O dia seguinte era um domingo.
O rapaz, depois de ler as notícias dos jornais e alguns artigos políticos, passou aos folhetins. Ora, aconteceu que um deles tratava precisamente do suicídio do dr. Antero da Silva. A carta póstuma servia de assunto para as considerações galhofeiras do folhetinista.
Um dos períodos dizia assim:
Se não fosse o suicídio do homem, eu não tinha assunto ameno para tratar hoje. Felizmente lembrou-se de morrer a tempo, coisa que nem sempre acontece a um marido, nem a um ministro de Estado.
Mas morrer era nada; morrer e deixar uma carta desfrutável como a que o público leu, isso é que é ter compaixão de um escritor aux abois.
Desculpe o leitor o termo francês; vem do assunto; eu estou convencido que o dr. Antero (que pelo nome não perca) leu algum romance parisiense em que viu o original daquela carta.
Salvo se nos quis provar que não era simplesmente um espírito medíocre, mas também um formidável tolo.
Tudo é possível.
O doutor amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no autor do artigo.
Com efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma famosa tolice.
Dera talvez uma das caixas de ferro do major para não tê-la escrito.
Era tarde.
Mas o desgosto do folhetim não foi o único; adiante encontrou um convite para uma missa por sua alma. Quem convidava para a missa? os seus amigos? Não; o criado Pedro, que, ainda comovido com a dádiva dos cinqüenta mil-réis, achou que cumpria um dever sufragando a alma do amo.
— Bom Pedro! disse ele.
E assim como tinha tido naquela casa o primeiro amor, e o primeiro remorso, teve ali a primeira lágrima, uma lágrima de gratidão pelo fiel criado.
Chamado para almoçar, o doutor foi ter com o major e Celestina. Já então a chave do quarto ficava com ele mesmo.
Sem saber por que, achou Celestina mais celeste que nunca, e também mais séria do que costumava. A seriedade quereria dizer que o rapaz já lhe não era indiferente? O dr. Antero pensou que sim, e eu, na qualidade de romancista, direi que pensava bem.
Contudo a seriedade de Celestina não excluía a sua afabilidade, nem ainda o seu estouvamento; era uma seriedade intermitente, uma espécie de enlevo e cisma, a primeira aurora do amor, que enrubesce a face e cerca a fronte de uma espécie de auréola.
Como já houvesse liberdade e confiança, o doutor pediu a Celestina, no fim do almoço, que fosse tocar um pouco. A mocinha tocava deliciosamente.
Encostado ao piano, com os olhos postos na moça, e a alma embebida nas harmonias que os dedos dela desferiam do teclado, o dr. Antero esquecia-se do resto do mundo para viver só daquela criatura que dentro de pouco tempo ia ser sua mulher.
Durante esse tempo o major passeava, com as mãos cruzadas sobre as costas, e gravemente pensativo.
O egoísmo do amor é implacável; diante da mulher que o seduzia e atraía, o moço nem tinha um olhar para aquele pobre velho demente que lhe dava mulher e fortuna.
O velho de quando em quando parava e exclamava:
— Bravo! bravo! Assim tocarás um dia nas harpas do céu!
— Gosta de me ouvir tocar? perguntou a moça ao doutor.
— Valia a pena morrer ouvindo esta música.
No fim de um quarto de hora, o major saiu, deixando os dois noivos na sala.
Era a primeira vez que ficavam a sós.
O rapaz não ousava reproduzir a cena da outra tarde; podia haver um novo grito da moça e tudo estava perdido para ele.
Mas os seus olhos, esquecidamente embebidos nos da moça, falavam melhor que todos os ósculos deste mundo. Celestina olhava para ele com essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem.
O doutor compreendeu que era amado; Celestina não compreendeu, sentiu que estava presa àquele homem por alguma coisa mais forte que a palavra do pai. A música cessara.
O doutor sentou-se defronte da moça, e disse-lhe:
— Casa-se comigo por vontade?
— Eu? respondeu ela; certamente que sim; gosto do senhor; além disso, meu pai quer, e quando um anjo quer...
— Não zombe assim, disse o doutor; não é culpa...
— Zombar de quê?
— De seu pai.
— Ora essa!
— É um desgraçado.
— Não conheço anjos desgraçados, respondeu a moça com uma graça tão infantil e um ar de tanta convicção que o doutor franziu a testa com um gesto de espanto.
A moça continuou:
— Bem feliz que ele é; quem me dera ser anjo como ele! é verdade que filha dele devo ser também... e, na verdade, sou também angélica...
O doutor ficou pálido, e levantou-se com tanta precipitação, que Celestina não pôde reprimir um gesto de susto.
— Ah! que tem?
— Nada, disse o rapaz passando a mão pela testa; foi uma vertigem.
Nesse momento entrou o major. Antes que tivesse tempo de perguntar nada, a filha correu a ele e disse que o doutor se achava incomodado.
O moço declarou achar-se melhor; mas pai e filha foram de opinião que devia ir descansar um pouco. O doutor obedeceu.
Quando chegou ao quarto atirou-se à cama e esteve alguns minutos sem movimento, mergulhado em reflexões. As palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doido; tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.
— Coitada! também é louca! Mas por que singular acordo de circunstâncias ambos eles estão de acordo nesta monomania celestial?
O doutor fazia esta e mil outras perguntas a si mesmo, sem achar resposta plausível. O que havia de certo é que o edifício da sua ventura acabava de esboroar-se.
Só lhe restava um recurso; aproveitar a licença concedida pelo velho e sair daquela casa, que parecia encerrar uma história sombria.
Com efeito, ao jantar o dr. Antero declarou ao major que tinha intenção de ir à cidade ver uns papéis, no dia seguinte de manhã; voltaria de tarde.
No dia seguinte, logo depois do almoço, preparou-se o rapaz para ir embora, não sem ter prometido a Celestina que voltaria o mais cedo que pudesse. A moça pedia-lhe com alma; ele hesitou por um momento; mas que fazer? era melhor fugir dali quanto antes.
Estava já pronto, quando sentiu bater-lhe à porta muito ao de leve; foi abrir; era a criada de Celestina.