vossa pessoa ornato e lustre.
Descansai, descansai; eu tenho um meio
De os chamar à razão. Contra o Senado,
Se teimar em falar no jus do povo,
E contra o povo, se gritar com ele,
Excomunhão darei, se for preciso”.
- XV
Tais palavras ouvindo, sobre o peito
Cruza as mãos o reitor e lhe agradece
Ao prelado este rasgo de pujança
E grandeza sem-par: “Eu não ousava
Tanto esperar de Vossa Senhoria,
A quem muito já deve a casa nossa,
E que tão espontâneo hoje me estende
A generosa mão. Na vossa causa
Sabeis que eu nunca deitaria um voto
Que contrário vos fosse. Ide tranqüilo,
Que a defender-vos sairei armado
Com as melhores peças. O conselho
Há de a voz escutar deste colégio,
E confirmar a excomunhão do Mustre,
E compeli-lo à entrega da devassa”.
- XVI
Um doce abraço estas palavras fecha;
E mais alegre o ínclito prelado
Que o mancebo amoroso, se dos lábios
Colheu da amante o suspirado beijo,
Do reitor se despede, e velozmente
Na cadeira se encaixa em que viera
E alegrar vai os ânimos aflitos
Das colunas da igreja fluminense.
- XVII
As roliças colunas, entretanto,
Sobre o caso fatal deliberavam,
Quando Almada chegou. Em volta dele
Ansiosos todos a conversa escutam
E as promessas do astuto jesuíta,
Em cuja honra o adulador Veloso
Um acróstico lembra, e lembraria
Igualmente um jantar, se o néscio Lucas,
Que outra cousa não tem nos ermos cascos,
Primeiro não lançasse a grande idéia.